HERODES
O vapor fluvial que demandava a
região do Xingú, no Baixo-Amazonas, acabava de atracar ao pequeno trapiche do
barracão ribeirinho, suspenso nas águas sobre duzentas antenas de madeira, no
ponto em que o rio Mapuá se bifurca para melhor abraçar a floresta alagada, e
onde eu vivia sozinho, com um miserável seringueiro empaludado. A água escura,
quieta durante um mês, ondulava, agora, nervosa, assustada pelo choque das
hélices da embarcação civilizada. Seringueiros opilados, com os olhos quase
escondidos no rosto inchado e terroso, olhavam, de longe, debruçados no
alpendre de zinco do armazém, o "gaiola" formigante de marinheiros e
de "brabos", o qual havia deixado dias antes, e voltaria a rever em
breve, um mundo que eles não veriam mais. Um espanto, um susto alegre, uma
inquietação feliz, parecia apossar-se das coisas, em torno, naquela festa de
meia hora. Dentro de alguns minutos, o navio desceria a corrente do rio,
deixando tudo, de novo, mergulhado no silêncio e na morte.
Embarcada a borracha amassada com
a lama na terra e com o sangue dos meus homens, e recebidas as mercadorias
destinadas aos seringais do centro, o comandante do "gaiola"
chamou-me ao seu camarote, e pediu-me que recebesse no barracão, como um
serviço à sua pessoa e à casa comercial a que a embarcação pertencia, um doente
que vinha a bordo e que talvez não resistisse aos múltiplos inconvenientes da
viagem. Se melhorasse, eu devia mandá-lo, numa canoa, para a foz do rio, onde o
reembarcaria, no regresso. Disse-me isso enquanto me servia um cálice de vinho
do Porto e eu admirava, com inveja, os gabes dourados que lhe enfeitavam o boné
branco e o fardamento cuidado. Sem refletir muito sobre a responsabilidade que
assumia, subornado pela gentileza daquele homem que me levava a civilização e a
perfídia no gargalo de uma garrafa, aquiesci sem relutância. E os marinheiros desembarcaram
para o barracão, onde os mosquitos chiavam na sombra, o corpo macilento de um
indivíduo de quarenta anos, mais ou menos, em cujas linhas fisionômicas, a
enfermidade, e o meio em que ultimamente vivia, haviam alterado os traços de
uma antiga distinção. Nos seus olhos escuros, que a febre incendiava
intermitentemente, boiavam a revelação de uma vida civilizada, a reminiscência
de sociedades polidas, a lembrança inequívoca de um ambiente invulgar. A barba
negra e cerrada, pontilhada de fios de prata, tentava esconder os traços finos,
indícios de origem, do rosto moreno e cavado, que o paludismo esverdeara. As
mãos pequenas e magras que a alisavam, traíam, porém, a dissimulação,
denunciando no gesto elegante e no feitio gracioso a companhia em que se haviam
educado. Ao menor movimento, pareciam comprimir, ainda, a pelica de uma luva ou
uma cintura de mulher.
Desaparecido
o vapor na curva do rio, tratamos, eu e o meu companheiro, de alojar o nosso
hóspede. Enquanto os seringueiros, remando as suas "montarias",
subiam os dois braços fluviais para um novo degredo de trinta dias, dávamos
nós, ao enfermo, o compartimento mais abrigado que havia em nosso ninho de
abutres. Pusemos-lhe à disposição os nossos cobertores, o nosso quinino, as
nossas bolachas, que ele agradecia com desconfiada dignidade, como se estivesse
prisioneiro de selvagens.
Ao fim de dois dias, durante os
quais a febre não o abandonou, aumentando em horas certas, em solavancos que
lhe faziam bater os dentes e chocalhar os ossos, éramos amigos, quase íntimos.
A solidão identifica as almas, e a desgraça as aproxima. No degredo há uma
ânsia permanente de confidências. Fiz-lhe, por isso, as minhas, contei-lhe a
minha existência heróica e atormentada. E ele já me havia dito que era do Rio
de Janeiro, onde se formara em medicina, e onde exercera a profissão durante
dois lustros, com alto sucesso mundano. Abandonara o sul por fastio da vida, e
procurara a Amazônia para refazer os sentidos, entorpecidos da ciência, bêbados
de civilização.
À noite do
terceiro dia, bateram, porém, à porta do meu quarto. Era o caboclo, meu
companheiro, que, encolhido, as mãos unidas no peito, a cabeça guardada nos
ombros, tiritando, matracando as maxilas sem dentes, assaltado também pela
febre, me vinha chamar para ver o nosso hóspede, que regougava sinistramente no
seu aposento. Levantei-me às pressas e atravessei o alpendre. A noite sem lua
estava toda enfeitada de estrelas, que se miravam no espelho quieto do rio. A
floresta, na outra margem, era como um grande muro de bronze edificado sobre
uma lâmina de aço, que lhe duplicava o
perfil. Mil vozes retalhavam o silêncio em pedaços miúdos, tornando-o
indivisível. Batráquios e insetos pareciam procurar um ponto vago no tempo e no
espaço afim de enfiar o alfinete sonoro do seu grito. Uma pirarara fez
espadanar a água, de súbito, em luta com algum peixe de grande vulto, e partiu,
como um torpedo, agitando a superfície do rio. A alma da Natureza dormia, mas o
seu corpo velava, no ritmo inconsciente da vida.
À porta no quarto do enfermo,
parei, escutando. Não havia luz, lá dentro. Da escuridão vinha, porém, uma
agitação de esqueleto, como se os demônios estivessem mudando, àquela hora, o
ossuário de um cemitério. Chamei pelo meu novo amigo, e a sua resposta foi um
uivo estrangulado, seguido de um resfolegar de bomba hidráulica, em que se
misturavam na garganta e nos brônquios o ar da vida e a espuma da morte.Acendi
uma vela e depois de lhe olhar o rosto, angustiosamente alterado, preguei a
estearina no soalho, para aquecer alguns goles d'água, em um caneco de ágata. O
trabalho era, entretanto, difícil. Incomodados pela luz, que se ia refletir na
lama através das frestas do tabuado, os jacarés, que dormiam em baixo do
barracão, davam rabanadas furiosas nas tábuas, abalando-as, aos bufos.E eu,
para evitar que a vela tombasse, amparava-a com uma das mãos, segurando com a
outra o caneco d'água, que precisava aquecer.
Com água quente, a que adicionara
algumas gotas de acônito, o frio diminuiu progressivamente ficando apenas a
febre alta, a devorar o doente. E foi nesse estado que o meu enfermo, num
equilíbrio súbito das suas faculdades de raciocínio, me confessou, com grandes
pausas, como se eu fosse um ministro de Deus; a sua história terrível.
— Eu lhe vou deixar, meu amigo, —
disse, começando, — eu lhe vou deixar, como herança da minha gratidão, o
segredo triste do meu destino e da minha miséria. Uma lição do mundo é sempre
um tesouro. E eu lhe vou entregar, com as mãos vermelhas de sangue, as chaves
do cofre da minha vida.
Os olhos brilharam-lhe sinistros,
reproduzindo a chama da vela, como se guardassem dois esquifes. Interrompeu-se,
de repente, como se se tivesse arrependido. Um largo silêncio, cortado apenas
pela sua respiração agitada e pela vaia fina de um grilo escondido em toda
parte, encheu o quarto. Depois, continuou:
— Na sua idade, eu tinha a alma
congestionada de sonhos, e o coração repleto de ambições, que me torturavam.
Não eram sonhos de riquezas, desejos de domínio, ambições de poderio. Não
queria comandar os homens, que, para mim, não existiam; queria dominar as
mulheres, que, para mim, eram tudo na terra. Queria-as a todas, e como não as
tinha a todas, votava rancor aos homens que possuíam as que não eram minhas.
Era sentimental e egoísta; mas de um egoísmo doentio, que chegava ao delírio
Maridos, noivos, namorados, eram atingidos, todos, pela peçonha do meu
despeito, pela baba do meu ódio. Um beijo estalado na boca de outro, um sorriso
mandado a outro que não a mim, envenenava-me, dava-me uma noite de insônia. Que
as mulheres lindas não fossem minhas; mas, também, que não fossem de outros braços,
de outros lábios, de outra luxúria.
Um regougo, semelhante ao de uma
onda numa urna marinha, interrompeu-o. Tossiu e, vencendo uma dispnéia
angustiosa, reencetou, com dificuldade:
— Essa preocupação turvava até as
minhas conquistas felizes, o meu prazer, as minhas horas de ventura. Quando eu
me apossava de um coração ou de um corpo que pertencia a um esposo, a um
amante, a um namorado mais velho do que eu, essa mesma posse era perturbada
pela visão do que fariam comigo mais tarde, quando eu fosse tomando na terra o
lugar deles, e outros homens mais novos tomassem o meu. Os maridos, os amantes,
os noivos de agora, seriam vingados. Dentro de alguns anos viriam outros homens;
mais jovens, mais vigorosos, mais arrogantes, que tomariam, por sua vez, minha
noiva, minha mulher, minhas amantes. E comecei a odiar os homens.
Os sapos, nas
duas margens do rio soturno, espaçavam o coaxar ensurdecedor, a que se
misturavam ainda as mil vozes, os mil gritos, os mil anseios da noite que
declinava. O enfermo calou-se por um instante, e reatou, ainda mais opresso,
repetindo a última frase:
— Comecei a odiar os homens...
Eram meus inimigos, inimigos da minha ventura. Se eu os não matasse, eles me
matariam, mais tarde, na velhice,
impiedosamente, ferindo-me no coração... Pensei que fosse enlouquecer... Meu
pai morreu louco... Eu tenho um irmão, louco, no Hospício, no Rio de Janeiro...
Mas, era preciso que, depois de mim, não viesse ninguém que me disputasse as
minhas mulheres!
Como se
tivesse medo de mim, olhou-me fixamente, à luz da vela, os olhos febris,
dizendo, rouco, num ímpeto:
— E comecei a matar os homens que
nasciam!
Senti um arrepio de terror. O
doente percebeu o meu espanto, leu-o nos meus olhos e na minha palidez, mas
continuou:
— Minha profissão favorecia-me.
Modifiquei a minha especialidade, entregando-me à obstetrícia e à pediatria. Ia
receber os meus pequeninos inimigos à porta da vida, e declarava-lhes guerra.
As mulheres eram perdoadas, abençoadas, amparadas. Os homens, não; a esses, eu
perseguia implacavelmente com todas as armas traiçoeiras da minha ciência, e só
os abandonava no túmulo, sob as lágrimas e as rosas das mães inconsoláveis... A
minha clínica de crianças era uma hecatombe. Fui, entre elas, um lobo num rebanho!
Uma nova
pausa, mais funda e mais longa, sacudida pela respiração ansiada.
Reatou:
— Um dia, suspeitaram. Era o
escândalo, que se anunciava. Era a condenação, que vinha. Era a prisão
infalível. E eu fugi!
E num arranco:
— Fugi, matando crianças pelo
caminho!
Um tremor mais forte de todo o
seu corpo sacudiu a rede até os punhos. Esperei que continuasse. Como a pausa
fosse demorada e as suas convulsões me enchessem de pavor, corri para o
alpendre, a respirar o hálito da manhã, que nascia. Quando voltei, o aposento
estava em silêncio. Apenas o pavio da vela, que eu deixara no soalho,
agonizava, num lago de cera derretida. Chamei o meu hóspede. Estava morto.
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Nota:
Humberto de Campos: "O Monstro e outros contos" (1932)
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