domingo, 18 de agosto de 2013

Coelho Neto: "Lavradores"

LAVRADORES 

Entre as sabias máximas dos etruscos, esses criadores da riqueza do campo latino, máximas que Plínio, mui judiciosamente, aplicou “orácula”,  uma das mais concisas devia ser escrita em taboas que fossem levantadas em altos postes, fincados nas  encruzilhadas, nos férteis outeiros, entre as  plantações, impondo-se como preceito a todos os  agricultores que, de passagem, de manhã, em rumo  aos talhões e, á tarde, recolhendo á casa, vissem e  meditassem as suas singelas palavras: "Mau é o  lavrador que compra aquilo que a terra lhe pode  dar".

Esses povos de tanta rusticidade, quase bárbaros,  dedicando-se exclusivamente á terra com um amor avaro, vendo num torrão uma riqueza, numa semente de trigo ou de linho ou pão ou o fio,  considerando o alqueive como a melhor fortuna,  esposando a leira pela qual viviam sacrificando aos  deuses para que lhes não faltassem com a água  fecunda nem lhes demorassem nos canteiros as  geadas esterilizadoras, gozando deliciosamente o suave aroma dos fenos  cortados, alegrando-se com o lourejar da seara,  ondulante, extasiando-se com o fresco cantar das regas,  ao mugir melancólico dos gados, ao zumbir dos enxames,  tinham noções exatas da verdadeira economia e da  ciência fácil e tão pouco praticada do bem viver. "Mau é  o lavrador que compra aquilo que a terra lhe pode dar".

Assim tiravam eles da terra o barro e as ripas com  que edificavam a casa e modelavam o forno, a lenha que  queimavam, o trigo que amassavam e coziam, o linho  que as mulheres fiavam e com que teciam os vestidos e a  lençaria domestica, a fruta, o azeite e o vinho.

Nos pastos engordavam o armentio que lhes fornecia  os bois robustos que, ao doce cerrar da tarde, lentamente,  pelos caminhos cheirosos, levavam o pesado carro das  colheitas, a vaca de ubres pejados, a rês para o corte e a  ovelha que se despia da lã para vesti-los.

A água era bebedouro no remanso e, correndo,  escoava na azenha de onde saía repartindo-se em  acéquias que iam abeberar as raízes; e, isolados nos seus  casais, tinham os lavradores todo o necessário para a vida e das sobras abundantes faziam comercio levando-as ás feiras periódicas.

A terra não se recusa a criar a semente qualquer que  ela seja: prometa árvore frondosa ou seja o simples  gérmen de um arbusto; o seu seio acolhedor é uma  grande maternidade — ali acham abrigo favorável todas  as plantas: a seiva que alimenta o jequitibá não deixa  inanida a relva, circula de uma a outra distribuindo-se  eqüitativamente.

Uma das causas da decadência do nosso lavrador é a  mania rotineira da monocultura. A propósito dessa  contumácia intransigente já houve quem declarasse que a  nossa desgraça era o café. Toda a confiança do lavrador  funda-se nessa cultura: o café é o senhor absoluto da  terra, só ele tem o direito de vida, só as suas flores  trescalam, só a sua folhagem, que já cingiu a coroa, é  bela — por ele veio o negro da África, por ele veio o  colono da Europa.

As máquinas, que se instalam nas fazendas, são para  beneficiar o café; os ladrilhos que entram vão dilatar os  terreiros; o adubo que se caldeia vai para o cafezal; o  melhor gado trabalha nos eitos; a gente mais robusta é  para lá destacada. Ali fuzilam as melhores enxadas, a  melhor água corre para os tanques de lavagem e, como  para que lhe não saia das vistas o precioso grão, o  fazendeiro aconchega ao domicilio a casa das máquinas e  as tulhas, para que sempre ouça o frêmito das  Lidgerwood, para que sempre veja o enxame de cascas  voando dos ventiladores, para que sempre tenha, a  acariciar-lhe o olfato, o cheiro acro das sementes novas.

Se há moinho para triturar o milho é um pobre  casebre esquecido num fundo de grota; se há paiol é uma  minaria — só o café tem agasalho digno em taboas lisas,  sob telhados, entre muros fortes. Se alguém, mostrando  uma faixa de terra, lembra ao lavrador a vantagem de  uma plantação de cereais ou de cana ou indica uma  baixada úmida como excelente vargedo para um  arrozal, ele sorri superiormente declarando: “Não vale a  pena, isso é quitanda. O café dá para tudo”. O resultado é  que não há residência mais desprovida que a do fazendeiro — ele compra os cereais para a despensa, a  carne, o toucinho, o fubá, o milho e a forragem para  os animais.

Entretanto no quintalejo do colono europeu  viceja a horta sempre fresca de rega, o milho  apendoa-se, enfeixam-se touceiras de cana, sobem  verdes latadas de vinha e de gordas abóboras,  verdeja em estendal a rama da batata, o feijoal  enfestoa espiraladamente as hastes dos milhos e  ainda no chiqueiro grunhe o cevado, coincham os  bacorinhos, a cabra lá está de peitos rijos,  ruminando; na casa, pendente das cordas,  defumando-se, os salpicões, o chouriço, o lardo e a  um canto, em largas vasilhas, a carne em salga.

A previdência do campônio europeu, que vem  da miséria, tão bem descrita por Michelet, tendo de  realizar prodígios de trabalho para fecundar vageiros e sáfaros terrenos eriçados de pedregulho, colhendo uns galões de vinho, que não bebe, umas medidas de trigo, que não come, umas estrigas de Unho, que não veste, porque tudo é para o mercado  ficando-lhe apenas a broa e o cânhamo de que se  nutre e com que se cobre, sempre a pensar nos  invernos, guardando avaramente todo o ramalho que  encontra, aproveitando todas as migalhas, deve ser  um exemplo para o lavrador brasileiro.

Posto que, com a fertilidade da terra e a amenidade do clima, o colono vá, aos poucos,  relaxando ainda assim com a idéia fixa de tornar á  pátria levando o necessário para viver regaladamente  no seu campo natal, trabalha e acumula, passando  sobriamente porque, pelo habito e ainda pela  ambição, o melhor da colheita e da criação desce ao  mercado mais próximo, quando não é vendido ao próprio  fazendeiro.

E o preço do café mantém-se miserável, mal dá  para o custeio da fazenda, e o plantador, sem  recursos num mar de abundância, com os terreiros  cobertos, as tulhas atestadas e ainda os galhos  vergados de fruto, sai a procurar capitães para  acudir ás necessidades da lavoura: ao salário do  colono, á provisão da despensa e, como sempre  viveu em fortuna, sem preocupação de miséria, não  se retrai — mantém, como d'antes, a mesa farta, os  quartos de hóspedes preparados, veste a família com  esplendor, confiado na alta do precioso produto,  certo de que, com um simples movimento na praça,  resgatará o seu compromisso hipotecário, saldará  os seus débitos particulares, ficando lhe ainda  capital bastante para abastecer a casa e beneficiar a  terra no ano próximo de compensadora carga,  lindamente anunciada pela fluorescência.

Infelizmente, porém, a sua ilusão desfaz-se e os  dias correm. Vai-se-lhe a ultima nota e só, diante do  cofre aberto e vazio, o grande senhor rural  compreende a sua miséria e, com as folhas que   arranca ao bloco do anuário, vão-se-lhe as esperanças.

E que sucede? O colono, submisso e risonho  enquanto recebe regularmente a feria, torna-se  altivo e hostil á falta de um pagamento. O  fazendeiro, sitiado pelos seus próprios homens,  vendo aproximar-se o dia do vencimento da letra  fatal, esmorece. O café baixa a mais e mais, as  noticias do comissário são desesperadoras — que  fazer ?

Lá fora, na colônia, o administrador procura,  debalde, convencer os trabalhadores a voltarem ao serviço — negam-se, exigem o pagamento imediato,  ameaçam com o cônsul, com o ministro, alguns até no rei  falam e logo, ingratamente, rompem referencias  despeitadas á miséria da terra, á inclemência do sol, á  aspereza dos outeiros; lamentam as fadigas, as privações;  referem-se a moléstias imaginárias, arrependidos de  haver deixado a pátria, linda e rica, com as suas vinhas e  os seus trigais cor de ouro. E o fazendeiro, emparedado,  sem esperança de salvação, vê, com terror, chegar a data  tremenda.

Lá fora o cafezal murmulha com o vento, jorram as  águas soltas pelos canais, o gado muge disperso e na  casa, a portas fechadas, a família reunida despede-se,   chorando, daquelas veneradas paredes que foram  levantadas pelos avós, daquelas terras amadas, para  recomeçar a vida, onde? no desconhecido, aventurosamente, miseravelmente e com o humilde  vexame dos decaídos.

Os otimistas dirão que exagero e eu respondo-lhes  que traio a verdade para não a mostrar tão desoladora  como se me apresentam; sou, porém, do numero dos  desesperados, dos que vêem perdido o campo, dos que  não confiam na terra, não! Ha. um mal que tende a  desaparecer, porque vai sendo substituído por um bem  — o mal é o lavrador por herança, o que entrou na vida  pela porta doirada, o que não conheceu o trabalho e foi  sempre um mimoso da Sorte; o que achou a arvore  carregada, tendo apenas o trabalho de estender a mão e  colher.

Criado na abastança, entre negros humildes, vendo-se  obedecido em todos os caprichos, senhor de homens, teve   uma grande e espantada surpresa, só comparável á que teria um pastor que visse, de  repente, tresmalhar todo o seu rebanho, quando, a 13 de  maio, os negros, deixando os ferros, saíram para a  estrada livre, ansiosos de liberdade.

Sem expediente, só, diante do vasto domínio, como  em ermo mal assombrado, o fazendeiro julgou-se  perdido. Ouvindo, porém, falar em colonos, tratou de   adquiri-los. Despachou emissários para contratá-los por  qualquer preço, contanto que não se perdesse a colheita  nem o mato subisse sufocando a lavoura. E os colonos  chegaram, a fazenda perdeu a sua antiga feição feudal —  o sistema modificou-se radicalmente, passando o senhor  a patrão: o ato humilhante da compra foi substituído  pelo compromisso recíproco do contrato.

Esse foi o primeiro golpe no fazendeiro antigo ou,  dizendo melhor — foi a morte do valho regime de   trabalho. O pagamento das primeiras ferias foi feito com  mal contida indignação. Aqueles que acudiam à chamada  com as suas cadernetas eram como ladrões que  assaltavam. Essa mesma revolta cessou e o fazendeiro  julgou-se, de novo, feliz quando viu chegar o primeiro  carro da safra a transbordar pelos caminhos o café em  bagas purpurinas.

A terra, essa continuava submissa e fecunda, bela e fiel escrava! e, confiado nela, o fazendeiro, á primeira  dificuldade, sem energia para vencê-la, sem animo para  afrontá-la e não podendo privar-se dos gozos habituais  — o seu descanso, a mesa lauta, o seu verão nas praias, o  sem inverno na cidade, faustosamente instalado,  confiando a fazenda ao administrador, recorria ao  empréstimo, prendia-se á hipoteca e, dessa hora em  diante, enlaçado pelo constritor, lá foi indo para a miséria, aos arrancos, torturado, ansiado, até a hora dolorosa do  abandono da casa.

Para salvar a lavoura aí está o fazendeiro novo,  tipo perfeito do homem de ação, inteligente e enérgico, empreendedor e ativo. D’esse não fica na  varanda molemente estendido no pliant ou na rede,  ouvindo o cantarolar guaiado das lavadeiras riacho e o zumbir monótono das abelhas errantes.  Cedo está de pé, pronto para sair, a cavalo ou de  trole, e lá vai, ao ar fino da manhã, rompendo as  nevoas que se desenrolam, fiscalizar o trabalho.  Caminha pelos torrões que o arado levanta ou pela  terra fofa que espera a sementeira, olha, examina,  indaga. Entra no cafezal, dirige a carpa ou anima a  colheita, lança uma vista de olhos ao gado no pasto,  sobe ao moinho e, sem maior atenção á poeirada  loura que se desprende da mó, toma o fubá entre os  dedos, experimenta-o. Corrige uma falta, ativa um  serviço, atende a uma reclamação, despacha um  próprio e ei-lo na casa das máquinas atento á  pesagem, depois nas tulhas e já o vêem a correr á  estrebaria examinando as baias para que não falte a  ração aos animais e pára junto ao chiqueiro, chega  ao paiol, percorre a abegoaria, vendo como  interessado, não confiando no administrador, que é  apenas um intermediário entre ele e os colonos.

Se, pelo céu, se vão arrumando nuvens de chuva  e há café nos terreiros, ele é o primeiro a lançar  mão do rodo dando o exemplo para que se ajunte e  recolha e, á noite, na sala vasta, enquanto a esposa  acalenta o pimpolho, debruçado sobre um livro, cercado de jornais e revistas, lê, anota observações  sobre a terra, respigando o que lhe convém, aqui,  ali: uma máquina útil, uma sementeira rica, um novo  adubo, certo processo de enxertia e, ao primeiro  bocejo, levanta-se, abre uma janela, respira largamente o ar puro da noite, sentindo em torno a  terra viva e forte, tratada carinhosamente como  animal de raça, fecundando, florindo, frutificando ao esplendido luar silencioso.

Dirão sorrindo: “Mas não há vida mais material, Deus do céu! Não há vida melhor nem há vida  mais calma!”

Que falem os errantes, esses que palmilham, sem  destino, as estradas que dantes pisavam como  senhores e que agora vão trilhando como banidos.  Essa é a vida feliz do lavrador inteligente para o  qual a crise é apenas um acidente e não um  descalabro.

Saiba o lavrador aproveitar a terra e o elemento  novo que a fecunda e a lavoura, no Brasil, será, em  pouco, urna das mais prosperas e compensadoras do   mundo. Para isso, porém, é necessário que não fique  simplesmente nessa ilusão do café, porque a  agricultura não se limita nem se pôde limitar a uma  produção única. O país do vinho é o país do azeite,  é o país do pão, é o país do linho e é o país da fruta.  Da nossa agricultura pode, e com razão, dizer-se que  dá apenas para encher uma xícara porque, em  verdade, toda ela se reduz ao café, ao sul, e ao  açúcar, ao norte.

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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.

Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto apresentam sentido obscuro ou são resultados de erros no processo de digitalização da obra. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

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