O ALCE
Era nas margens do rio Cobar,
ainda sem limo e sem nome, que se escancarava, dia e noite, naqueles tempos
inocentes do mundo, a boca monstruosa da caverna. Aberta na rocha bruta pela
força inconsciente das grandes águas primitivas, a enorme furna constituíra o
refúgio seguro dos tímidos veados perseguidos, que ali iam repousar,
assustados, contra a voracidade dos leões do Deserto. Um rebanho de cabras
silvestres habitava-a, alarmando a ribanceira alta, quando o troglodita chegou,
com a sua azagaia e a sua clava, disposto a ocupá-la. Os caprinos partiram em
tumulto, pulando de rochedo em rochedo, estalando as unhas ásperas nas pedras
escuras da margem, e o homem ficou só com as suas armas e a sua coragem, diante
da natureza misteriosa.
Quatro luas depois, a caverna das
margens do rio era um lar, semente de uma família, esboço indeciso de uma
tribo. Viviam nela, em paz e em silêncio, Djeb, o caçador de uros; Elam,
domesticador de abelhas selvagens; e Heva, companheira e escrava de Elam.
Vagavam, estes últimos, quase perdidos, pela solidão daquelas florestas
ocidentais, quando encontraram o primeiro, e passaram a caminhar juntos,
solidários contra os perigos infinitos da selva. A caverna, descoberta por
Djeb, serviu-lhes de abrigo. À noite, aceso o fogo na pedra porejante, a goela
enorme iluminava-se e os ursos, os tigres, os auroques, os mamutes, os cervos,
os leões, os elefantes, os próprios cavalos bravios, paravam inquietos,
perguntando-se em silêncio que monstro era aquele, que abria a garganta
vermelha, onde dançavam línguas de chama, na encosta solitária da montanha.
A vida na caverna era monótona,
mas doce. Madrugada alta, quando vinham longe, ainda, os primeiros alvores do
dia, Djeb chegava à boca da furna, defendida por grandes pedras amontoadas,
consultava as horas pela marcha silenciosa das estrelas, prendia mais ao seu
pescoço de uro selvagem a grande pele de tigre, examinava a extremidade da
azagaia, cortada nas pontas agudas de um antílope, e partia cauteloso, a
surpreender os grandes herbívoros adormecidos. Às vezes, desviavam-no no seu
caminho bandos de cerdos, que perseguia na carreira, abalando com o estrondo
dos seus passos a enorme floresta repousada. Outras, deixava-se ir sem destino,
até sair, dia alto, nas grandes várzeas pontilhadas do sangue dos cardos
floridos, de onde rebanhos de cavalos, partiam correndo e relinchando em galope
largo, à sua aproximação. Nessas viagens de nômade, passava o troglodita dias e
dias comendo, nas mãos de grandes unhas, pedaços de carne de uro mal tostada, e
bebendo, de bruços, na correnteza dos rios ou, de pé, no lençol espumante das
cachoeiras. De repente, retrocedia sobre os próprios passos, como se o perseguissem,
uivando, todas as feras da floresta. Penetrava na caverna, arrastava pelo braço
a escrava do companheiro, atirava-a sobre as folhas do leito, e amava, como os
lobos, como os tigres, como os cães errantes da selva, como todos os seres da
terra bárbara. Em seguida tomava, de novo, as suas armas, e partia sem rumo, —
enquanto a mulher se erguia, sem revolta, do monte de folhas, atirando para as
costas o tumultuoso caudal dos cabelos desordenados.
Uma tarde penetrava Elam na
caverna, quando ouviu, entre a queixa dos ramos do leito, os rugidos de amor do
companheiro que regressara. Sob a sua cabeça fulva como a dos leões, os cabelos
de Heva, mais fartos e mais claros, punham uma grande mancha no verde esmaecido
das folhas. Estacou, olhando-os, e retrocedeu. Uma grande angústia enchia-lhe o
abismo do coração. Sobre os seus ombros, vergando-o, oprimindo-o, havia o peso
de um mundo. À sua inteligência de primitivo parecia que a floresta havia
rolado, com toda a brutalidade dos seus troncos e dos seus ramos, sobre a sua
cabeça impotente. Um desejo irresistível, teimoso, imperativo, chamava-o de
novo para a furna, onde deixara, enlaçados como dois lobos, o amigo e a
companheira. Detinha-se, porém, indeciso, olhando o chão, onde grandes formigas
carregavam, ajudando-se mutuamente, pedaços de folhas, cortadas de um tinhorão
nascido sobre uma pedra. Olhou-as, e pensou:
— As mulheres são, talvez, como o
tinhorão que nasce na pedra; todas as formigas podem devorá-lo...
Repeliu, no entanto, o
pensamento, e continuou a andar sem destino. Amanhecia quando o domesticador de
abelhas chegou, com a sua azagaia de caça, à orla da floresta, longe do rio. A
cautela involuntária com que andava tornou a sua aproximação imperceptível aos
habitantes da clareira. Um búfalo, apenas, suspeitou da sua presença, aspirando
com força o ar circunstante, desconfiado. Alguns cervos ergueram a cabeça eriçada
de galhos entrecruzados, afilando as orelhas para maior percepção dos rumores.
Tudo voltou, porém, à quietude, à serenidade, à paz confiante, com a
imobilidade de Elam, oculto, como um verme, pelo tronco de uma grande faia de
raízes à flor do solo.
O nômade examinava, interessado,
a vida harmônica das coisas, quando se aproximou da orla da selva um grande
alce cujas pontas ultrapassavam a altura de um elefante. Atrás dele, caminhava,
tosquiando a relva tenra, uma cerva de pêlo ruivo, que parecia tranqüila, como
se confiasse inteiramente a sua segurança à coragem vigilante do companheiro.
De repente, surgiu da floresta, dirigindo-se em sentido contrário, outro alce
solitário, que se pôs a marchar no rumo da grande corça primitiva. O alce da
várzea ergueu a cabeça semeada de pontas, e berrou alto. O outro respondeu, e
defrontaram-se. Um ruído de ramos secos estalou, na fúria do encontro. Com os
galhos emaranhados, cruzados, confundidos, os dois quadrúpedes vergavam o
dorso, em dois arcos enormes. Um ruído mais forte anunciou que a luta ia
terminar.
Com a cabeça voltada, o alce
agressor tombou por terra, num berro convulsivo, trêmulo, estrangulado, que
assustou os uros distantes. O veado vitorioso desembaraçou-se do vencido, recuou
dois passos, investiu contra o corpo palpitante, perfurou-lhe o ventre com duas
marradas violentas, remexendo-lhe as vísceras, com as pontas agudas. Em
seguida, baliu, alto, chamando a companheira. Esta achegou-se amorosa,
lambendo-lhe o pêlo, como num agradecimento comovido. E continuaram a pastar,
juntos, à claridade cariciosa do sol, a erva tenra da clareira...
Elam acompanhara, imóvel, a
grande luta dos cervos. Quando o combate acabou, o bárbaro retomou a azagaia,
examinando-lhe as pontas, e retrocedeu, na direção da caverna.
Na manhã seguinte, as águas do
rio lavavam, pela primeira vez, na furna dos trogloditas, o sangue de um homem.
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Nota:
Humberto de Campos: "O Monstro e outros contos" (1932)
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