domingo, 25 de agosto de 2013

Fialho de Almeida: "Sempre Amigos"

SEMPRE AMIGOS

Joana  tinha já  dois  pequenos.  O  Ricardo,  de cinco anos, fulvo como um  novilho, e o João, pequerrucho de peito. Era uma rapariga alta, músculo duro  e sobrancelha espessa, cujos punhos podiam amassar sem cansaço alqueires e  alqueires de pão, e cujos quadris agitados na marcha, sob as saias de baetilha avivadas de  azul,  revelavam a sólida  enformatura  montanhesa das  primitivas  mulheres,  tostadas e laboriosas.  Casara  havia  seis  anos com o Jerolmo,  por  uma vindima mais fértil. E ambos pobres, ela filha mais nova de um maioral  do conselheiro e ele ganhão da herdade de Valparaíso, tinham gostado um do  outro, bailando depois nas romarias do Verão, procurando-se instintivamente  nas ceifas e mondas e aos domingos à hora da missa conventual. Não estava  arrependida  de haver  casado,  não.  O  Jerolmo era  trabalhador  incansável  e  sadio; Joana começara por namorar-lhe o peito cabeludo e trigueiro e a forte  caixa  de pulmões  dilatada a  cada  esforço  de trabalho; cativara-a  além disso, depois, a sua mansa maneira de dizer as coisas, sem notas altas na voz e sem  impaciências nervosas  de bilioso,  a  sua  vida  toda regulada  por  hábitos e a  condescendência tida para os velhos. 

De uma vez vira-o erguer-se de punho cerrado e olho torvo a desancar numa malta que primeiro o espicaçara de bestialidades. Até ali, todos de boa saúde,  louvado Deus! Seis anos de ventura decorrida sem atributos e sem nuvens, E  os  dois rapazitos!... Lembrava-se  dos  terrores  do primeiro  parto e das  alternativas de humor características, os suores dorsais e frios, a dorzinha vaga  primeiro e intensa depois, em toda a região dilatada. 

Em certos  momentos,  um  mundo de  fantasias,  projetando-se-lhe  do  fantoscópio  da  mente,  inundava-a  de fotosferas de luminosa  essência  —  se  seria  um  pequeno  valentão capaz de ajudar o pai,  se  seria  uma  rapariga de  calcanhar quadrado e dentes sólidos, que enchesse de cantigas e de atividade o ninho!. .  Todas as noites, à hora da ceia, o casal acumulava e destruía planos,  fazendo e desfazendo receios — perdidas evocações desse primeiro tempo de  esposa!  ..   Mirando a  casita  e  as cadeiras de Évora  da  casa  de fora,  as  prateleiras de louça e as quatro garrafas de vidro branco em simetria, olhando  no quintalório a meda de azinho para os lumes do Inverno e o bácoro para a  fartura do ano, Joana sentia, no meio dos filhos e dos labores constantes da  sua vida azafamada, um bem-estar de consciência satisfeita, um como júbilo  Íntimo. O seu trabalho caseiro luzia: viam-lhe sempre o ladrilho varrido e as  cadeiras arrumadas, um esteirão algarvio ao canto para as visitas, cobertas de  retalhos lançadas sobre a  mesa e dorsos dos  baús,  o pequeno  espelho  pendendo ao lado de um Francisco José, de Épinal, brancas as paredes com  rodapé de almagre em torno, e a cinza do lume constantemente varrida do lar.  Dando largas à sua iniciativa de negociante, criara, além disso, no quintal um  exército de galinhas e gansos, cujos ovos o Ricardo ia vender toda as manhãs  em altos pregões, pelas ruas da vila. 

Manhã clara,  era  a  primeira  a  erguer-se na  rua e a  encetar a  labuta  inquebrantável e voluntariosa.

Paredes meias vivas a Francisca, casada com o Estragado, um bêbedo. 

Joana tinha amizade a essa pobre mulher macilenta e sofredora, semanalmente  espancada  pelo  marido,  que  para  mais lhe  impunha  o sacrifício de fomes  e  farrapos.

Dissera muitas vezes, vendo-a  passar para  o prego com trouxas  de  roupa  à  cabeça, envelhecida  e estúpida  pelo contágio  das misérias e brutalidades  sofridas, com o filho seminu agarrado às saias e o enjeitadinho ao peito: 

— Não sei como vossemecê pode, coitadinha! 

A  outra  não se  queixava;  tinha as miseráveis  resignações  de  uma  cadela  expulsa; com um jeito de ombros e a voz sumida retrucava sempre: 

— Então, paciência! Deus não quis...

E a Francisca era reconhecida à vizinhança, que bastantes vezes a livrara das  brutalidades do bêbedo e das frequentes penúrias da casa.

A Joana, comparando a sua sorte à da pobre engelhada, sentia da comparação  exaltar-se a sua felicidade, abençoando a hora em que lhe nascera o primeiro  impulso para o Jerolmo. Quando este chegava do tabalho, com largo e velho  chapéu braguês deitado para a nuca, a manta e a enxada ao ombro, ceifões, já  pelados pelo convívio dos ásperos atritos, o burro e o borrego atrás, fartos de  erva e alegres da jornada, Joana não se continha sem lhe referir os sofrimentos  da pobre mulher e a pancadaria do Estragado. 

O marido então encolhia egoistamente os ombros, farto da eterna lamúria e  repetindo:

— Deixa-os lá. Que se avenham. 

O Estragado era dos seus tempos de rapaz, pudera seguir-lhe a vida ponto a  ponto e observar-lhe  a  predisposição fatal  para  a  vadiagem e para  o vício. Aquela índole de desordeiro repugnava-lhe, que sentia um tédio pelos que não  tinham como ele  a  infatigável atividade produtiva e a  repousada consciência  dos deveres  cumpridos.  Àquela  hora  os trabalhadores  recolhiam em bando  dando santas-noites;  uma  poeirada  sufocante erguia-se  na  ladeira  sob  os  grossos sapatos cardados dos cavadores e das patas dos jumentos, carregados  de alforges e feno: a tarde morria, enlaivecendo de um ouro fulvo o poente;  pelos campos fora os grilos, as rãs, os ralos e os mochos preludiavam a longa  sonata noturna, enquanto em frente da casa o Ricardo mais o filho da vizinha,  descalços e ferozes, jogavam os touros, rolando na relva com um vasto prazer  inexaurível. 

— Sabes  o que  me  convinha? —  disse  de  uma vez o Jerolmo para  a  mulher. — Ir pra feitor de uma casa. Não anda uma pessoa a estragar-se pr'aí  a cavar desde manhã à noite, e sempre ganha algum vintém melhor.  

— Pois está  visto  que era  o  que te convinha! Um  homem de  trabalho  como és...

— Diz que o conselheiro  precisa.  Fui-me  a  falar com  ele,  mas há  pretendentes. Mal sabes quem, mulher? 

— Alguma alma ruim... — disse a Joana. 

— Aqui o nosso vizinho Estragado, nem mais nem menos. Oh senhores,  que eu ri de maior quando o Galante me contou!

— Aquilo,  que nem lhe  chega o tempo  para  as tropelias que arma à  pobrezinha da mulher...  Excomungado, o Senhor me perdoe! Mas é só esse  que pedincha? 

— Só!  Fiquei de ir ter  esta  noite com o conselheiro.  Talvez se  arranje a  coisa. 

— Era grande fortuna, homem. Casa farta, boa paga, ele uma bela pessoa.  Mas o Estragado!... Ora não vi!

Estavam na  cozinha. O  Jerolmo,  à  cancela,  limpava  da  lama as polainas de  saragoça e o ferro da enxada, enquanto a Joana, de avental, refogava a ceia e ia  pondo a mesa, ao fresco, no quintal. Sentiram passos na casa de fora, a Joana  foi ver. Era o Estragado que saía sorrateiramente.

— O  vizinho é  bem  confiado,  não há  dúvida —  disse a  Joana toda  zangada.  —  Não há  maior  atrevimento!  Quem escuta de si ouve,  e é bem certo. 

— Diga ao seu marido que mas não fica a dever. 

— Deixa-o lá  —  disse  pachorrentamente o  marido.  —  Está  bêbedo,  coitado. Deixo-o ir! 

Ceram; o Jerolmo, à cabeceira da banca, vigiava o filho, advertindo-o a cada  partida do garoto. Entre os dois ficava o cão. Da outra banda a Joana, com o  pequenito adormecido no regaço, migava sopas na malga.

Por cima, o céu um pouco escurecido e todo picado de estrelas, tinha um arfar  de penumbras profundas,  em  que os olhos  se  perdiam,  divagando.  Um  ventinho fresco,  impregnado  de fenos,  fazia  agitar com murmúrios finos  as  folhas metálicas da  figueira  verdeal.  O  bácoro  no chiqueiro  ressonava  espapaçado no charco.  Tempo  das eiras.  Puseram-se  a  falar nos  trigos;  as  searas tinham fundido bem, mas os tremeses menos. Então o Jerolmo contou  as suas esperanças no trigo ribeirinho que semeara na courela das Taipas —  um palmo de terra que valia um milhão, segundo ele.

— E estava lindo, aí pelo tempo da fava! — disse a Joana. 

— Do que precisávamos era de uma vinhita —tornou o Jerolmo após um  momento de pausa. E partia o pão trigueiro em grandes pedaços. 

— Nada como a vinha pra render. 

— Apesar das moléstias. 

— Com alguns sobranos tínhamos  aí um  ou dois milheiros.  Estava  a  calhar.

— Ou mesmo bacelo que pusesses... 

Ele então enumerou projetos  de futura  prosperidade  —  comprar um  carro  com parelha  de  mulas na feira de Vila  Viçosa, ter vinhas  e olivais,  a  abundância  de uma  horta  com águas  correntes e noras rumorosas,  num  pedaço de vale profundo, com a sua barraquita sob nogueiras verdes. 

E para  se animar citava de  memória os casos de  fortuna acumulada pinto a  pinto por homens ativos e poupados; o Sr. Joaquim das Nogueiras que estava  podre  de  rico, o Fandango,  que o seu pai  conhecera  a  carregar  estrume,  o  Baleizão, que fora da tropa e até estivera preso. Não havia muito que visitara o  monte do compadres Nazaré.

— O meu padrinho! — gritou Ricardo. E a cada passo interrompia: 

— Ele é meu padrinho, não é, pai? 

— Pois senhores — continuava Jerolmo —, aquilo é que é lavoura, aquilo  é que se chama  seara!  —  E dilatado acumulava  pormenores:  —  Quarenta  moios nos celeiros, roças de palha do tamanho das torres da igreja, juntas de  bois mais gordos que eu sei lá! E as carretas da vindima, as tapadas, a casa dos  arados, o moinho sobre rochas e dependurado no Guadiana — um encanto! 

— Casa que é um ovo! — argumentava Joana embalando o pequerrucho  nos joelhos.

— Pois mulher, há trinta anos não passava de um ganhão do Francisco do  Cabo. E honrado, honrado como Deus!

— O que se quer é saúde, deixa lá. Deus ajuda quem trabalha — resumia a  mulher.

E entre risos: 

— Muito me havia de rir se ainda vinha a ser a senhora lavradora! 

— Eu cá hei de ter uns sapatos e andar a cavalo — exigiu o Ricardo, que  molhava os punhos da véstia de cotim na malga ratinha da ceia. 

— A dizer a verdade não temos sido dos mais infelizes.

— Está de ver que não — apoiou Joana. — E deixa correr! Este ano talvez  se  peça  pouco emprestado.  Para  o ano que vem já  se  pede menos,  para  o  outro nada, e depois toca a juntar prá fazendinha. 

— Pois vou-me ao conselheiro, a ver o que decide. 

— Até logo. 

À porta voltou-se e disse a rir: 

— O que tinha graça era agora o amigo Estragado fazer-me uma espera e  armarmos de garreia.

— De tudo quanto há de ruim ele será capaz, o carga d'ossos. Peste! 

Apenas saiu, o Ricardo pulou logo a parede para o quintal da vizinha à cata do  Manel, que tasquinhava pão seco de pança para o ar. 

— Vamos pró adro, o pai abalou. 

Não foi preciso mais. 

Foram ambos às carreiras. No quintal, a Francisca roía o seu pão seco e negro,  de semanas. A amassadura por pagar, uns fiados na loja do Vieira, trapos por  toda a banda ..  Ao chegar a casa, o Estragado atirara-lhe um soco ao vazio, pedindo o jantar para que não tinha dado féria. E cobri-a de injúrias obscenas  diante dos filhos, exprobrando-lhe a fealdade e fraqueza. 

Puxara-lhe até pelos cabelos, gritando com voz avinhada de cobarde: 

— Grandessíssima porca! grandessíssima bêbeda! 

Dera-lhe bofetadas com a  áspera  mão ignóbil  de assassino,  clamando que   estava  farto,  que seria  até capaz de a  matar  a  punhaladas!  A pobrezinha,  abatida  e com o gesto errante,  nem podia chorar.  Aquela  vida  de vilezas  e  insultos roubara-lhe até o refúgio das lágrimas, embotando-lhe pouco a pouco  a  razão.  Abria  os  olhos sobre o bêbedo num pasmo trémulo,  dizendo  baixinho: 

— Não me batas mais, pelo amor de Deus, não me batas mais! 

Resumia-se para ela tudo na sova e na escravidão muda do martírio. Não tinha  já mãe nem pai, tinham-lhe morrido os parentes. — Sua irmã fora assassinada  pelo marido numa  azinhaga  sinistra  e de  noite para  os  lados  do Moinho  Branco. Era a última representante de uma raça de vergastados incapazes de  resistência e não sabendo na vida outro fim mais que a obediência ao algoz e a  procriação animal das marrãs de montado.

— Vizinha — gritou a pobre mulher do quintal, para a Joana, que acabara  de levantar a mesa.

A outra  subiu à  lenha  para  debruçar-se  na  parede,  sobre o  quintal  do  Estragado.

— Que é?

A esse tempo já a Francisca trepara do outro lado, com o xale de baetilha pela  cabeça. E disse num tom choroso: 

— Perdoe-me pelo amor de Deus, que não me esqueço de quem me faz  bem. É a minha desgraça, aquele homem, a minha vergonha..  

— Houve pancadaria de moiro, aposto! 

— O costume. O nosso Senhor nos ajude. E se fosses só isso. . 

— Então que mais temos? 

— O meu homem não entrou na sua casa há pouco? 

— Entrou, para escutar o que cada um está dizendo n a sua casa! foi  pró que ele entrou! Mas ouviu-a toda! 

— Ai, filha. Veio de lá como uma fera. Puxou-me pelos cabelos, quebrou  os  cântaros da  água,  bateu no  rapaz com uma  corda;  que eu é que tinha  a  culpa,  que  ia tudo a  tiro,  que tinham  de saber quem era  Joaquim António.  Perdoe-me  pelo  amor  de  Deus,  perdoe-me  tanta  mortificação.  Pelos modos  ouviu falar no lugar do feitor do conselheiro..  E está com a pinga!

— Sempre gostava de saber se é pecado cada um agenciar a sua vida! O  meu homem vai falar com o fidalgo; o seu quer o lugar — que vá também. O  outro escolhe, e ninguém tem que se ficar queixando. Esta é a rezão! 

— Tudo lhe disse, vizinha, tudo lhe disse! Homem, o vizinho Jerolmo não lhe parece mal que tu queiras ser feitor e pretendas o mesmo nicho que ele!  Vai e falas. Falando é que uma pessoa se entende. Agora o vereis! Ainda me  deu mais. Vizinha, perdoe-me pelo amor de Deus, mas eu queria dizer-lhe... é  que..  Olhe, estou a tremer que nem varas verdes, nem me tenho nas pernas,  veja lá. Mas é que ele saiu com más intenções, que se havia de pagar, que ia  dar cabo dele..  Perdoe-me, filha, perdoe-me por alma do seu pai, mas ele é  mau e capaz de fazer alguma,  em estando bêbedo.  Não deixe  sair o seu  marido esta noite, não o deixe sair. 

— Mas se ele foi agora mesmo! — disse a Joana, de súbito abalada. 

Dum pulo saltou da lenha, deitou pela cabeça a pobre saia de chita azul, sem  mais pensar no Ricardo,  que brincava  no adro,  e com o pequeno  ao colo  deitou a  correr para  casa  do conselheiro.  Eram mais de nove  horas.  Os  homens estavam nas eiras, fora da vila; aqui e além, deitados ao fresco junto  das portas escancaradas e escuras,  alguns  vultos  dormiam.  A penumbra  da  noite,  picada  de estrelas,  errava  nas embocaduras,  em  cones movediços  de  uma  indecisão fantástica.  O  campo  dormia, e somente a  espaços,  no como  silêncio  absorto dos  restolhos,  latia  um  cão,  ou  tilintava  a  esquila  de  algum  jumento de trabalho.  A casa  do fidalgo ficava  no outro extremo da  vila,  isolada dos casebres por uma alameda de freixos enormes. À roda era a horta,  e por detrás dos  laranjais o olival sem fim.  Joana  corria  quanto lhe era  possível,  arrastada  por  pressentimentos  funestos  e cheia  da  ideia  do seu  homem que era o seu deus. 

Nos  casinholos daquela  banda  tudo dormia  já;  a  alameda  em frente  escancarava  a  boca  de  trevas,  que  à  menor  lufada  de  vento  parecia ficar  ruminando  alguma coisa  penível,  num segredar entrecortado.  A casa  do  conselheiro  mal aparecia  ao fundo,  com  a  sua  linha de grandes janelas  morgadiças, cujas pesadas cimalhas avultavam numa faixa confusa de granito.  Em outra ocasião Joana não teria ousado atravessar o caminho àquela hora —  que errava  por  ali  o vulto do doutor Soisa  à  procura do seu inimigo. Muita  gente lhe tinha já ouvido os  brados  roucos,  depois de  corrido o  sino da  câmara  ,  e  contava-se  que um  homem o encontrara  havia  anos,  perdendo  a  fala no mesmo instante.

À entrada  do arvoredo Joana  deteve-se  a  escutar junto  de  um  tronco.  Estalavam as ramas por cima, com ruídos secos. Aplicando o ouvido, sentia-se  na  horta  o correr da  água no  tanque.  Ninguém estava  ainda em casa  do  conselheiro. Joana resfolegou mais tranquila: não tinha havido nada! E rápida,  aconchegando a criança, percorreu a alameda e foi puxar a sineta do portão  que deu um som vibrante no silêncio do edifício. Perguntou pelo marido; não  tinha  lá  ido ainda.  Fecharam-lhe  a  porta  com fracasso sem  mais  resposta.  Joana  então ficou hirta  e  muda,  encostada  à  ombreira,  com as fontes  latejando. 

Onde estava  então o  Jerolmo,  não estando a  falar com o fidalgo?  Não era  homem de súcias, nunca fora visto em tabernas, não trabalhava nas eiras, não  era  cantador  noctívago..   Era  a  primeira  vez que ela  ignorava  o seu destino;  que fazer? Então relanceando a  vista  à  roda  sentiu um  calafrio,  dos rins à  nuca; à força de perscrutar a sombra, as imagens falsearam-lhe, deslocando-se-lhe à vista desvairada; parecia que os troncos iam e vinham rojando caudas de  folhagem como espectros evocados  de campas;  os estalidos  abriam num  murmúrio  de  risinhos sofreados; ondulavam sem nexo  bandos de formas  estranhas e o rumor da água era de uma conspiração sinistra...

Joana sentia  no peito o  coração em sobressaltos  e um  zumbido  pérfido  enchia-lhe  os  ouvidos.  E cheia  de um  medo álgido, olho atrás olho adiante,  como se legiões de gênios maus a seguissem, percorreu a alameda arrumada  aos troncos e cosida com a sombra. A meio caminho deteve-se. Vira da outra  banda um  corpo mover-se.  Escondeu-se  por detrás  de um  tronco,  com os  olhos fitos no ponto em que a forma bulira. Julgava já ter-se enganado. Mas o  vulto tornou a  aparecer,  cortando em transversal o caminho.  Bem depressa  passou por diante de Joana, que, tomada de pavor, não fazia um movimento,  de colada ao freixo.

Viu um  homem de barrete preto e em  mangas de camisa caminhar aos  solavancos. Bêbedo por força; falava só, com palavras entrecortadas e torvas. 

— Outro  que fosse —  regougava  —  outro que fosse...  Quero lá saber!  Tudo se paga. Arre!

Mais além já, parou um instante cantarolando: 

Nesta rua cheira a sangue, Alguém nela se sangrou: Dizem que foi meu amor,  de uma sova que levou.

Essa voz rouca e difícil, como coada por uma garganta sem cordas, fez tremer  Joana. Era o Estragado. Vinha do conselheiro? Mas se o Jerolmo não fora lá,  que recear? O  bêbedo ia  já  longe,  quando a  pobre mulher se  resolveu a  abandonar o esconderijo. Apressou o passo; era tarde e talvez que o Jerolmo  estivesse em casa  já ..   se  estivesse, bom Deus! Esta  esperança dissolveu-lhe  um  pouco os  terrores,  que era animosa como uma  filha  de herdade.  Mentalmente prometeu logo uma  missa  à  Senhora da  Boa  Morte se  nada  tivesse  havido.  Saltou do valado  para  a  estrada  e,  receosa  de magoar  o  pequenito, apoiou-se num pedregulho, mas a mão teve um contacto húmido e  mole que cedeu, ao pousar. Joana agarrou naquilo: era uma farrapo de lenço;  puxou, e uma coisa dura caiu dando na pedra um som metálico. 

Era  uma  navalha  cheia  de  sangue.  Perdeu  completamente  a  cabeça;  o seu  coração dilatou-se efervescente de agonias e, ourada de lúgubres evocações, a  sua imaginação bolçou pressentimentos funestos. Pôs-se a correr sem destino  pelas ruas da vila, clamando em altos gritos contra o Estragado, contra Deus,  contra a sua desgraça! Na calada do povo adormecido a sua voz ressoava com  uma sonoridade alta e rápida a que o desvairamento imprimia uma nota febril  e sincera, que comovia.

Alguns postigos abriram-se, por onde cabeças sonolentas e ávidas escutaram.  Depois, sapatos ferrados bateram as pedras e os balcões das casas, e os vultos  embuçados nas mantas foram seguindo Joana. Ela contava a quem vinha que  o seu homem estava  morto,  que os filhos estavam sem pão,  que fora  o  Estragado.  Começava  trinta  vezes a  narrativa ao último  que chegava,  com a  voz velada de choros e estrangulada de soluços. Mas onde estava o Jerolmo?  Um trabalhador que recolheu tarde dera,  nas escaleiras do adro,  com  o  Ricardo e o filho da vizinha Francisca, adormecidos um ao lado do outro. Vira  a porta aberta e luz na casa de fora.

Então foram todos ver a casa do Jerolmo, batendo fortemente os sapatos do  trabalho. Algumas mulheres,  atemorizadas, de xale  pela  cabeça  e em grande  abatimento,  seguiam Joana, resmungando lamentações.  Em breve  a  terra  estava  em alvoroço,  e  quando a  pobre rapariga chegou à  soleira  a  rua ia  já  cheia. A casa estava vazia. Recomeçaram os gritos e os comentários, o prior  veio saber  o que era,  com largo capote nos ombros  e o chapeirão descido.  Todos contavam; a algum pormenor menos fielmente emitido, vozes diziam: 

— Não foi assim! A coisa começou... 

E punham-se a dizer como tinha sido. 

— Mas lá por se encontrar a navalha suja de sangue não se segue que haja  mortes  —  objetou  o  prior.  E a  sua  voz  de um  timbre ingrato e cheia  de  autoridade fazia  peso  na  roda.  Muitos eram da  opinião  da  sua Senhoria,  concordando:

— Está bem de ver, está bem de ver. 

— O  que devem é ir rebuscar bem a  alameda  e os  meloais  que ficam à  roda da horta do conselheiro. Talvez até o Jerolmo esteja nas eiras. 

— De lá venho eu agora — disse um. — Não dei notícia dele. 

Vários trabalhadores então partiram a esquadrinhar a alameda.

—  Se passarem lá  por  casa,  digam à  senhora  Madalena  que lhes dê  uma  lanterna — disse o prior.

A Joana quis também ir, mas as mulheres opuseram-se. E sentadas na casa de  fora,  embiocadas nos  xales ou com saias pela  cabeça, jaziam silenciosas e  curvadas, como se um vento de assolação as vergasse. No silêncio lúgubre, os  soluços de Joana vinham a espaços como um estribilho magoado. A um canto  discutia-se  o Estragado,  com pormenores  recentes. Segundo muito  boas  opiniões, enforcado devia ele estar havia muito tempo — peste ruim! Algumas  tinham palavras de dó para  a  Francisca  —  que tinha  o corpo como um  fungão, da pancadaria. Ao fundo da rua, a voz avinhada ouviu-se:

Nesta rua cheira a sangue, Alguém nela se sangrou...  

Ao mesmo tempo a calçada soou do outro lado sob os pés de muitos homens.  E pela  porta  da  Joana  quatro moços  do campo entraram carregando uma  escada,  onde  vinha  estendido o corpo  do  Jerolmo.  Toda a  gente  se tinha  erguido fazendo um ruído indescritível de prantos; uma rapariga caiu com um  flato,  algumas fugiram  para  o quintal,  aterradas do cadáver.  Joana  só,  estendida nos ladrilhos e resistindo a todos os empuxões que lhe davam para a  afastar dali,  Joana  só  não tinha medo.  Passara  os  braços ao pescoço  do  homem,  enchendo-lhe de beijos  a  cara  e a  boca  aberta,  de  que um  sangue  viscoso corria. Uma  enorme paixão  rebentava  dela  sobre  aquele  corpo, que  arrefecia pouco a pouco, retesando-se, com um sinistro desenho, anguloso e  lívido. Fora, o regedor conseguira agarrar o Estragado por um braço. Vozes  clamavam rudemente:

—  Está preso! enquanto retiniam nas pedras, com pompa de entremez, as  espadas dos senhores  cabos de polícia.  A Francisca,  que se  interpusera,  de  cabelos  soltos,  arrastava-se abraçada  aos joelhos do marido,  pedindo  clemência com a voz arrastada e baixa, em que havia um fundo de miséria e de  dor.  Os pulsos  saíam-lhe das mangas da  roupinha,  tísicos  e inabaláveis;  por  mais que fizessem não lhe arrancavam as mãos das calças do Estragado. Os  maus tratos, as bestialidades e as  fomes  com que aquele  homem  a  trucidara  desde o primeiro dia de casados tinham enraizado no seu coração uma cega  obediência,  uma  necessidade fatal daquele império  torpe;  mesmo  assim  gostava  dele,  pai  do  seu filho,  o  que partilhava  o  seu  catre  e  lhe  dera  esse  primeiro beijo, que é como a anunciação da maternidade à mulher virgem.

Das  escadas do adro  então as  duas crianças ergueram  ao mesmo tempo  as  cabeças, despertando ao alarido dos prantos.  

—  O que é aquilo? — disse o Ricardo.  

— Olha é muita gente. Não ouves a chorarem? — notou o Manei.

— Oh! vamos a ver! — insistiu o mais novo.

E,  como o  Manel  cambaleava  estremunhado  de  sono,  o outro passou-lhe  o braço ao pescoço a segurá-lo.

E com ares protetores dizia-lhe:

—  Vê se partes as ventas, vê...

Todo abafado no casacão, o senhor prior, saciado das novidades fresquinhas, saía de casa da viúva, pensando que era ainda uma rica moçoila.

Por outro lado,  a  morte do Jerolmo irritava-o:  fora  depois de  cinco  anos o menajeiro das suas labutas vinícolas, o que lavrara ao seu gosto, o que faziauva à siranda com mais desembaraço.

Não  bebia,  não fumava,  não era  exigente  nos preços..   Assim pensava  Sua Senhoria  quando deu  com os  pequenos,  que iam a  passinhos preguiçosos e esfregando os olhos com os punhos, em direitura ao tumulto. E ao vê-los tão unidos cresceu-lhe uma raiva de dentro, biliosa e vingadora. Separou-os com um safanão furibundo.

—  Súcia de marotos, que os enforco!

E dirigindo-se ao Ricardo:

—  Vossemecê  não tem vergonha  em andar com o filho  do ladrão  que matou o seu pai, hem?

E para o Manei, que chorava aterrado daquela agressão:

—  A minha vontade era frigir-te, podengo!

E deu-lhe um puxão de orelhas, teso.

No dia seguinte foi o enterro. Era desses dias ardentes em que nos troncos das oliveiras as cigarras cantam, as rolas se  abatem por dezenas sobre as últimas poças verde-negras dos ribeiros. Apenas o sino chamou a padres e o prior apareceu precedido do sacrista de cruz e caldeirinha, viu-se sair de casa de Joana o cortejo. Adiante o sacrista ia de cruz alta e campainha na mão — velho marau de sapateiro,  de olho patife  e calva  luzidia,  dos  que sabem quantos escândalos usam acompanhar toda a gente do berço ao sepulcro.

Fora  noviço de capuchos,  adquirira  hábitos  de glutão e  de bêbedo, aprendendo a negar a mulher decente. Rosnava-se um pouco das suas relações com a  Sr."  Madalena  do prior,  e temia-se  em geral do seu cinismo correlacionado, segundo se afirmava, com o do diabo, pelo desfastio com que pisava rosários bentos e fatias de pão torrado. As beatas fulminavam contra ele exorcismos temerosos, porque à saída de uma missa de finados urinara na pia da água benta, estando bêbedo. De cruz alçada e opa escarlate, o Zé do O caminhava piscando o olho às mulheres, que, em saia de estamenha e sapatos de couro cru, viam da  soleira  marchar a  procissão da  morte,  lacrimosas e trocando lamentos.  A  partir dele,  duas  filas de homens  do campo  seguiam com os fatos de áspera saragoça dos domingos, chapéus de Braga nos olhos, ornados  de uma  borla  redonda, e os capotes  de baetão das mulheres  aos ombros. Alguns ainda novos, que tinham sido amigos do Jerolmo e como ele destinados  sem resistência  ou vacilação,  de pequenos, para  cavadores,  iam com os olhos vermelhos voltando a cara, envergonhados de serem vistos em choro pelas mulheres que vinham às portas e às esquinas das ruas, rodeadas dos filhos descalços. Viam-se os altos pescoços curtidos pelas calmas do Estio e pelas ventanias do Inverno, no convívio dos trabalhos de picareta, de arado e de foice.

As mãos,  de enormes dedos coriáceos  e palmas rugosas de calos,  tinham curvas unhas, disformes de marteladas e entalões. Nos dorsos, as veias de uma espessura  considerável  ramificavam-se-lhes em árvore saliente,  pondo em pregas a  epiderme de  poros largos,  de que saíam cabelos.  Alguns eram já velhos e curvados,  contando trinta,  quarenta  e cinquenta anos de  labuta  em charneca, nas lavouras, nas ceifas, nas ferras do gado, no corte dos azinhais e na  recovagem de noite por  caminhos terríveis,  de matagal em matagal. Tinham as cabeças brancas e o passo vago, e olhavam com esse olhar vazio de quem nunca  teve  esperança,  e de quem jamais  teve fortuna.  Tinham  ganho toda a vida o mesmo salário, cobrindo-se de filhos constantemente e fazendo da fecundidade uma distração, a única, que lhes era dada, e que ainda assim caro pagavam.  Dois ou três  nunca  tinham  possuído um  fato novo.  Quase todos tinham andado descalços e rotos até aos vinte anos.

Havia nessas faces, mesmo fora dos enterros, o mesmo ar lúgubre e suspenso que ali mostravam;  pareciam seguir como se aguardassem  alguma  coisa retardada de há muito, boçais e emparvoados, não dando pela cárie dos dentes e pelo  espasmo  de humildade que os  ia  bestificando.  Próximo à  tumba  os irmãos da Joana e os tios do Jerolmo iam afetando grande mágoa com as golas dos capotes erguidas, cabeças baixas e amarradas em lenços. Depois o padre: era alto, possantes ombros de tambor-mor, a barba de cinco dias negrejando de espessa, um carrancudo alarve na face. Como a volta era apertada, o seu pescoço  extravasava  gordurento  fazendo uma  rosca  de carne,  que pendia, refletindo  um  rubor  sobre a  pele do queixo e da  cara,  donde o suor borbulhava. Tinha as orelhas de um guardião, ar imperativo e voz grossa, em que a  nota  surda  dos desejos que se refreiam dominava.  Era  um  pouco agricultor  e um  pouco músico  e  nas  récitas da  terra  fazia papéis de tirano, esbracejando com fúria para todos os lados. A tumba ia por fim, aos ombros de quatro mendigos, e um rapaz após levava o banco de pinho para a fazer descer, nos responsos.

Era  um  esquife  de  pau-preto  com balaústres  delgados,  tendo o ar  de um berço. Na vila causava horror. Era com que metiam medo às crianças; via-se-lhe pregada na cabeceira uma cruz preta, e um Cristo de ferro com resplendor de lata  que tremia, agonizava,  pessimamente  fundido,  mostrando os  olhos vazios.  No fundo via-se  a  enxerga coberta  de paninho preto em farrapos, onde deitavam os cadáveres, havia muito. Esse pano tinha nódoas gomosas, à altura  da  cabeça.  Os  va-nu-pieds abatidos  para  a  vala  durante  os  últimos quinze anos tinham ali impresso o seu remember de muco sanguinolento, de que tresandava um fétido em baforadas. Era onde ia o Jerolmo, vestido no seu fato de  saragoça, com sapatos  de bezerro  enormes  nos pés,  os  dois pulsos unidos por  uma  tira  de chita negra  a  premir as mãos  cruzadas  no  peito,  na atitude de uma imploração derradeira.

—  Ainda ontem a estas horas estava são e vivo! — era o pasmo da vila, e vinha todo um volume de ponderações sobre a fraqueza da criatura de Deus.

Aos solavancos dos velhos que tinham desiguais alturas, o corpo pendera mais para  uma  banda:  à  menor anfractuosidade do caminho  então,  os sobrecarregados rogavam surdamente as pragas mais torpes — que nem valia a pena levar um boi daqueles pelos seis vinténs da esmola.

O  mais ratão dos  quatro era  um  velhito  baixo,  que mostrava  escarlate uma órbita  sem olho  e já caíra  numa  contramina  de horta.  Dizia  ele  com bela ênfase, todo sério:

—  Como estas bestas morrem sem derreterem os toucinhos, senhores!

O garoto do banco escandalizou-se e resmungou:

—  Vossemecê não tem vergonha em fazer mangação dos defuntos?

Os outros riram, e o mais alto:

—  Caluda, filhote! Que ainda te havemos de levar adiante.

Mas o prior voltou-se, e da frente o sacristão veio correndo de cruz ao ombro, em ar de clavina, com a caldeirinha estendida para o responso. Os quatro da tumba pararam, o garoto estendeu o banco.

—  Abaixo! — ordenou o prior enfastiado.

O  esquife desceu.  Uma vida fecundante de átomos impalpáveis.  vibrava  na luz, metálica  na irradiação da  cúpula  amplíssima.  O  enterro tinha parado e todos se voltavam para trás, olhando o prior que espargia água benta sobre o corpo do Jerolmo. Estava-se quase fora da vila, ao meio da rua última daquela banda, que entre filas de casebres caiados corria, corcovando-se bruscamente depois sobre a azinhaga.

Como o sol batia  de  chapa,  os  trabalhadores faziam teto  com as mãos em arco, à altura das sobrancelhas, abrindo a boca e premindo as pálpebras, por uma contração inconsciente de músculos faciais. Sobre os balcões das portas, as mulheres  olhavam  alongando saudosamente  os  grandes olhos pretos, húmidos de lágrimas. Abaixo da orla das saias de chita viam-se os tornozelos de algumas,  calçados  em meia  de linha  azul. Muitas faziam meia, com os cabelos oleosos de azeite e a marrafa separando as madeixas em duas pastas simétricas e alisadas.  Na terra  das soleiras  as crianças seminuas  rolavam-se rindo; um fumo raso subia das chaminés. Na última porta tinham acabado de jantar e  via-se  a  malga  na mesa  baixa,  os  garfos de ferro com  três  dentes apenas, restos de  enorme pão da  amassadura  da  semana, e em torno  ainda sentada a família, onde o chefe, velho pastor de polainas altas e ampla calva, rezava de mãos postas e lábios mexendo, com o chapeirão nos joelhos.

O Jerolmo era muito estimado. Todos diziam — Coitadinho! — lacrimejando. E enumeravam as suas virtudes,  o seu bom gênio,  a  sua  economia,  a  sua temperança. — Os bons leva Deus, que são do céu — dizia uma velha. Mas a voz do prior ouviu-se imperativa e cheia de sabedoria em ruminação de latins, e fez-se um silêncio piedoso. Toda a gente ajoelhou, que ninguém ouvia latim noutra  postura  na  vila.  A recitação grave e numa língua  estranha  dava  aos espíritos simples  a  profunda  emoção de um fim próximo e a  lembrança  de almas que  partem  para  as regiões  serenas  da  bem-aventurança com  o seu pecúlio de graças adquiridas e asas brancas da inocência. O pior ia dizendo:

—  De profundis clamavi ad te Domine. Domine exaudi vocem meam; nec aspiciat me visus hominis. Kyrie eleison, Christe eleison, Kyrie eleison! Pater noster...

E as vozes rezavam  baixo,  num coro  murmurado, que ia  como  o som do vento numa  fenda,  alternadamente  agonizando e subindo até se  perder,  à última aspersão de água benta do prior. De pescoço estendido, as mulheres, brancas de pavor, olhavam ao meio da rua o esquife envolto na luz, onde ia o corpo do trabalhador, retesado na rigidez que antecede a podridão. Descaíra-lhe a cabeça para trás por haver escorregado um pouco a cabeceira da enxerga, e o bordo da queixada, de uma linha parabólica, repuxava-lhe angustiosamente os  tendões do pescoço  esverdinhado,  em que fazia  corcova  o nó  da  goela inútil.

Corria-lhe  das ventas  um  fio  de sangue  negro,  que os moscardos vinham beber zumbindo, e por entre os dentes, a espaços, na boca que se abrira na convulsão da última hora, gotas de gás podre faziam crepitar globozinhos, da íntima fermentação que progredia.

Os amigos doutro tempo tiraram então o lenço do bolso das véstias e saíam aos dois e aos três do seu lugar, para piedosamente virem limpar a cara e os lábios do Jerolmo.

—  Bendito seja Deus! — diziam, apavorados pelo fervilhar da corrupção cadavérica, que a torridez do sol ativava prodigiosamente.

O prior tinha acabado o responso e abrira o seu enorme chapéu de sol.

—  Carreguem — ordenou Sua Reverência aos quatro homens. E o enterro entrou na azinhaga que ia dar ao cemitério.

Cada qual, sentindo-se um pouco à vontade no campo, teve a necessidade de falar na sua vida, coisas alegres e capazes de afugentar os maus pesadelos da cova.

—  Quem teve  seara  guapa  foi cá  o mariola!  —  ia  dizendo  um homenzarrão,  e depunha os  grossos  dedos  no  ombro de um  seco,  de olho desconfiado.

—  É pra que saiba. E ainda temos hoje um calcadouro de tremês.

—  E quando chega esse  casório? —  quis  saber um  rapazola  louro,  riso boçal, de pobre diabo.

—  Está pra tarde. Antes da vindima não — diziam.

O de olho desconfiado não dava palavra, deixando que respondessem por ele.

—  E moça de estimação. Desenxovalhada e mais branca!... Seio de encher olho e golpenha, cos diabos!

—  Podes lá com uma vaca daquelas, meu poeta! — diziam-lhe. — Aquilo é mulher para te bater, ó Rato!

O de olho desconfiado ria, e disse pachorrentamente:

—  Quatro mil cruzados em terras,  está  dourada  que  nem  uma  princesa, rica saúde e vinte e quatro anos. Um sobronho preto; que mais quero?

O louro conheci-a e o seu riso abria-se sensualizado, com uma reminiscência gulosa.

—  Está bem de ver! Está bem de ver!

A calma  picava.  Sentia-se  zumbirem os insetos,  e ao longe nas  oliveiras  o ciciar  das  cigarras punha um  ruído seco. Do outro lado  discutia-se  a  Joana, ainda frescalhona; apesar dos dois filhos, aquilo vinha a casar ainda.

—  Não seria eu que casasse com ela. Entrando só com o corpo e ter de aturar dois diabos! Olha a fartura!

—  Cá para  mim —  dizia  um  barbado —,  mulher que casa  duas  vezes é capaz de pregá-los ao marido.

—  É a minha sistema! Mulher só pra um homem! O mais, cabras!

—  Homem, que hão de elas fazer? — perguntava um benévolo.

—  Mas a  Joana  fica  mal,  coitadinha.  Eles não tinham fazenda.  Têm o burro, as casitas, uma jeira de terra além às Taipas...

—  Demais, o irmão do Jerolmo quer partilhas.

—  Qual! — disse um viúvo, entendido. — Há filhos. Só se levar a cinza da lareira, que é boa para barrelas.

—  Como. há de a pobrezita governar os pequenos?

—  Ora! Como? Como as mais, no campo. E a Rita Santinha e a Teresa do Mudo, não vivem? À monda, à empa, à vindima, à ceifa. Pois onde? Avezada a tudo como está, pode bem fazê-lo.

—  E nada má — fazia surdamente um amarelento, com certo riso.

Os valados prolongavam agora a faixa da rua que findara, e eram ali altos os silvados e tão robustos os cachos de amoras que os rapazes mais novos saíram do renque pra fazer provisão. Estavam ao cimo da colina. O cemitério ficava a meia encosta, cintado em muros brancos, com uma cruz de ferro na fachada. Do ponto do caminho em que iam, a paisagem era da mais plena largueza de horizonte e da mais bela disposição de pormenores. Convergiam de ambos os lados as courelas ceifadas, sobre a garganta do vale, que ia perder-se a pouca distância junto do ribeiro e aos pés de uma antiga orla de choupos e faias. Das ouvielas dos  ferragiais e das vinhas irrompiam  secos os pastos,  camomilas, malmequeres, grisandras, maravilhas e enormes cardos de cálices espinhosos. Para a esquerda ondulava num mar verde vivo quase sem gradações, fatigante e sadia,  a  região das vinhas.  Figueiras gigantes abriam até ao chão para-sóis metálicos de largos folhedos, sobre que revoava a pardalada. Aqui e além as hortas abriam na  grande sinfonia  cromática  uma  cadência  graciosa  de tons bronze e verde-salsa;  as nogueiras,  junto  dos  tanques,  ensombravam sofregamente as noras e cisternas, usurárias da frescura. À direita . era olival, tristonho e abrasado. No ribeiro, à sombra dos canaviais, as lavadeiras batiam as roupas, cantando. O fio de água era ténue como de uma vida que pouco a pouco se desprende, e serpeando por baixo do arco da ponte, onde um tufo de eucaliptos  novos  bulia,  ia  expirar lentamente  na  areia,  sob  as raízes sequiosas das junças e escalrachos.

Era junto dos eucaliptos mesmo, que o Ricardo mais o Manel estavam à pesca das rãs,  quando o enterro apareceu em cima.  De entretidos  nem  deram por tal. Tinham conseguido, de manhãzinha logo, escapulir-se de casa enquanto as mães soluçavam e as comadres iam prodigalizando lamentações e consolos de momento.

—  Não sabes o que a mãe disse, ó Manel?

—  Que foi?

—  Que em ela me vendo andar contigo me havia de dar sova.

—  É mentira, deixa falar, é mentira.

—  Olha, o pai morreu — disse o Ricardo. —Já não ralha, pois não?

—  Nada que não! Em fazendo trovões.

—  Olha, vamos brincar?

—  Eu cá  dispo a  véstia.  Peço um  pedaço  de  pão à  minha  mãe  e  não apareço senão às trindades — expôs o Manel, todo resoluto da ideia.

—  E eu cá também.

—  Olha  —  disse o Manel abrindo os olhos  espertos,  que  um embevecimento clareava — vamos às rãs?

—  Oh, vamos!

As rãs eram a  paixão  dos dois,  o seu sonho,  a  sua  coisa  mais  ambiciosa  na vida. Tinham construído sobre elas as lendas mais extraordinárias e feito, por cópia do que ouviram às mães, uma quantidade de promessas aos santos se um dia conseguissem apanhar uma viva, das grandes.

À tardinha, quando os olhos vigilantes da Joana por um instante os largavam, corriam logo para o ribeiro. A chegada dos dois as rãs saltavam de todos os lados, da espessura dos juncos e mentrastes, sobre a água dos charcos com um sonoro plhau! na profundeza dos pegos. Calavam-se logo, agachados no tufo de eucaliptos,  esperando pacientemente a  ocasião.  Numa circunvolução do regato,  pensando-se  sozinhas,  algumas das rãs coaxavam à  flor  da  água, erguendo acima do nível tranquilo as chatas cabeças verdes, olhos estourados de íris cor de ouro, e a enorme boca semielíptica aberta ao ar numa espécie de sorriso  extático e a  fila  de pequeninos  dentes córneas um  pouco  curvos dispostos para  a  apreensão dos  animálculos.  Erguiam-se  então com grandes precauções e subtilezas,  acautelavam extraordinariamente  o  ruído das passadas, prometendo baixinho, na febre do desejo, dúzias de padre-nossos a Santo António se  fosse  servido  entregar-lhes  algum dos  animaizinhos que faziam a  sua  paixão e o seu desespero.  Mas,  precipitados  como  eram,  não conseguiam jamais  aprisionar os  elegantes anuros e,  caindo a  noite das montanhas azuis alinhadas em decoração  ao fundo da  paisagem ridente, voltavam cheios de tristeza e cansaço para as ceias da família, acabando por adormecer um ao pé do outro. Na volta sentiam com surda raiva o coro de rãs uníssono e forte,  magnificamente instrumentado de ironias,  que parecia  de propósito  erguido para  lhes saudar a  retirada  e escarnecer do desalento  e pouca arte que empregavam na pescaria. Tal coro, na penumbra misteriosa e vasta dos campos, tinha a concentração harmónica e a poesia nubívaga de um trena  —  hino  de liberdade de uma  colónia  que de súbito  readquire  a  sua independência. O Manel, especialmente, embirrava com a troça. E, com mão rápida, fazia chover nas poças de água mais sonoras grandes pedras talhadas em cunha e seguidas de pragas adequadas ao caso e à solidão do lugar.

Tinham ouvido os rapazes que as pernas das rãs tinham uma carne excelente e branca, tenra e fina como a de galinha. Nenhum deles comera ainda: mas era magnífico!  Tinha-lhes  contado o Coxo,  um  idiota  da  terra,  que uma  vez apanhara  uma  rã  muito grande.  E vai abriu-a,  e tinha na  barriga um canivetinho de duas folhas,  muito  bonito. Para  os  dois pequenos,  ter um canivete de duas folhas era uma opulência inestimável. E qualquer deles, nos dias de desavenças ou amuos, querendo fazer sombra ao outro, já dizia:

—  Deixa estar que eu hei de ter um canivetinho de duas folhas e tu não!

—  Hás  de,  uma  figa  torta!  —  dizia  logo o outro.  Porque traziam as rãs canivetezinhos na barriga? Não sabiam. Mas traziam, traziam!

O Manel, que era mais imaginoso, entrava a explicar que as rãs faziam buracos pelo chão,  furavam,  furavam..   e  iam  ter à  loja  do Vieira  para  roubarem as navalhinhas. Então o Ricardo ria.

—  Mentira!

E,  com a  vozita  gaguejada,  fantasiava  pelo seu  turno  uma  teoria  sobre os canivetes.  E ambos  à  borda  das poças se interrogavam de vez em quando, surpresos:

—  Mas como será que elas têm canivetes lá por dentro? Aquilo é coisa que engolem.

—  Qual?!

Como o calor era intenso, os anuros andavam no fundo da água, por baixo de limos reticulados  com a  delicadeza de frocos.  O  tufo  de eucaliptos lançava pois sobre o pego mais próximo da ponte uma sombra alongada: ali sentia-se coaxar. As duas crianças agachadas quedavam-se, à espreita:

—  Que cantoria que fazem! — dizia baixinho o Ricardo.

—  Deixa  —  resmungou  o outro com ares  fanfarrões.  —  Eu dou cabo daqueles diabos.

Piscava  os  olhinhos com intenção,  tirando do bolso  um  pedaço  de  arame aguçado.

—  Elas aparecem, eu vou com isto estendido e tancho-as por uma perna.

E com profundo desdém:

—  Hoje não é cá preciso padre-nossos!...

Foram-se aproximando do pego, de gatinhas.

Viam-se os tornozelos do Ricardo, grossos e de ligamentos inabaláveis, e o pé  polpudo e forte, bom para firmar o corpo.

Devia  ser de estatura  mediana e muito robusto, de  rico sangue. Pela  camisa  aberta e rasgada via-se o contraste da carne branca do tronco com a epiderme  fulva da cara e das mãos. Sólido como um novilho, devia ter a índole ingênua  e boa de Jerolmo, como lhe herdara a enformação animal. O Manei era esguio  e seco, anguloso de ossatura. Tinha os cabelos corredios e as mãos estreitas,  com unhas que revestiam quase o dorso das falanges terminais. Era já teimoso  e de nervos  suscetíveis.  A sua  organização  sensibilíssima,  pressentida,  daria  mais tarde o tipo fisicamente inábil para a labuta da enxada e em construção  perpétua  de estratagemas.  Tinha os  olhos grandes  e  lúcidos como dois ônix  molhados,  e a  linha do nariz sem proeminência,  fazendo lembrar na  cara  olivâtre e comprida o que quer que era de masque egípcia. Àquele tempo, o  sino da Misericórdia mandava o último dobre de finados. E o som badalado  de quebrada em quebrada chegou às crianças.

O  Ricardo  parou,  erguendo a  cabeça. Alongava  os olhos com essa  tristeza  vaga dos que de outra forma não conseguem formular uma comoção interior.  Lembrava-lhe o pai morto que iam meter na cova. Como essas naturezas que  a música enche de soluços e de invencível angústia, o sino, com aquela toada  grave  e preguiçosa —  Tlão!  Tlão!..   Tlão!  Tlão —  dava-lhe  como uma  reminiscência lúgubre.

A esse  tempo o Manel  erguera-se  também,  esquecido da  pesca.  E os  seus  olhos deram com o enterro. O Zé do Ó ia entrando já pelo cemitério, a opa  escarlate parecia de longe uma papoila cortada que o vento impele.

Na meia-laranja  da  porta depois,  os  homens  de escuro apinhavam-se  para  deixar passar a tumba, muito alta, aos ombros dos velhos, em que o Jerolmo,  de mãos postas, oscilava, penetrando os muros brancos.  

—  É o teu pai — fez o Manel.  

—  Vai pro céu, então não vai?

—  Está visto.

—  Ele não gostava do teu, então gostava?  

—  Não  gostava!  O  meu  anda sempre bêbedo.  É tão  mau!..  .  Dá com a  corda.

—  Ó Manei! Manei!  

—  Que é?  

—  A gente havemos de ser amigos sempre, não havemos?  

—  Havemos.

—  E brincar sempre, então não havemos?  

O  outro não respondeu. Enquanto o Ricardo de gatas se adiantava  para  o  pego com o arame na mão, os olhos do filho da vizinha acompanhavam de  longe os movimentos da massa de gente negra que viera ao enterro. Toda a  noite a  mãe chorara,  miseravelmente abatida sobre a  enxerga  que servia  também para albardar o burro.

O pai fora levado entre cabos de polícia para a cadeia de Évora, com as mãos  atadas nas costas  e  o fato roto. No  puxão  de orelhas e nas palavras  desprezadas do prior  sentira  que estava  filho de um  assassino. Ouvia  numa  toada  fatídica  os sinos  da  Misericórdia. Então as suas narinas palpitaram,  sentiu na  garganta como um  novelo que  se engrossava  para  o  estrangular.  Uma  coisa  abateu-o todo,  percorrendo-o de uma  estranha galvanização de  mágoas.

Entrou  a  chorar alto,  com profundos  soluços  que num jogo  brusco lhe  alevantavam as pobres costelas esburgadas.

—  Deixa — dizia o Ricardo, puxando-lhe as calças, deixa lá. — A mãe não  ralha, não.

E, esquecidos, inocentes, recomeçaram a pescaria. Do outro lado da ponte as  lavadeiras tinham cessado  de bater roupa.  As vozes  cobriram de pragas o  Estragado, assassino, bêbedo e ladrão, que Deus confundisse na outra vida e  as justiças degredassem nesta, para casa do inferno. 

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Fialho de Almeida - Contos (1881)

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