LAVRADORES
Entre as sabias máximas dos etruscos, esses criadores da
riqueza do campo latino, máximas que Plínio, mui judiciosamente, aplicou “orácula”, uma das mais concisas devia ser escrita em
taboas que fossem levantadas em altos postes, fincados nas encruzilhadas, nos férteis outeiros, entre
as plantações, impondo-se como preceito
a todos os agricultores que, de
passagem, de manhã, em rumo aos talhões
e, á tarde, recolhendo á casa, vissem e
meditassem as suas singelas palavras: "Mau é o lavrador que compra aquilo que a terra lhe
pode dar".
Esses povos de tanta rusticidade, quase bárbaros, dedicando-se exclusivamente á terra com um
amor avaro, vendo num torrão uma riqueza, numa semente de trigo ou de linho ou pão ou o fio, considerando o alqueive
como a melhor fortuna, esposando a leira
pela qual viviam sacrificando aos deuses
para que lhes não faltassem com a água
fecunda nem lhes demorassem nos canteiros as geadas esterilizadoras, gozando
deliciosamente o suave aroma dos fenos
cortados, alegrando-se com o lourejar da seara, ondulante, extasiando-se com o fresco cantar
das regas, ao mugir melancólico dos
gados, ao zumbir dos enxames, tinham
noções exatas da verdadeira economia e da
ciência fácil e tão pouco praticada do bem viver. "Mau é o lavrador que compra aquilo que a terra lhe
pode dar".
Assim tiravam eles da terra o barro e as ripas com que edificavam a casa e modelavam o forno, a
lenha que queimavam, o trigo que
amassavam e coziam, o linho que as
mulheres fiavam e com que teciam os vestidos e a lençaria domestica, a fruta, o azeite e o
vinho.
Nos pastos engordavam o armentio que lhes fornecia os bois robustos que, ao doce cerrar da
tarde, lentamente, pelos caminhos
cheirosos, levavam o pesado carro das
colheitas, a vaca de ubres pejados, a rês para o corte e a ovelha que se despia da lã para vesti-los.
A água era bebedouro no remanso e, correndo, escoava na azenha de onde saía repartindo-se
em acéquias que iam abeberar as raízes;
e, isolados nos seus casais, tinham os
lavradores todo o necessário para a vida e das sobras abundantes faziam
comercio levando-as ás feiras periódicas.
A terra não se recusa a criar a semente qualquer que ela seja: prometa árvore frondosa ou seja o
simples gérmen de um arbusto; o seu seio
acolhedor é uma grande maternidade — ali
acham abrigo favorável todas as plantas:
a seiva que alimenta o jequitibá não deixa
inanida a relva, circula de uma a outra distribuindo-se eqüitativamente.
Uma das causas da decadência do nosso lavrador é a mania rotineira da monocultura. A propósito dessa contumácia intransigente já houve quem
declarasse que a nossa desgraça era o
café. Toda a confiança do lavrador
funda-se nessa cultura: o café é o senhor absoluto da terra, só ele tem o direito de vida, só as
suas flores trescalam, só a sua
folhagem, que já cingiu a coroa, é bela
— por ele veio o negro da África, por ele veio o colono da Europa.
As máquinas, que se instalam nas fazendas, são para beneficiar o café; os ladrilhos que entram
vão dilatar os terreiros; o adubo que se
caldeia vai para o cafezal; o melhor
gado trabalha nos eitos; a gente mais robusta é
para lá destacada. Ali fuzilam as melhores enxadas, a melhor água corre para os tanques de lavagem
e, como para que lhe não saia das vistas
o precioso grão, o fazendeiro aconchega
ao domicilio a casa das máquinas e as
tulhas, para que sempre ouça o frêmito das
Lidgerwood, para que sempre
veja o enxame de cascas voando dos
ventiladores, para que sempre tenha, a
acariciar-lhe o olfato, o cheiro acro das sementes novas.
Se há moinho para triturar o milho é um pobre casebre esquecido num fundo de grota; se há
paiol é uma minaria — só o café tem
agasalho digno em taboas lisas, sob
telhados, entre muros fortes. Se alguém, mostrando uma faixa de terra, lembra ao lavrador a
vantagem de uma plantação de cereais ou
de cana ou indica uma baixada úmida como
excelente vargedo para um arrozal, ele
sorri superiormente declarando: “Não vale a
pena, isso é quitanda. O café dá para tudo”. O resultado é que não há residência mais desprovida que a
do fazendeiro — ele compra os cereais para a despensa, a carne, o toucinho, o fubá, o milho e a
forragem para os animais.
Entretanto no quintalejo do colono europeu viceja a horta sempre fresca de rega, o
milho apendoa-se, enfeixam-se touceiras
de cana, sobem verdes latadas de vinha e
de gordas abóboras, verdeja em estendal
a rama da batata, o feijoal enfestoa
espiraladamente as hastes dos milhos e
ainda no chiqueiro grunhe o cevado, coincham os bacorinhos, a cabra lá está de peitos
rijos, ruminando; na casa, pendente das
cordas, defumando-se, os salpicões, o
chouriço, o lardo e a um canto, em
largas vasilhas, a carne em salga.
A previdência do campônio europeu, que vem da miséria, tão bem descrita por Michelet,
tendo de realizar prodígios de trabalho
para fecundar vageiros e sáfaros terrenos eriçados de pedregulho, colhendo uns
galões de vinho, que não bebe, umas medidas de trigo, que não come, umas
estrigas de Unho, que não veste, porque tudo é para o mercado ficando-lhe apenas a broa e o cânhamo de que
se nutre e com que se cobre, sempre a
pensar nos invernos, guardando
avaramente todo o ramalho que encontra,
aproveitando todas as migalhas, deve ser
um exemplo para o lavrador brasileiro.
Posto que, com a fertilidade da terra e a amenidade do
clima, o colono vá, aos poucos,
relaxando ainda assim com a idéia fixa de tornar á pátria levando o necessário para viver
regaladamente no seu campo natal,
trabalha e acumula, passando sobriamente
porque, pelo habito e ainda pela
ambição, o melhor da colheita e da criação desce ao mercado mais próximo, quando não é vendido ao
próprio fazendeiro.
E o preço do café mantém-se miserável, mal dá para o custeio da fazenda, e o plantador,
sem recursos num mar de abundância, com
os terreiros cobertos, as tulhas
atestadas e ainda os galhos vergados de
fruto, sai a procurar capitães para
acudir ás necessidades da lavoura: ao salário do colono, á provisão da despensa e, como
sempre viveu em fortuna, sem preocupação
de miséria, não se retrai — mantém, como
d'antes, a mesa farta, os quartos de
hóspedes preparados, veste a família com
esplendor, confiado na alta do precioso produto, certo de que, com um simples movimento na
praça, resgatará o seu compromisso
hipotecário, saldará os seus débitos
particulares, ficando lhe ainda capital
bastante para abastecer a casa e beneficiar a
terra no ano próximo de compensadora carga, lindamente anunciada pela fluorescência.
Infelizmente, porém, a sua ilusão desfaz-se e os dias correm. Vai-se-lhe a ultima nota e só,
diante do cofre aberto e vazio, o grande
senhor rural compreende a sua miséria e,
com as folhas que arranca ao bloco do
anuário, vão-se-lhe as esperanças.
E que sucede? O colono, submisso e risonho enquanto recebe regularmente a feria,
torna-se altivo e hostil á falta de um
pagamento. O fazendeiro, sitiado pelos
seus próprios homens, vendo aproximar-se
o dia do vencimento da letra fatal, esmorece.
O café baixa a mais e mais, as noticias
do comissário são desesperadoras — que
fazer ?
Lá fora, na colônia, o administrador procura, debalde, convencer os trabalhadores a
voltarem ao serviço — negam-se, exigem o pagamento imediato, ameaçam com o cônsul, com o ministro, alguns
até no rei falam e logo, ingratamente,
rompem referencias despeitadas á miséria
da terra, á inclemência do sol, á
aspereza dos outeiros; lamentam as fadigas, as privações; referem-se a moléstias imaginárias, arrependidos
de haver deixado a pátria, linda e rica,
com as suas vinhas e os seus trigais cor
de ouro. E o fazendeiro, emparedado, sem
esperança de salvação, vê, com terror, chegar a data tremenda.
Lá fora o cafezal murmulha com o vento, jorram as águas soltas pelos canais, o gado muge
disperso e na casa, a portas fechadas, a
família reunida despede-se, chorando,
daquelas veneradas paredes que foram
levantadas pelos avós, daquelas terras amadas, para recomeçar a vida, onde? no desconhecido,
aventurosamente, miseravelmente e com o humilde
vexame dos decaídos.
Os otimistas dirão que exagero e eu respondo-lhes que traio a verdade para não a mostrar tão
desoladora como se me apresentam; sou,
porém, do numero dos desesperados, dos
que vêem perdido o campo, dos que não
confiam na terra, não! Ha. um mal que tende a
desaparecer, porque vai sendo substituído por um bem — o mal é o lavrador por herança, o que
entrou na vida pela porta doirada, o que
não conheceu o trabalho e foi sempre um
mimoso da Sorte; o que achou a arvore
carregada, tendo apenas o trabalho de estender a mão e colher.
Criado na abastança, entre negros humildes, vendo-se obedecido em todos os caprichos, senhor de
homens, teve uma grande e espantada
surpresa, só comparável á que teria um pastor que visse, de repente, tresmalhar todo o seu rebanho,
quando, a 13 de maio, os negros,
deixando os ferros, saíram para a
estrada livre, ansiosos de liberdade.
Sem expediente, só, diante do vasto domínio, como em ermo mal assombrado, o fazendeiro
julgou-se perdido. Ouvindo, porém, falar
em colonos, tratou de adquiri-los.
Despachou emissários para contratá-los por
qualquer preço, contanto que não se perdesse a colheita nem o mato subisse sufocando a lavoura. E os
colonos chegaram, a fazenda perdeu a sua
antiga feição feudal — o sistema
modificou-se radicalmente, passando o senhor
a patrão: o ato humilhante da compra foi substituído pelo compromisso recíproco do contrato.
Esse foi o primeiro golpe no fazendeiro antigo ou, dizendo melhor — foi a morte do valho regime
de trabalho. O pagamento das primeiras
ferias foi feito com mal contida indignação.
Aqueles que acudiam à chamada com as
suas cadernetas eram como ladrões que
assaltavam. Essa mesma revolta cessou e o fazendeiro julgou-se, de novo, feliz quando viu chegar o
primeiro carro da safra a transbordar
pelos caminhos o café em bagas
purpurinas.
A terra, essa continuava submissa e fecunda, bela e fiel
escrava! e, confiado nela, o fazendeiro, á primeira dificuldade, sem energia para vencê-la, sem
animo para afrontá-la e não podendo
privar-se dos gozos habituais — o seu
descanso, a mesa lauta, o seu verão nas praias, o sem inverno na cidade, faustosamente
instalado, confiando a fazenda ao administrador,
recorria ao empréstimo, prendia-se á
hipoteca e, dessa hora em diante,
enlaçado pelo constritor, lá foi indo para a miséria, aos arrancos, torturado,
ansiado, até a hora dolorosa do abandono
da casa.
Para salvar a lavoura aí está o fazendeiro novo, tipo perfeito do homem de ação, inteligente e
enérgico, empreendedor e ativo. D’esse não fica na varanda molemente estendido no pliant ou na rede, ouvindo o cantarolar guaiado das lavadeiras riacho
e o zumbir monótono das abelhas errantes. Cedo está de pé, pronto para sair, a cavalo ou
de trole, e lá vai, ao ar fino da manhã,
rompendo as nevoas que se desenrolam,
fiscalizar o trabalho. Caminha pelos
torrões que o arado levanta ou pela terra
fofa que espera a sementeira, olha, examina, indaga. Entra no cafezal, dirige a carpa ou
anima a colheita, lança uma vista de
olhos ao gado no pasto, sobe ao moinho
e, sem maior atenção á poeirada loura
que se desprende da mó, toma o fubá entre os dedos, experimenta-o. Corrige uma falta, ativa
um serviço, atende a uma reclamação,
despacha um próprio e ei-lo na casa das
máquinas atento á pesagem, depois nas
tulhas e já o vêem a correr á estrebaria
examinando as baias para que não falte a ração aos animais e pára junto ao chiqueiro,
chega ao paiol, percorre a abegoaria,
vendo como interessado, não confiando no
administrador, que é apenas um
intermediário entre ele e os colonos.
Se, pelo céu, se vão arrumando nuvens de chuva e há café nos terreiros, ele é o primeiro a
lançar mão do rodo dando o exemplo para
que se ajunte e recolha e, á noite, na
sala vasta, enquanto a esposa acalenta o
pimpolho, debruçado sobre um livro, cercado de jornais e revistas, lê, anota observações sobre a terra, respigando o que lhe convém,
aqui, ali: uma máquina útil, uma
sementeira rica, um novo adubo, certo
processo de enxertia e, ao primeiro
bocejo, levanta-se, abre uma janela, respira largamente o ar puro da
noite, sentindo em torno a terra viva e
forte, tratada carinhosamente como
animal de raça, fecundando, florindo, frutificando ao esplendido luar
silencioso.
Dirão sorrindo: “Mas não há vida mais material, Deus do
céu! Não há vida melhor nem há vida mais
calma!”
Que falem os errantes, esses que palmilham, sem destino, as estradas que dantes pisavam
como senhores e que agora vão trilhando
como banidos. Essa é a vida feliz do
lavrador inteligente para o qual a crise
é apenas um acidente e não um
descalabro.
Saiba o lavrador aproveitar a terra e o elemento novo que a fecunda e a lavoura, no Brasil,
será, em pouco, urna das mais prosperas
e compensadoras do mundo. Para isso,
porém, é necessário que não fique
simplesmente nessa ilusão do café, porque a agricultura não se limita nem se pôde limitar
a uma produção única. O país do vinho é
o país do azeite, é o país do pão, é o
país do linho e é o país da fruta. Da
nossa agricultura pode, e com razão, dizer-se que dá apenas para encher uma xícara porque,
em verdade, toda ela se reduz ao café,
ao sul, e ao açúcar, ao norte.
---
---
Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado
pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto apresentam sentido
obscuro ou são resultados de erros no processo de digitalização da obra. Assim,
caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades
ortográficas, entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário