SEMPRE AMIGOS
Joana tinha já
dois pequenos. O
Ricardo, de cinco anos, fulvo
como um novilho, e o João, pequerrucho
de peito. Era uma rapariga alta, músculo duro
e sobrancelha espessa, cujos punhos podiam amassar sem cansaço alqueires
e alqueires de pão, e cujos quadris
agitados na marcha, sob as saias de baetilha avivadas de azul,
revelavam a sólida enformatura montanhesa das primitivas
mulheres, tostadas e
laboriosas. Casara havia
seis anos com o Jerolmo, por
uma vindima mais fértil. E ambos pobres, ela filha mais nova de um
maioral do conselheiro e ele ganhão da
herdade de Valparaíso, tinham gostado um do
outro, bailando depois nas romarias do Verão, procurando-se
instintivamente nas ceifas e mondas e
aos domingos à hora da missa conventual. Não estava arrependida
de haver casado, não.
O Jerolmo era trabalhador
incansável e sadio; Joana começara por namorar-lhe o peito
cabeludo e trigueiro e a forte
caixa de pulmões dilatada a
cada esforço de trabalho; cativara-a além disso, depois, a sua mansa maneira de
dizer as coisas, sem notas altas na voz e sem
impaciências nervosas de bilioso, a
sua vida toda regulada
por hábitos e a condescendência tida para os velhos.
De uma vez vira-o erguer-se de
punho cerrado e olho torvo a desancar numa malta que primeiro o espicaçara de
bestialidades. Até ali, todos de boa saúde,
louvado Deus! Seis anos de ventura decorrida sem atributos e sem nuvens,
E os
dois rapazitos!... Lembrava-se
dos terrores do primeiro
parto e das alternativas de humor
características, os suores dorsais e frios, a dorzinha vaga primeiro e intensa depois, em toda a região
dilatada.
Em certos momentos,
um mundo de fantasias,
projetando-se-lhe do fantoscópio
da mente, inundava-a
de fotosferas de luminosa
essência — se
seria um pequeno
valentão capaz de ajudar o pai,
se seria uma
rapariga de calcanhar quadrado e
dentes sólidos, que enchesse de cantigas e de atividade o ninho!. . Todas as noites, à hora da ceia, o casal
acumulava e destruía planos, fazendo e
desfazendo receios — perdidas evocações desse primeiro tempo de esposa!
.. Mirando a casita
e as cadeiras de Évora da
casa de fora, as
prateleiras de louça e as quatro garrafas de vidro branco em simetria,
olhando no quintalório a meda de azinho
para os lumes do Inverno e o bácoro para a
fartura do ano, Joana sentia, no meio dos filhos e dos labores
constantes da sua vida azafamada, um
bem-estar de consciência satisfeita, um como júbilo Íntimo. O seu trabalho caseiro luzia:
viam-lhe sempre o ladrilho varrido e as
cadeiras arrumadas, um esteirão algarvio ao canto para as visitas,
cobertas de retalhos lançadas sobre a mesa e dorsos dos baús,
o pequeno espelho pendendo ao lado de um Francisco José, de
Épinal, brancas as paredes com rodapé de
almagre em torno, e a cinza do lume constantemente varrida do lar. Dando largas à sua iniciativa de negociante,
criara, além disso, no quintal um
exército de galinhas e gansos, cujos ovos o Ricardo ia vender toda as
manhãs em altos pregões, pelas ruas da
vila.
Manhã clara, era
a primeira a
erguer-se na rua e a encetar a
labuta inquebrantável e
voluntariosa.
Paredes meias vivas a Francisca,
casada com o Estragado, um bêbedo.
Joana tinha amizade a essa pobre
mulher macilenta e sofredora, semanalmente
espancada pelo marido,
que para mais lhe
impunha o sacrifício de
fomes e
farrapos.
Dissera muitas vezes,
vendo-a passar para o prego com trouxas de
roupa à cabeça, envelhecida e estúpida pelo contágio
das misérias e brutalidades
sofridas, com o filho seminu agarrado às saias e o enjeitadinho ao
peito:
— Não sei como vossemecê pode,
coitadinha!
A
outra não se queixava;
tinha as miseráveis resignações de
uma cadela expulsa; com um jeito de ombros e a voz
sumida retrucava sempre:
— Então, paciência! Deus não
quis...
E a Francisca era reconhecida à
vizinhança, que bastantes vezes a livrara das
brutalidades do bêbedo e das frequentes penúrias da casa.
A Joana, comparando a sua sorte à
da pobre engelhada, sentia da comparação
exaltar-se a sua felicidade, abençoando a hora em que lhe nascera o
primeiro impulso para o Jerolmo. Quando
este chegava do tabalho, com largo e velho
chapéu braguês deitado para a nuca, a manta e a enxada ao ombro,
ceifões, já pelados pelo convívio dos
ásperos atritos, o burro e o borrego atrás, fartos de erva e alegres da jornada, Joana não se
continha sem lhe referir os sofrimentos
da pobre mulher e a pancadaria do Estragado.
O marido então encolhia
egoistamente os ombros, farto da eterna lamúria e repetindo:
— Deixa-os lá. Que se
avenham.
O Estragado era dos seus tempos
de rapaz, pudera seguir-lhe a vida ponto a
ponto e observar-lhe a predisposição fatal para
a vadiagem e para o vício. Aquela índole de desordeiro
repugnava-lhe, que sentia um tédio pelos que não tinham como ele a
infatigável atividade produtiva e a
repousada consciência dos
deveres cumpridos. Àquela
hora os trabalhadores recolhiam em bando dando santas-noites; uma
poeirada sufocante erguia-se na
ladeira sob os
grossos sapatos cardados dos cavadores e das patas dos jumentos,
carregados de alforges e feno: a tarde
morria, enlaivecendo de um ouro fulvo o poente;
pelos campos fora os grilos, as rãs, os ralos e os mochos preludiavam a
longa sonata noturna, enquanto em frente
da casa o Ricardo mais o filho da vizinha,
descalços e ferozes, jogavam os touros, rolando na relva com um vasto
prazer inexaurível.
— Sabes o que
me convinha? — disse
de uma vez o Jerolmo para a
mulher. — Ir pra feitor de uma casa. Não anda uma pessoa a estragar-se
pr'aí a cavar desde manhã à noite, e
sempre ganha algum vintém melhor.
— Pois está visto
que era o que te convinha! Um homem de
trabalho como és...
— Diz que o conselheiro precisa.
Fui-me a falar com
ele, mas há pretendentes. Mal sabes quem, mulher?
— Alguma alma ruim... — disse a
Joana.
— Aqui o nosso vizinho Estragado,
nem mais nem menos. Oh senhores, que eu
ri de maior quando o Galante me contou!
— Aquilo, que nem lhe
chega o tempo para as tropelias que arma à pobrezinha da mulher... Excomungado, o Senhor me perdoe! Mas é só
esse que pedincha?
— Só! Fiquei de ir ter esta
noite com o conselheiro. Talvez
se arranje a coisa.
— Era grande fortuna, homem. Casa
farta, boa paga, ele uma bela pessoa.
Mas o Estragado!... Ora não vi!
Estavam na cozinha. O
Jerolmo, à cancela,
limpava da lama as polainas de saragoça e o ferro da enxada, enquanto a
Joana, de avental, refogava a ceia e ia
pondo a mesa, ao fresco, no quintal. Sentiram passos na casa de fora, a
Joana foi ver. Era o Estragado que saía
sorrateiramente.
— O vizinho é
bem confiado, não há
dúvida — disse a Joana toda
zangada. — Não há
maior atrevimento! Quem escuta de si ouve, e é bem certo.
— Diga ao seu marido que mas não
fica a dever.
— Deixa-o lá —
disse pachorrentamente o marido.
— Está bêbedo,
coitado. Deixo-o ir!
Ceram; o Jerolmo, à cabeceira da
banca, vigiava o filho, advertindo-o a cada
partida do garoto. Entre os dois ficava o cão. Da outra banda a Joana,
com o pequenito adormecido no regaço,
migava sopas na malga.
Por cima, o céu um pouco
escurecido e todo picado de estrelas, tinha um arfar de penumbras profundas, em que
os olhos se perdiam,
divagando. Um ventinho fresco, impregnado
de fenos, fazia agitar com murmúrios finos as
folhas metálicas da figueira verdeal.
O bácoro no chiqueiro
ressonava espapaçado no
charco. Tempo das eiras.
Puseram-se a falar nos
trigos; as searas tinham fundido bem, mas os tremeses
menos. Então o Jerolmo contou as suas
esperanças no trigo ribeirinho que semeara na courela das Taipas — um palmo de terra que valia um milhão,
segundo ele.
— E estava lindo, aí pelo tempo
da fava! — disse a Joana.
— Do que precisávamos era de uma
vinhita —tornou o Jerolmo após um
momento de pausa. E partia o pão trigueiro em grandes pedaços.
— Nada como a vinha pra
render.
— Apesar das moléstias.
— Com alguns sobranos
tínhamos aí um ou dois milheiros. Estava
a calhar.
— Ou mesmo bacelo que
pusesses...
Ele então enumerou projetos de futura
prosperidade — comprar um
carro com parelha de
mulas na feira de Vila Viçosa,
ter vinhas e olivais, a
abundância de uma horta
com águas correntes e noras
rumorosas, num pedaço de vale profundo, com a sua barraquita
sob nogueiras verdes.
E para se animar citava de memória os casos de fortuna acumulada pinto a pinto por homens ativos e poupados; o Sr.
Joaquim das Nogueiras que estava
podre de rico, o Fandango, que o seu pai
conhecera a carregar
estrume, o Baleizão, que fora da tropa e até estivera
preso. Não havia muito que visitara o
monte do compadres Nazaré.
— O meu padrinho! — gritou
Ricardo. E a cada passo interrompia:
— Ele é meu padrinho, não é,
pai?
— Pois senhores — continuava
Jerolmo —, aquilo é que é lavoura, aquilo
é que se chama seara! — E dilatado
acumulava pormenores: —
Quarenta moios nos celeiros,
roças de palha do tamanho das torres da igreja, juntas de bois mais gordos que eu sei lá! E as carretas
da vindima, as tapadas, a casa dos
arados, o moinho sobre rochas e dependurado no Guadiana — um
encanto!
— Casa que é um ovo! — argumentava
Joana embalando o pequerrucho nos
joelhos.
— Pois mulher, há trinta anos não
passava de um ganhão do Francisco do
Cabo. E honrado, honrado como Deus!
— O que se quer é saúde, deixa
lá. Deus ajuda quem trabalha — resumia a
mulher.
E entre risos:
— Muito me havia de rir se ainda
vinha a ser a senhora lavradora!
— Eu cá hei de ter uns sapatos e
andar a cavalo — exigiu o Ricardo, que
molhava os punhos da véstia de cotim na malga ratinha da ceia.
— A dizer a verdade não temos
sido dos mais infelizes.
— Está de ver que não — apoiou
Joana. — E deixa correr! Este ano talvez
se peça pouco emprestado. Para o
ano que vem já se pede menos,
para o outro nada, e depois toca a juntar prá
fazendinha.
— Pois vou-me ao conselheiro, a
ver o que decide.
— Até logo.
À porta voltou-se e disse a
rir:
— O que tinha graça era agora o
amigo Estragado fazer-me uma espera e
armarmos de garreia.
— De tudo quanto há de ruim ele
será capaz, o carga d'ossos. Peste!
Apenas saiu, o Ricardo pulou logo
a parede para o quintal da vizinha à cata do
Manel, que tasquinhava pão seco de pança para o ar.
— Vamos pró adro, o pai
abalou.
Não foi preciso mais.
Foram ambos às carreiras. No
quintal, a Francisca roía o seu pão seco e negro, de semanas. A amassadura por pagar, uns
fiados na loja do Vieira, trapos por
toda a banda .. Ao chegar a casa,
o Estragado atirara-lhe um soco ao vazio, pedindo o jantar para que não tinha
dado féria. E cobri-a de injúrias obscenas
diante dos filhos, exprobrando-lhe a fealdade e fraqueza.
Puxara-lhe até pelos cabelos,
gritando com voz avinhada de cobarde:
— Grandessíssima porca!
grandessíssima bêbeda!
Dera-lhe bofetadas com a áspera
mão ignóbil de assassino, clamando que
estava farto, que seria
até capaz de a matar a
punhaladas! A pobrezinha, abatida
e com o gesto errante, nem podia
chorar. Aquela vida
de vilezas e insultos roubara-lhe até o refúgio das
lágrimas, embotando-lhe pouco a pouco a razão.
Abria os olhos sobre o bêbedo num pasmo trémulo, dizendo
baixinho:
— Não me batas mais, pelo amor de
Deus, não me batas mais!
Resumia-se para ela tudo na sova
e na escravidão muda do martírio. Não tinha
já mãe nem pai, tinham-lhe morrido os parentes. — Sua irmã fora assassinada pelo marido numa azinhaga
sinistra e de noite para
os lados do Moinho
Branco. Era a última representante de uma raça de vergastados incapazes
de resistência e não sabendo na vida
outro fim mais que a obediência ao algoz e a
procriação animal das marrãs de montado.
— Vizinha — gritou a pobre mulher
do quintal, para a Joana, que acabara de
levantar a mesa.
A outra subiu à
lenha para debruçar-se
na parede, sobre o
quintal do Estragado.
— Que é?
A esse tempo já a Francisca
trepara do outro lado, com o xale de baetilha pela cabeça. E disse num tom choroso:
— Perdoe-me pelo amor de Deus,
que não me esqueço de quem me faz bem. É
a minha desgraça, aquele homem, a minha vergonha..
— Houve pancadaria de moiro,
aposto!
— O costume. O nosso Senhor nos
ajude. E se fosses só isso. .
— Então que mais temos?
— O meu homem não entrou na sua
casa há pouco?
— Entrou, para escutar o que cada
um está dizendo n a sua casa! foi pró
que ele entrou! Mas ouviu-a toda!
— Ai, filha. Veio de lá como uma
fera. Puxou-me pelos cabelos, quebrou
os cântaros da água,
bateu no rapaz com uma corda;
que eu é que tinha a culpa,
que ia tudo a tiro,
que tinham de saber quem era Joaquim António. Perdoe-me
pelo amor de Deus, perdoe-me
tanta mortificação. Pelos modos
ouviu falar no lugar do feitor do conselheiro.. E está com a pinga!
— Sempre gostava de saber se é
pecado cada um agenciar a sua vida! O
meu homem vai falar com o fidalgo; o seu quer o lugar — que vá também.
O outro escolhe, e ninguém tem que se
ficar queixando. Esta é a rezão!
— Tudo lhe disse, vizinha, tudo
lhe disse! Homem, o vizinho Jerolmo não lhe parece mal que tu queiras ser
feitor e pretendas o mesmo nicho que ele!
Vai e falas. Falando é que uma pessoa se entende. Agora o vereis! Ainda
me deu mais. Vizinha, perdoe-me pelo
amor de Deus, mas eu queria dizer-lhe... é
que.. Olhe, estou a tremer que
nem varas verdes, nem me tenho nas pernas,
veja lá. Mas é que ele saiu com más intenções, que se havia de pagar,
que ia dar cabo dele.. Perdoe-me, filha, perdoe-me por alma do seu
pai, mas ele é mau e capaz de fazer
alguma, em estando bêbedo. Não deixe
sair o seu marido esta noite, não
o deixe sair.
— Mas se ele foi agora mesmo! —
disse a Joana, de súbito abalada.
Dum pulo saltou da lenha, deitou
pela cabeça a pobre saia de chita azul, sem
mais pensar no Ricardo, que
brincava no adro, e com o pequeno ao colo
deitou a correr para casa
do conselheiro. Eram mais de
nove horas. Os
homens estavam nas eiras, fora da vila; aqui e além, deitados ao fresco
junto das portas escancaradas e escuras, alguns
vultos dormiam. A penumbra
da noite, picada
de estrelas, errava nas embocaduras, em
cones movediços de uma
indecisão fantástica. O campo
dormia, e somente a espaços, no como
silêncio absorto dos restolhos,
latia um cão,
ou tilintava a
esquila de algum
jumento de trabalho. A casa do fidalgo ficava no outro extremo da vila,
isolada dos casebres por uma alameda de freixos enormes. À roda era a
horta, e por detrás dos laranjais o olival sem fim. Joana
corria quanto lhe era possível,
arrastada por pressentimentos funestos
e cheia da ideia
do seu homem que era o seu
deus.
Nos casinholos daquela banda
tudo dormia já; a
alameda em frente escancarava
a boca de
trevas, que à
menor lufada de
vento parecia ficar ruminando
alguma coisa penível, num segredar entrecortado. A casa
do conselheiro mal aparecia
ao fundo, com a
sua linha de grandes janelas morgadiças, cujas pesadas cimalhas avultavam
numa faixa confusa de granito. Em outra
ocasião Joana não teria ousado atravessar o caminho àquela hora — que errava
por ali o vulto do doutor Soisa à
procura do seu inimigo. Muita
gente lhe tinha já ouvido os
brados roucos, depois de
corrido o sino da câmara
, e contava-se
que um homem o encontrara havia
anos, perdendo a fala
no mesmo instante.
À entrada do arvoredo Joana deteve-se
a escutar junto de
um tronco. Estalavam as ramas por cima, com ruídos
secos. Aplicando o ouvido, sentia-se
na horta o correr da
água no tanque. Ninguém estava ainda em casa
do conselheiro. Joana resfolegou
mais tranquila: não tinha havido nada! E rápida, aconchegando a criança, percorreu a alameda e
foi puxar a sineta do portão que deu um
som vibrante no silêncio do edifício. Perguntou pelo marido; não tinha
lá ido ainda. Fecharam-lhe
a porta com fracasso sem mais
resposta. Joana então ficou hirta e
muda, encostada à
ombreira, com as fontes latejando.
Onde estava então o
Jerolmo, não estando a falar com o fidalgo? Não era
homem de súcias, nunca fora visto em tabernas, não trabalhava nas eiras,
não era
cantador noctívago.. Era
a primeira vez que ela
ignorava o seu destino; que fazer? Então relanceando a vista
à roda sentiu um
calafrio, dos rins à nuca; à força de perscrutar a sombra, as
imagens falsearam-lhe, deslocando-se-lhe à vista desvairada; parecia que os
troncos iam e vinham rojando caudas de
folhagem como espectros evocados
de campas; os estalidos abriam num
murmúrio de risinhos sofreados; ondulavam sem nexo bandos de formas estranhas e o rumor da água era de uma
conspiração sinistra...
Joana sentia no peito o
coração em sobressaltos e um zumbido
pérfido enchia-lhe os
ouvidos. E cheia de um
medo álgido, olho atrás olho adiante,
como se legiões de gênios maus a seguissem, percorreu a alameda
arrumada aos troncos e cosida com a
sombra. A meio caminho deteve-se. Vira da outra
banda um corpo mover-se. Escondeu-se
por detrás de um tronco,
com os olhos fitos no ponto em
que a forma bulira. Julgava já ter-se enganado. Mas o vulto tornou a aparecer,
cortando em transversal o caminho.
Bem depressa passou por diante de
Joana, que, tomada de pavor, não fazia um movimento, de colada ao freixo.
Viu um homem de barrete preto e em mangas de camisa caminhar aos solavancos. Bêbedo por força; falava só, com
palavras entrecortadas e torvas.
— Outro que fosse —
regougava — outro que fosse... Quero lá saber! Tudo se paga. Arre!
Mais além já, parou um instante
cantarolando:
Nesta rua cheira a sangue, Alguém
nela se sangrou: Dizem que foi meu amor,
de uma sova que levou.
Essa voz rouca e difícil, como
coada por uma garganta sem cordas, fez tremer
Joana. Era o Estragado. Vinha do conselheiro? Mas se o Jerolmo não fora
lá, que recear? O bêbedo ia
já longe, quando a
pobre mulher se resolveu a abandonar o esconderijo. Apressou o passo;
era tarde e talvez que o Jerolmo
estivesse em casa já .. se
estivesse, bom Deus! Esta
esperança dissolveu-lhe um pouco os
terrores, que era animosa como
uma filha de herdade.
Mentalmente prometeu logo uma
missa à Senhora da
Boa Morte se nada
tivesse havido. Saltou do valado para
a estrada e,
receosa de magoar o
pequenito, apoiou-se num pedregulho, mas a mão teve um contacto húmido e mole que cedeu, ao pousar. Joana agarrou
naquilo: era uma farrapo de lenço; puxou,
e uma coisa dura caiu dando na pedra um som metálico.
Era uma
navalha cheia de
sangue. Perdeu completamente
a cabeça; o seu
coração dilatou-se efervescente de agonias e, ourada de lúgubres
evocações, a sua imaginação bolçou
pressentimentos funestos. Pôs-se a correr sem destino pelas ruas da vila, clamando em altos gritos
contra o Estragado, contra Deus, contra
a sua desgraça! Na calada do povo adormecido a sua voz ressoava com uma sonoridade alta e rápida a que o
desvairamento imprimia uma nota febril e
sincera, que comovia.
Alguns postigos abriram-se, por
onde cabeças sonolentas e ávidas escutaram.
Depois, sapatos ferrados bateram as pedras e os balcões das casas, e os
vultos embuçados nas mantas foram
seguindo Joana. Ela contava a quem vinha que
o seu homem estava morto, que os filhos estavam sem pão, que fora
o Estragado. Começava
trinta vezes a narrativa ao último que chegava,
com a voz velada de choros e
estrangulada de soluços. Mas onde estava o Jerolmo? Um trabalhador que recolheu tarde dera, nas escaleiras do adro, com
o Ricardo e o filho da vizinha
Francisca, adormecidos um ao lado do outro. Vira a porta aberta e luz na casa de fora.
Então foram todos ver a casa do
Jerolmo, batendo fortemente os sapatos do
trabalho. Algumas mulheres,
atemorizadas, de xale pela cabeça
e em grande abatimento, seguiam Joana, resmungando lamentações. Em breve
a terra estava
em alvoroço, e quando a
pobre rapariga chegou à
soleira a rua ia
já cheia. A casa estava vazia.
Recomeçaram os gritos e os comentários, o prior
veio saber o que era, com largo capote nos ombros e o chapeirão descido. Todos contavam; a algum pormenor menos
fielmente emitido, vozes diziam:
— Não foi assim! A coisa
começou...
E punham-se a dizer como tinha
sido.
— Mas lá por se encontrar a
navalha suja de sangue não se segue que haja
mortes — objetou
o prior. E a
sua voz de um
timbre ingrato e cheia de autoridade fazia peso
na roda. Muitos eram da opinião
da sua Senhoria, concordando:
— Está bem de ver, está bem de
ver.
— O que devem é ir rebuscar bem a alameda
e os meloais que ficam à
roda da horta do conselheiro. Talvez até o Jerolmo esteja nas
eiras.
— De lá venho eu agora — disse
um. — Não dei notícia dele.
Vários trabalhadores então
partiram a esquadrinhar a alameda.
— Se passarem lá
por casa, digam à
senhora Madalena que lhes dê
uma lanterna — disse o prior.
A Joana quis também ir, mas as
mulheres opuseram-se. E sentadas na casa de fora,
embiocadas nos xales ou com saias
pela cabeça, jaziam silenciosas e curvadas, como se um vento de assolação as
vergasse. No silêncio lúgubre, os soluços
de Joana vinham a espaços como um estribilho magoado. A um canto discutia-se
o Estragado, com pormenores recentes. Segundo muito boas opiniões,
enforcado devia ele estar havia muito tempo — peste ruim! Algumas tinham palavras de dó para a
Francisca — que tinha
o corpo como um fungão, da
pancadaria. Ao fundo da rua, a voz avinhada ouviu-se:
Nesta rua cheira a sangue, Alguém
nela se sangrou...
Ao mesmo tempo a calçada soou do
outro lado sob os pés de muitos homens. E
pela porta da
Joana quatro moços do campo entraram carregando uma escada,
onde vinha estendido o corpo do
Jerolmo. Toda a gente
se tinha erguido fazendo um ruído
indescritível de prantos; uma rapariga caiu com um flato,
algumas fugiram para o quintal,
aterradas do cadáver. Joana só, estendida
nos ladrilhos e resistindo a todos os empuxões que lhe davam para a afastar dali,
Joana só não tinha medo. Passara
os braços ao pescoço do homem, enchendo-lhe de beijos a
cara e a boca
aberta, de que um
sangue viscoso corria. Uma enorme paixão
rebentava dela sobre
aquele corpo, que arrefecia pouco a pouco, retesando-se, com um
sinistro desenho, anguloso e lívido.
Fora, o regedor conseguira agarrar o Estragado por um braço. Vozes clamavam rudemente:
— Está preso! enquanto retiniam nas pedras, com
pompa de entremez, as espadas dos
senhores cabos de polícia. A Francisca,
que se interpusera, de cabelos soltos,
arrastava-se abraçada aos joelhos
do marido, pedindo clemência com a voz arrastada e baixa, em que
havia um fundo de miséria e de dor. Os pulsos
saíam-lhe das mangas da
roupinha, tísicos e inabaláveis; por mais
que fizessem não lhe arrancavam as mãos das calças do Estragado. Os maus tratos, as bestialidades e as fomes
com que aquele homem a
trucidara desde o primeiro dia de
casados tinham enraizado no seu coração uma cega obediência,
uma necessidade fatal daquele
império torpe; mesmo
assim gostava dele,
pai do seu filho,
o que partilhava o
seu catre e
lhe dera esse primeiro
beijo, que é como a anunciação da maternidade à mulher virgem.
Das escadas do adro então as
duas crianças ergueram ao mesmo
tempo as cabeças, despertando ao alarido dos prantos.
— O que é aquilo? — disse o Ricardo.
— Olha é muita gente. Não ouves a
chorarem? — notou o Manei.
— Oh! vamos a ver! — insistiu o
mais novo.
E, como o
Manel cambaleava estremunhado
de sono, o outro passou-lhe o braço ao pescoço a segurá-lo.
E com ares protetores dizia-lhe:
— Vê se partes as ventas, vê...
Todo abafado no casacão, o senhor
prior, saciado das novidades fresquinhas, saía de casa da viúva, pensando que
era ainda uma rica moçoila.
Por outro lado, a
morte do Jerolmo irritava-o:
fora depois de cinco
anos o menajeiro das suas labutas vinícolas, o que lavrara ao seu gosto,
o que faziauva à siranda com mais desembaraço.
Não bebia,
não fumava, não era exigente
nos preços.. Assim pensava Sua Senhoria
quando deu com os pequenos,
que iam a passinhos preguiçosos e
esfregando os olhos com os punhos, em direitura ao tumulto. E ao vê-los tão unidos
cresceu-lhe uma raiva de dentro, biliosa e vingadora. Separou-os com um safanão
furibundo.
— Súcia de marotos, que os enforco!
E dirigindo-se ao Ricardo:
— Vossemecê
não tem vergonha em andar com o
filho do ladrão que matou o seu pai, hem?
E para o Manei, que chorava
aterrado daquela agressão:
— A minha vontade era frigir-te, podengo!
E deu-lhe um puxão de orelhas,
teso.
No dia seguinte foi o enterro.
Era desses dias ardentes em que nos troncos das oliveiras as cigarras cantam,
as rolas se abatem por dezenas sobre as últimas
poças verde-negras dos ribeiros. Apenas o sino chamou a padres e o prior
apareceu precedido do sacrista de cruz e caldeirinha, viu-se sair de casa de
Joana o cortejo. Adiante o sacrista ia de cruz alta e campainha na mão — velho
marau de sapateiro, de olho patife e calva
luzidia, dos que sabem quantos escândalos usam acompanhar
toda a gente do berço ao sepulcro.
Fora noviço de capuchos, adquirira
hábitos de glutão e de bêbedo, aprendendo a negar a mulher
decente. Rosnava-se um pouco das suas relações com a Sr."
Madalena do prior, e temia-se
em geral do seu cinismo correlacionado, segundo se afirmava, com o do
diabo, pelo desfastio com que pisava rosários bentos e fatias de pão torrado.
As beatas fulminavam contra ele exorcismos temerosos, porque à saída de uma
missa de finados urinara na pia da água benta, estando bêbedo. De cruz alçada e
opa escarlate, o Zé do O caminhava piscando o olho às mulheres, que, em saia de
estamenha e sapatos de couro cru, viam da
soleira marchar a procissão da
morte, lacrimosas e trocando
lamentos. A partir dele,
duas filas de homens do campo
seguiam com os fatos de áspera saragoça dos domingos, chapéus de Braga
nos olhos, ornados de uma borla
redonda, e os capotes de baetão
das mulheres aos ombros. Alguns ainda
novos, que tinham sido amigos do Jerolmo e como ele destinados sem resistência ou vacilação,
de pequenos, para cavadores, iam com os olhos vermelhos voltando a cara,
envergonhados de serem vistos em choro pelas mulheres que vinham às portas e às
esquinas das ruas, rodeadas dos filhos descalços. Viam-se os altos pescoços
curtidos pelas calmas do Estio e pelas ventanias do Inverno, no convívio dos
trabalhos de picareta, de arado e de foice.
As mãos, de enormes dedos coriáceos e palmas rugosas de calos, tinham curvas unhas, disformes de marteladas
e entalões. Nos dorsos, as veias de uma espessura considerável
ramificavam-se-lhes em árvore saliente,
pondo em pregas a epiderme
de poros largos, de que saíam cabelos. Alguns eram já velhos e curvados, contando trinta, quarenta
e cinquenta anos de labuta em charneca, nas lavouras, nas ceifas, nas
ferras do gado, no corte dos azinhais e na
recovagem de noite por caminhos
terríveis, de matagal em matagal. Tinham
as cabeças brancas e o passo vago, e olhavam com esse olhar vazio de quem
nunca teve esperança,
e de quem jamais teve
fortuna. Tinham ganho toda a vida o mesmo salário,
cobrindo-se de filhos constantemente e fazendo da fecundidade uma distração, a
única, que lhes era dada, e que ainda assim caro pagavam. Dois ou três
nunca tinham possuído um
fato novo. Quase todos tinham
andado descalços e rotos até aos vinte anos.
Havia nessas faces, mesmo fora
dos enterros, o mesmo ar lúgubre e suspenso que ali mostravam; pareciam seguir como se aguardassem alguma
coisa retardada de há muito, boçais e emparvoados, não dando pela cárie
dos dentes e pelo espasmo de humildade que os ia
bestificando. Próximo à tumba
os irmãos da Joana e os tios do Jerolmo iam afetando grande mágoa com as
golas dos capotes erguidas, cabeças baixas e amarradas em lenços. Depois o
padre: era alto, possantes ombros de tambor-mor, a barba de cinco dias
negrejando de espessa, um carrancudo alarve na face. Como a volta era apertada,
o seu pescoço extravasava gordurento
fazendo uma rosca de carne,
que pendia, refletindo um rubor
sobre a pele do queixo e da cara,
donde o suor borbulhava. Tinha as orelhas de um guardião, ar imperativo
e voz grossa, em que a nota surda
dos desejos que se refreiam dominava.
Era um pouco agricultor e um
pouco músico e nas
récitas da terra fazia papéis de tirano, esbracejando com
fúria para todos os lados. A tumba ia por fim, aos ombros de quatro mendigos, e
um rapaz após levava o banco de pinho para a fazer descer, nos responsos.
Era um
esquife de pau-preto
com balaústres delgados, tendo o ar
de um berço. Na vila causava horror. Era com que metiam medo às
crianças; via-se-lhe pregada na cabeceira uma cruz preta, e um Cristo de ferro com
resplendor de lata que tremia,
agonizava, pessimamente fundido,
mostrando os olhos vazios. No fundo via-se a
enxerga coberta de paninho preto
em farrapos, onde deitavam os cadáveres, havia muito. Esse pano tinha nódoas
gomosas, à altura da cabeça.
Os va-nu-pieds abatidos para
a vala durante
os últimos quinze anos tinham ali
impresso o seu remember de muco sanguinolento, de que tresandava um fétido em
baforadas. Era onde ia o Jerolmo, vestido no seu fato de saragoça, com sapatos de bezerro
enormes nos pés, os
dois pulsos unidos por uma tira
de chita negra a premir as mãos cruzadas
no peito, na atitude de uma imploração derradeira.
— Ainda ontem a estas horas estava são e vivo! —
era o pasmo da vila, e vinha todo um volume de ponderações sobre a fraqueza da
criatura de Deus.
Aos solavancos dos velhos que
tinham desiguais alturas, o corpo pendera mais para uma
banda: à menor anfractuosidade do caminho então,
os sobrecarregados rogavam surdamente as pragas mais torpes — que nem
valia a pena levar um boi daqueles pelos seis vinténs da esmola.
O
mais ratão dos quatro era um
velhito baixo, que mostrava
escarlate uma órbita sem
olho e já caíra numa
contramina de horta. Dizia
ele com bela ênfase, todo sério:
— Como estas bestas morrem sem derreterem os
toucinhos, senhores!
O garoto do banco escandalizou-se
e resmungou:
— Vossemecê não tem vergonha em fazer mangação
dos defuntos?
Os outros riram, e o mais alto:
— Caluda, filhote! Que ainda te havemos de levar
adiante.
Mas o prior voltou-se, e da
frente o sacristão veio correndo de cruz ao ombro, em ar de clavina, com a
caldeirinha estendida para o responso. Os quatro da tumba pararam, o garoto estendeu
o banco.
— Abaixo! — ordenou o prior enfastiado.
O
esquife desceu. Uma vida
fecundante de átomos impalpáveis.
vibrava na luz, metálica na irradiação da cúpula
amplíssima. O enterro tinha parado e todos se voltavam para
trás, olhando o prior que espargia água benta sobre o corpo do Jerolmo.
Estava-se quase fora da vila, ao meio da rua última daquela banda, que entre
filas de casebres caiados corria, corcovando-se bruscamente depois sobre a
azinhaga.
Como o sol batia de chapa,
os trabalhadores faziam teto com as mãos em arco, à altura das
sobrancelhas, abrindo a boca e premindo as pálpebras, por uma contração
inconsciente de músculos faciais. Sobre os balcões das portas, as mulheres olhavam
alongando saudosamente os grandes olhos pretos, húmidos de lágrimas.
Abaixo da orla das saias de chita viam-se os tornozelos de algumas, calçados
em meia de linha azul. Muitas faziam meia, com os cabelos
oleosos de azeite e a marrafa separando as madeixas em duas pastas simétricas e
alisadas. Na terra das soleiras
as crianças seminuas rolavam-se rindo;
um fumo raso subia das chaminés. Na última porta tinham acabado de jantar
e via-se
a malga na mesa
baixa, os garfos de ferro com três
dentes apenas, restos de enorme
pão da amassadura da
semana, e em torno ainda sentada
a família, onde o chefe, velho pastor de polainas altas e ampla calva, rezava
de mãos postas e lábios mexendo, com o chapeirão nos joelhos.
O Jerolmo era muito estimado.
Todos diziam — Coitadinho! — lacrimejando. E enumeravam as suas virtudes, o seu bom gênio, a
sua economia, a sua temperança.
— Os bons leva Deus, que são do céu — dizia uma velha. Mas a voz do prior
ouviu-se imperativa e cheia de sabedoria em ruminação de latins, e fez-se um
silêncio piedoso. Toda a gente ajoelhou, que ninguém ouvia latim noutra postura
na vila. A recitação grave e numa língua estranha
dava aos espíritos simples a
profunda emoção de um fim próximo
e a lembrança de almas que
partem para as regiões
serenas da bem-aventurança com o seu pecúlio de graças adquiridas e asas
brancas da inocência. O pior ia dizendo:
— De
profundis clamavi ad te Domine. Domine exaudi vocem meam; nec aspiciat me visus
hominis. Kyrie eleison, Christe eleison, Kyrie eleison! Pater noster...
E as vozes rezavam baixo,
num coro murmurado, que ia como o
som do vento numa fenda, alternadamente agonizando e subindo até se perder,
à última aspersão de água benta do prior. De pescoço estendido, as
mulheres, brancas de pavor, olhavam ao meio da rua o esquife envolto na luz,
onde ia o corpo do trabalhador, retesado na rigidez que antecede a podridão.
Descaíra-lhe a cabeça para trás por haver escorregado um pouco a cabeceira da
enxerga, e o bordo da queixada, de uma linha parabólica, repuxava-lhe
angustiosamente os tendões do
pescoço esverdinhado, em que fazia
corcova o nó da
goela inútil.
Corria-lhe das ventas
um fio de sangue
negro, que os moscardos vinham beber
zumbindo, e por entre os dentes, a espaços, na boca que se abrira na convulsão
da última hora, gotas de gás podre faziam crepitar globozinhos, da íntima
fermentação que progredia.
Os amigos doutro tempo tiraram então
o lenço do bolso das véstias e saíam aos dois e aos três do seu lugar, para
piedosamente virem limpar a cara e os lábios do Jerolmo.
— Bendito seja Deus! — diziam, apavorados pelo
fervilhar da corrupção cadavérica, que a torridez do sol ativava
prodigiosamente.
O prior tinha acabado o responso
e abrira o seu enorme chapéu de sol.
— Carreguem — ordenou Sua Reverência aos quatro
homens. E o enterro entrou na azinhaga que ia dar ao cemitério.
Cada qual, sentindo-se um pouco à
vontade no campo, teve a necessidade de falar na sua vida, coisas alegres e
capazes de afugentar os maus pesadelos da cova.
— Quem teve
seara guapa foi cá
o mariola! — ia
dizendo um homenzarrão, e depunha os
grossos dedos no
ombro de um seco, de olho desconfiado.
— É pra que saiba. E ainda temos hoje um
calcadouro de tremês.
— E quando chega esse casório? —
quis saber um rapazola
louro, riso boçal, de pobre
diabo.
— Está pra tarde. Antes da vindima não — diziam.
O de olho desconfiado não dava
palavra, deixando que respondessem por ele.
— E moça de estimação. Desenxovalhada e mais
branca!... Seio de encher olho e golpenha, cos diabos!
— Podes lá com uma vaca daquelas, meu poeta! —
diziam-lhe. — Aquilo é mulher para te bater, ó Rato!
O de olho desconfiado ria, e
disse pachorrentamente:
— Quatro mil cruzados em terras, está
dourada que nem
uma princesa, rica saúde e vinte
e quatro anos. Um sobronho preto; que mais quero?
O louro conheci-a e o seu riso
abria-se sensualizado, com uma reminiscência gulosa.
— Está bem de ver! Está bem de ver!
A calma picava.
Sentia-se zumbirem os
insetos, e ao longe nas oliveiras
o ciciar das cigarras punha um ruído seco. Do outro lado discutia-se
a Joana, ainda frescalhona;
apesar dos dois filhos, aquilo vinha a casar ainda.
— Não seria eu que casasse com ela. Entrando só
com o corpo e ter de aturar dois diabos! Olha a fartura!
— Cá para
mim — dizia um
barbado —, mulher que casa duas
vezes é capaz de pregá-los ao marido.
— É a minha sistema! Mulher só pra um homem! O
mais, cabras!
— Homem, que hão de elas fazer? — perguntava um
benévolo.
— Mas a
Joana fica mal,
coitadinha. Eles não tinham
fazenda. Têm o burro, as casitas, uma jeira
de terra além às Taipas...
— Demais, o irmão do Jerolmo quer partilhas.
— Qual! — disse um viúvo, entendido. — Há
filhos. Só se levar a cinza da lareira, que é boa para barrelas.
— Como. há de a pobrezita governar os pequenos?
— Ora! Como? Como as mais, no campo. E a Rita
Santinha e a Teresa do Mudo, não vivem? À monda, à empa, à vindima, à ceifa.
Pois onde? Avezada a tudo como está, pode bem fazê-lo.
— E nada má — fazia surdamente um amarelento,
com certo riso.
Os valados prolongavam agora a
faixa da rua que findara, e eram ali altos os silvados e tão robustos os cachos
de amoras que os rapazes mais novos saíram do renque pra fazer provisão.
Estavam ao cimo da colina. O cemitério ficava a meia encosta, cintado em muros
brancos, com uma cruz de ferro na fachada. Do ponto do caminho em que iam, a
paisagem era da mais plena largueza de horizonte e da mais bela disposição de
pormenores. Convergiam de ambos os lados as courelas ceifadas, sobre a garganta
do vale, que ia perder-se a pouca distância junto do ribeiro e aos pés de uma
antiga orla de choupos e faias. Das ouvielas dos ferragiais e das vinhas irrompiam secos os pastos, camomilas, malmequeres, grisandras, maravilhas
e enormes cardos de cálices espinhosos. Para a esquerda ondulava num mar verde
vivo quase sem gradações, fatigante e sadia,
a região das vinhas. Figueiras gigantes abriam até ao chão
para-sóis metálicos de largos folhedos, sobre que revoava a pardalada. Aqui e
além as hortas abriam na grande
sinfonia cromática uma
cadência graciosa de tons bronze e verde-salsa; as nogueiras,
junto dos tanques,
ensombravam sofregamente as noras e cisternas, usurárias da frescura. À
direita . era olival, tristonho e abrasado. No ribeiro, à sombra dos canaviais,
as lavadeiras batiam as roupas, cantando. O fio de água era ténue como de uma
vida que pouco a pouco se desprende, e serpeando por baixo do arco da ponte,
onde um tufo de eucaliptos novos bulia,
ia expirar lentamente na
areia, sob as raízes sequiosas das junças e escalrachos.
Era junto dos eucaliptos mesmo,
que o Ricardo mais o Manel estavam à pesca das rãs, quando o enterro apareceu em cima. De entretidos
nem deram por tal. Tinham
conseguido, de manhãzinha logo, escapulir-se de casa enquanto as mães soluçavam
e as comadres iam prodigalizando lamentações e consolos de momento.
— Não sabes o que a mãe disse, ó Manel?
— Que foi?
— Que em ela me vendo andar contigo me havia de
dar sova.
— É mentira, deixa falar, é mentira.
— Olha, o pai morreu — disse o Ricardo. —Já não
ralha, pois não?
— Nada que não! Em fazendo trovões.
— Olha, vamos brincar?
— Eu cá
dispo a véstia. Peço um
pedaço de pão à
minha mãe e não apareço
senão às trindades — expôs o Manel, todo resoluto da ideia.
— E eu cá também.
— Olha
— disse o Manel abrindo os
olhos espertos, que um
embevecimento clareava — vamos às rãs?
— Oh, vamos!
As rãs eram a paixão
dos dois, o seu sonho, a sua coisa
mais ambiciosa na vida. Tinham construído sobre elas as
lendas mais extraordinárias e feito, por cópia do que ouviram às mães, uma
quantidade de promessas aos santos se um dia conseguissem apanhar uma viva, das
grandes.
À tardinha, quando os olhos
vigilantes da Joana por um instante os largavam, corriam logo para o ribeiro. A
chegada dos dois as rãs saltavam de todos os lados, da espessura dos juncos e
mentrastes, sobre a água dos charcos com um sonoro plhau! na profundeza dos
pegos. Calavam-se logo, agachados no tufo de eucaliptos, esperando pacientemente a ocasião.
Numa circunvolução do regato,
pensando-se sozinhas, algumas das rãs coaxavam à flor
da água, erguendo acima do nível
tranquilo as chatas cabeças verdes, olhos estourados de íris cor de ouro, e a
enorme boca semielíptica aberta ao ar numa espécie de sorriso extático e a
fila de pequeninos dentes córneas um pouco
curvos dispostos para a apreensão dos
animálculos. Erguiam-se então com grandes precauções e
subtilezas, acautelavam
extraordinariamente o ruído das passadas, prometendo baixinho, na
febre do desejo, dúzias de padre-nossos a Santo António se fosse
servido entregar-lhes algum dos
animaizinhos que faziam a
sua paixão e o seu
desespero. Mas, precipitados
como eram, não conseguiam jamais aprisionar os
elegantes anuros e, caindo a noite das montanhas azuis alinhadas em
decoração ao fundo da paisagem ridente, voltavam cheios de tristeza
e cansaço para as ceias da família, acabando por adormecer um ao pé do outro.
Na volta sentiam com surda raiva o coro de rãs uníssono e forte, magnificamente instrumentado de ironias, que parecia
de propósito erguido para lhes saudar a
retirada e escarnecer do
desalento e pouca arte que empregavam na
pescaria. Tal coro, na penumbra misteriosa e vasta dos campos, tinha a
concentração harmónica e a poesia nubívaga de um trena —
hino de liberdade de uma colónia
que de súbito readquire a sua independência.
O Manel, especialmente, embirrava com a troça. E, com mão rápida, fazia chover
nas poças de água mais sonoras grandes pedras talhadas em cunha e seguidas de
pragas adequadas ao caso e à solidão do lugar.
Tinham ouvido os rapazes que as
pernas das rãs tinham uma carne excelente e branca, tenra e fina como a de
galinha. Nenhum deles comera ainda: mas era magnífico! Tinha-lhes
contado o Coxo, um idiota
da terra, que uma
vez apanhara uma rã
muito grande. E vai abriu-a, e tinha na
barriga um canivetinho de duas folhas,
muito bonito. Para os
dois pequenos, ter um canivete de
duas folhas era uma opulência inestimável. E qualquer deles, nos dias de
desavenças ou amuos, querendo fazer sombra ao outro, já dizia:
— Deixa estar que eu hei de ter um canivetinho
de duas folhas e tu não!
— Hás
de, uma figa
torta! — dizia
logo o outro. Porque traziam as
rãs canivetezinhos na barriga? Não sabiam. Mas traziam, traziam!
O Manel, que era mais imaginoso,
entrava a explicar que as rãs faziam buracos pelo chão, furavam,
furavam.. e iam
ter à loja do Vieira
para roubarem as navalhinhas.
Então o Ricardo ria.
— Mentira!
E, com a
vozita gaguejada, fantasiava
pelo seu turno uma
teoria sobre os canivetes. E ambos
à borda das poças se interrogavam de vez em quando, surpresos:
— Mas como será que elas têm canivetes lá por
dentro? Aquilo é coisa que engolem.
— Qual?!
Como o calor era intenso, os
anuros andavam no fundo da água, por baixo de limos reticulados com a
delicadeza de frocos. O tufo
de eucaliptos lançava pois sobre o pego mais próximo da ponte uma sombra
alongada: ali sentia-se coaxar. As duas crianças agachadas quedavam-se, à
espreita:
— Que cantoria que fazem! — dizia baixinho o
Ricardo.
— Deixa
— resmungou o outro com ares fanfarrões.
— Eu dou cabo daqueles diabos.
Piscava os
olhinhos com intenção, tirando do
bolso um
pedaço de arame aguçado.
— Elas aparecem, eu vou com isto estendido e
tancho-as por uma perna.
E com profundo desdém:
— Hoje não é cá preciso padre-nossos!...
Foram-se aproximando do pego, de
gatinhas.
Viam-se os tornozelos do Ricardo,
grossos e de ligamentos inabaláveis, e o pé polpudo e forte, bom para firmar o corpo.
Devia ser de estatura mediana e muito robusto, de rico sangue. Pela camisa aberta e rasgada via-se o contraste da carne
branca do tronco com a epiderme fulva da
cara e das mãos. Sólido como um novilho, devia ter a índole ingênua e boa de Jerolmo, como lhe herdara a
enformação animal. O Manei era esguio e
seco, anguloso de ossatura. Tinha os cabelos corredios e as mãos estreitas, com unhas que revestiam quase o dorso das
falanges terminais. Era já teimoso e de
nervos suscetíveis. A sua
organização sensibilíssima, pressentida,
daria mais tarde o tipo
fisicamente inábil para a labuta da enxada e em construção perpétua
de estratagemas. Tinha os olhos grandes
e lúcidos como dois ônix molhados,
e a linha do nariz sem
proeminência, fazendo lembrar na cara olivâtre
e comprida o que quer que era de masque egípcia. Àquele tempo, o sino da Misericórdia mandava o último dobre de
finados. E o som badalado de quebrada em
quebrada chegou às crianças.
O
Ricardo parou, erguendo a
cabeça. Alongava os olhos com essa tristeza vaga dos que de outra forma não conseguem
formular uma comoção interior. Lembrava-lhe
o pai morto que iam meter na cova. Como essas naturezas que a música enche de soluços e de invencível
angústia, o sino, com aquela toada grave e preguiçosa — Tlão!
Tlão!.. Tlão! Tlão —
dava-lhe como uma reminiscência lúgubre.
A esse tempo o Manel
erguera-se também, esquecido da
pesca. E os seus olhos
deram com o enterro. O Zé do Ó ia entrando já pelo cemitério, a opa escarlate parecia de longe uma papoila cortada
que o vento impele.
Na meia-laranja da
porta depois, os homens
de escuro apinhavam-se para deixar passar a tumba, muito alta, aos ombros
dos velhos, em que o Jerolmo, de mãos
postas, oscilava, penetrando os muros brancos.
— É o teu pai — fez o Manel.
— Vai pro céu, então não vai?
— Está visto.
— Ele não gostava do teu, então gostava?
— Não
gostava! O meu
anda sempre bêbedo. É tão mau!..
. Dá com a corda.
— Ó Manei! Manei!
— Que é?
— A gente havemos de ser amigos sempre, não
havemos?
— Havemos.
— E brincar sempre, então não havemos?
O
outro não respondeu. Enquanto o Ricardo de gatas se adiantava para o
pego com o arame na mão, os olhos do
filho da vizinha acompanhavam de longe
os movimentos da massa de gente negra que viera ao enterro. Toda a noite a
mãe chorara, miseravelmente
abatida sobre a enxerga que servia também para albardar o burro.
O pai fora levado entre cabos de
polícia para a cadeia de Évora, com as mãos atadas nas costas e o
fato roto. No puxão de orelhas e nas palavras desprezadas do prior sentira
que estava filho de um assassino. Ouvia numa toada fatídica
os sinos da Misericórdia. Então as suas narinas
palpitaram, sentiu na garganta como um novelo que
se engrossava para o
estrangular. Uma coisa
abateu-o todo, percorrendo-o de
uma estranha galvanização de mágoas.
Entrou a
chorar alto, com profundos soluços
que num jogo brusco lhe alevantavam as pobres costelas esburgadas.
— Deixa — dizia o Ricardo, puxando-lhe as
calças, deixa lá. — A mãe não ralha,
não.
E, esquecidos, inocentes,
recomeçaram a pescaria. Do outro lado da ponte as lavadeiras tinham cessado de bater roupa. As vozes
cobriram de pragas o Estragado,
assassino, bêbedo e ladrão, que Deus confundisse na outra vida e as justiças degredassem nesta, para casa do
inferno.
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
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