LADRÃO!...
A sala do júri da cidade
provinciana enchera-se, desde o amanhecer, da melhor gente, não só do lugar, do
perímetro urbano, como de todo o município e, ainda, dos municípios vizinhos. O
processo que naquele dia se ia julgar, era, talvez, o mais sensacional formado
na comarca. Tratava-se, na opinião geral, de um desses casos de degradação pela
miséria ou pelo vício, da queda inesperada de um rapaz ainda novo, e dos mais
considerados na sociedade local, da revelação, em suma, de um caráter baixo e
depravado, que se disfarçara, até então, sob a roupagem do brio, da honra e das
boas maneiras.
Amplo e simples, o salão do
tribunal era uma grande peça com doze janelas, na ala direita do andar térreo e
único da Câmara Municipal. Sobre um estrado, a mesa pesada e tradicional, para
o juiz e os auxiliares. Em frente ao magistrado, o tosco banco dos réus. Ao
lado, separado por uma grade convencional, os membros do conselho de sentença.
Do lado oposto, a tribuna, pequeno púlpito de roça. E atrás, como no recinto de
um cinema, os bancos para os espectadores, nos quais a multidão se comprimia,
abanando-se com os leques, com os lenços, com os chapéus. Pintadas recentemente,
as paredes eram brancas, de cal. Nestas, uma nódoa única, e essa mesma,
sagrada: a imagem do Crucificado, a cabeça pendente, os braços abertos e
flácidos ao peso do corpo, como num conforto triste aos que fossem, como ele,
vitimas da justiça dos homens.
Embrulhado na sua toga, o juiz
apareceu, cercado pelo silêncio geral. Era um homem alto, seco, de tez tostada,
bigode curto e grisalho. Houve um movimento de cadeiras. A campainha soou, como
nos atos litúrgicos. E a uma ordem do magistrado, entrou o réu, entre dois
soldados.
Abelardo Padilha Porto era
acadêmico de medicina no Rio quando, com a morte do pai, teve de interromper os
estudos e regressar precipitadamente à sua cidade natal. Os negócios do velho
agricultor não tinham corrido bem, nos últimos tempos. Endividado, os credores,
logo após a morte do devedor, haviam-se apossado da fazenda, da casa, do gado,
das plantações. E se ele, e a velha mãe, ainda viviam na propriedade, era
apenas enquanto esta não era vendida, para rateio judiciário do produto. Era
esta a sua situação de pobreza, e de vergonha iminente, quando se deu o crime,
que espantara a cidade.
Entre os
estabelecimentos mais movimentados da rua do Sal, estava o do português Antônio
Rocha, constituído por uma casa de secos e molhados, cujo comércio diário subia
a várias centenas de mil réis. A casa de negócio do gordo comerciante era, como
em geral sucede no interior, o desdobramento, apenas, da sua casa de moradia.
Com quatro portas de frente, três pertenciam ao armazém, e uma, apenas, à
família, instalada nos fundos do prédio. A entrada para a casa de residência
era, assim, independente; e feita por um corredor, comunicando-se, embora, a
sala de jantar com o armazém, para o trânsito dos moradores.
Era aí, segregada do mundo, sem
uma janela por onde olhasse a rua, que vivia, há dois anos, uma das moças mais
bonitas da modesta cidade provinciana. Casada por necessidade, escondera no seu
coração, ao entregar-se para sempre ao homem que era o seu marido, uma afeição
que lhe nascera na infância, e que sabia correspondida. Por vários anos
relutara, na esperança de uma longínqua felicidade. E quando não pudera mais,
quando a velha mãe, já tuberculosa, lhe anunciou que não duraria muito na
terra, foi que resolveu aceder ao pedido de casamento do vendeiro português,
entregando-lhe o seu corpo e o seu destino sem, contudo, entregar-lhe a sua
alma.
A chegada de Abelardo Padilha ao
município, para liquidar os negócios paternos, havia abalado, fundo, o coração
de Santinha Rocha. Amava-o como nos tempos de menina, e, se a sua virtude, a
sua condição de mulher honesta, lhe não permitiam mais a realização de um sonho
que alimentara desde criança, restava-lhe, pelo menos, o consolo de dar-lhe, na
situação que atravessava, uma demonstração concreta, e pura, da sua amizade de
irmã. Possuía economias, feitas pouco a pouco, possuía jóias, que o marido lhe havia
dado; e tudo aquilo seria dele, do homem a quem amara sempre, daquele que fora,
na vida, a única esperança do seu destino irremediável. E se ela possuía meios,
recursos sem aplicação, por que não o socorria, evitando-lhe uma vergonha, e,
com a vergonha, a miséria, a fome, e, quem sabe? o suicídio aos olhos da pobre
mãe entrevada? Urgia, pois, chamá-lo, falar com ele, socorrê-lo. Procurá-lo,
não ser ia possível, pois que o marido não a deixava sair desacompanhada. O
remédio, era, portanto, fazê-lo vir à sua casa, sem testemunhas, na noite em
que Antônio estivesse ausente.
O processo
era perigoso, mas era o único. Ademais, onde a estrada escura e coberta de
espinhos que o Amor não ilumine e recubra de flores? E foi instado, solicitado,
insistido, por dois, cinco, dez bilhetes de coração, que o Abelardo aquiescera
em penetrar, naquela noite triste, na casa do comerciante.
Antônio da Rocha havia saído, já
há meia hora, em visita a um amigo, quando o vulto do antigo estudante surgiu à
esquina, à claridade medrosa do pequeno lampião solitário. Parou, olhou em
torno, examinando a rua. Não havia ninguém. Cauteloso, mergulhou de novo na
sombra, e caminhava cosido com a parede, quando, em frente, exatamente, à porta
do Antônio da Rocha, ouviu o seu nome, num sussurro, que o fizera estremecer:
— Abelardo... Entra!...
E logo duas mãos esguias,
geladas, que apertavam as suas no escuro, e que, posta a porta no trinco, pois
que o marido havia levado a chave, o conduziam, amigas, para a sala de jantar.
Pondo o
coração nas palavras, a moça contou-lhe, nervosa, os olhos cheios d'água, o
motivo daquela temeridade. Que ele não fizesse mau juízo da sua virtude, da sua
seriedade de mulher. Amava-o, sem dúvida; mas amava-o com saudade, não com
esperança. Quem o havia chamado ali, não era a noiva, era a irmã, a companheira
dos outros tempos. Queria-o de todo o coração. E não consentiria que ele, e
principalmente sua mãe, tão idosa e tão santa, passassem pela vergonha de serem
postos na rua, sem um abrigo ou um pedaço de pão.
— Não é uma esmola que te dou,
Abelardo; é um empréstimo que te faço! — disse, estendendo-lhe um maço de
cédulas, que o rapaz, com a vergonha no rosto, recusava aceitar.
Nesse
momento, porém, a porta estalou na fechadura.
— Meu Deus!... O Antônio!... —
gemeu a moça, com olhos de terror.
E como
alucinada, empurrando o rapaz pela porta que dava para o armazém:
— Foge!... Foge!... Pelo amor de
Deus!...
E enfiando-lhe o dinheiro no
bolso do casaco, às pressas:
— Toma!... Foge!...
Pesado e mole, com a atenção emaranhada
nas cifras, o vendeiro levou, ainda, alguns minutos para limpar os pés no
capacho, trancar a porta, experimentar os ferrolhos; e minutos tão longos que,
quando chegou à sala de jantar, a mulher já estava no quarto de dormir,
simulando o primeiro sono.
Antônio da
Rocha fora criado, porém, com espírito de prudência e sentido de previsão. Três
vezes por semana, antes de deitar-se, tomava de uma vela e percorria,
examinando meticulosamente os menores recantos, os dois compartimentos do
armazém. E naquela noite, mandava-lhe a consciência, mecanicamente, que
cumprisse aquela obrigação.
A vela na mão
esquerda, a direita no bolso da calça, o comerciante caminhava, despreocupado,
entre pilhas de charque e sacos de arroz, quando ouviu, de súbito, um rumor de
papéis remexidos. Estacou desconfiado e, depois de prestar melhor ouvido ao
barulho, regressou ao quarto de dormir, apanhando o revólver e dizendo, para a
mulher:
— Temos ladrão em casa... Vem cá!
— Antônio!... — exclamou a moça,
sentando-se repentinamente na cama, as mãos na cabeça.
Tomando aquela exclamação como um
grito de medo, Antônio da Rocha marchou, resoluto, para o armazém. E, à porta
do compartimento das vendas, gritou:
— Quem está aí?
E outra vez:
— Se não responder, eu atiro!
E esse tempo,
o comerciante, que apagara a vela, havia já alcançado o comutador da
eletricidade. E quando uma onda de claridade se espalhou pela casa, iluminando
tudo, Antônio da Rocha estacou, estarrecido: diante dele, encostado a uma das
prateleiras, estava o "doutor" Abelardo Padilha, corretamente
vestido, a fisionomia serena, tendo nas mãos, amontoadas em pilhas, várias
mercadorias apanhadas apressadamente no escuro: latas de leite condensado,
vidros de conserva, maços de fósforos, um queijo, um pequeno embrulho de café.
— O senhor... um ladrão!... —
exclamou o vendeiro, a boca torcida, em uma ironia que era, ao mesmo tempo, de
raiva e prazer.
A essas palavras, Abelardo
Padilha estremeceu. Uma onda de sangue inundou-lhe o rosto, cegando-o. Teve
ímpetos de atirar tudo aquilo para o lado, e estrangular o miserável que assim
o insultava. Lembrou-se, porém, de Santinha, da sua reputação, do seu destino,
do dever, que lhe cabia, de salvá-la, dando a sua honra de homem pela sua honra
de mulher. E, baixando a cabeça, deixou cair, tudo aquilo, com estrondo, no
chão.
E ali estava,
agora, diante da cidade toda, para ser julgado.
— O acusado — indagou o juiz, a voz
pausada e serena, — o acusado confessa que penetrou, altas horas da noite, em
um estabelecimento comercial, cujas portas se achavam fechadas... Que motivo o
levou ali?
— O roubo, sr. juiz! — declarou
Padilha, a voz trêmula.
E mergulhando
a cabeça entre os braços desatou a chorar...
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Nota:
Humberto de Campos: "O Monstro e outros contos" (1932)
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