sábado, 17 de agosto de 2013

Humberto de Campos: "O Alce"

O ALCE

Era nas margens do rio Cobar, ainda sem limo e sem nome, que se escancarava, dia e noite, naqueles tempos inocentes do mundo, a boca monstruosa da caverna. Aberta na rocha bruta pela força inconsciente das grandes águas primitivas, a enorme furna constituíra o refúgio seguro dos tímidos veados perseguidos, que ali iam repousar, assustados, contra a voracidade dos leões do Deserto. Um rebanho de cabras silvestres habitava-a, alarmando a ribanceira alta, quando o troglodita chegou, com a sua azagaia e a sua clava, disposto a ocupá-la. Os caprinos partiram em tumulto, pulando de rochedo em rochedo, estalando as unhas ásperas nas pedras escuras da margem, e o homem ficou só com as suas armas e a sua coragem, diante da natureza misteriosa.

Quatro luas depois, a caverna das margens do rio era um lar, semente de uma família, esboço indeciso de uma tribo. Viviam nela, em paz e em silêncio, Djeb, o caçador de uros; Elam, domesticador de abelhas selvagens; e Heva, companheira e escrava de Elam. Vagavam, estes últimos, quase perdidos, pela solidão daquelas florestas ocidentais, quando encontraram o primeiro, e passaram a caminhar juntos, solidários contra os perigos infinitos da selva. A caverna, descoberta por Djeb, serviu-lhes de abrigo. À noite, aceso o fogo na pedra porejante, a goela enorme iluminava-se e os ursos, os tigres, os auroques, os mamutes, os cervos, os leões, os elefantes, os próprios cavalos bravios, paravam inquietos, perguntando-se em silêncio que monstro era aquele, que abria a garganta vermelha, onde dançavam línguas de chama, na encosta solitária da montanha.

A vida na caverna era monótona, mas doce. Madrugada alta, quando vinham longe, ainda, os primeiros alvores do dia, Djeb chegava à boca da furna, defendida por grandes pedras amontoadas, consultava as horas pela marcha silenciosa das estrelas, prendia mais ao seu pescoço de uro selvagem a grande pele de tigre, examinava a extremidade da azagaia, cortada nas pontas agudas de um antílope, e partia cauteloso, a surpreender os grandes herbívoros adormecidos. Às vezes, desviavam-no no seu caminho bandos de cerdos, que perseguia na carreira, abalando com o estrondo dos seus passos a enorme floresta repousada. Outras, deixava-se ir sem destino, até sair, dia alto, nas grandes várzeas pontilhadas do sangue dos cardos floridos, de onde rebanhos de cavalos, partiam correndo e relinchando em galope largo, à sua aproximação. Nessas viagens de nômade, passava o troglodita dias e dias comendo, nas mãos de grandes unhas, pedaços de carne de uro mal tostada, e bebendo, de bruços, na correnteza dos rios ou, de pé, no lençol espumante das cachoeiras. De repente, retrocedia sobre os próprios passos, como se o perseguissem, uivando, todas as feras da floresta. Penetrava na caverna, arrastava pelo braço a escrava do companheiro, atirava-a sobre as folhas do leito, e amava, como os lobos, como os tigres, como os cães errantes da selva, como todos os seres da terra bárbara. Em seguida tomava, de novo, as suas armas, e partia sem rumo, — enquanto a mulher se erguia, sem revolta, do monte de folhas, atirando para as costas o tumultuoso caudal dos cabelos desordenados.

Uma tarde penetrava Elam na caverna, quando ouviu, entre a queixa dos ramos do leito, os rugidos de amor do companheiro que regressara. Sob a sua cabeça fulva como a dos leões, os cabelos de Heva, mais fartos e mais claros, punham uma grande mancha no verde esmaecido das folhas. Estacou, olhando-os, e retrocedeu. Uma grande angústia enchia-lhe o abismo do coração. Sobre os seus ombros, vergando-o, oprimindo-o, havia o peso de um mundo. À sua inteligência de primitivo parecia que a floresta havia rolado, com toda a brutalidade dos seus troncos e dos seus ramos, sobre a sua cabeça impotente. Um desejo irresistível, teimoso, imperativo, chamava-o de novo para a furna, onde deixara, enlaçados como dois lobos, o amigo e a companheira. Detinha-se, porém, indeciso, olhando o chão, onde grandes formigas carregavam, ajudando-se mutuamente, pedaços de folhas, cortadas de um tinhorão nascido sobre uma pedra. Olhou-as, e pensou:

— As mulheres são, talvez, como o tinhorão que nasce na pedra; todas as formigas podem devorá-lo...

Repeliu, no entanto, o pensamento, e continuou a andar sem destino. Amanhecia quando o domesticador de abelhas chegou, com a sua azagaia de caça, à orla da floresta, longe do rio. A cautela involuntária com que andava tornou a sua aproximação imperceptível aos habitantes da clareira. Um búfalo, apenas, suspeitou da sua presença, aspirando com força o ar circunstante, desconfiado. Alguns cervos ergueram a cabeça eriçada de galhos entrecruzados, afilando as orelhas para maior percepção dos rumores. Tudo voltou, porém, à quietude, à serenidade, à paz confiante, com a imobilidade de Elam, oculto, como um verme, pelo tronco de uma grande faia de raízes à flor do solo.

O nômade examinava, interessado, a vida harmônica das coisas, quando se aproximou da orla da selva um grande alce cujas pontas ultrapassavam a altura de um elefante. Atrás dele, caminhava, tosquiando a relva tenra, uma cerva de pêlo ruivo, que parecia tranqüila, como se confiasse inteiramente a sua segurança à coragem vigilante do companheiro. De repente, surgiu da floresta, dirigindo-se em sentido contrário, outro alce solitário, que se pôs a marchar no rumo da grande corça primitiva. O alce da várzea ergueu a cabeça semeada de pontas, e berrou alto. O outro respondeu, e defrontaram-se. Um ruído de ramos secos estalou, na fúria do encontro. Com os galhos emaranhados, cruzados, confundidos, os dois quadrúpedes vergavam o dorso, em dois arcos enormes. Um ruído mais forte anunciou que a luta ia terminar.

Com a cabeça voltada, o alce agressor tombou por terra, num berro convulsivo, trêmulo, estrangulado, que assustou os uros distantes. O veado vitorioso desembaraçou-se do vencido, recuou dois passos, investiu contra o corpo palpitante, perfurou-lhe o ventre com duas marradas violentas, remexendo-lhe as vísceras, com as pontas agudas. Em seguida, baliu, alto, chamando a companheira. Esta achegou-se amorosa, lambendo-lhe o pêlo, como num agradecimento comovido. E continuaram a pastar, juntos, à claridade cariciosa do sol, a erva tenra da clareira...

Elam acompanhara, imóvel, a grande luta dos cervos. Quando o combate acabou, o bárbaro retomou a azagaia, examinando-lhe as pontas, e retrocedeu, na direção da caverna.

Na manhã seguinte, as águas do rio lavavam, pela primeira vez, na furna dos trogloditas, o sangue de um homem.

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Nota:
Humberto de Campos: "O Monstro e outros contos" (1932)

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