QUATRO ÉPOCAS
(Contado por um misantropo)
Por detrás da nossa casa, passado
o laranjal, ficavam as oliveiras, manchando
de pardo o terreno ondulante que
uma erva
espessa e florida cobria.
As primeiras sezões que tive, por
um Verão de há quarenta anos, agradeci-as aos
calores insuportáveis a que durante uma semana me expus sem chapéu,
sem véstia e sem sapatos. No campo, segundo o costume patriarcal
da gente
pobre, mal o sino da igreja dá o meio-dia, o pai senta-se à mesa em
frente da mulher, os filhos à
roda, e janta-se. Findo o jantar, a
família levanta-se, conservando o seu lugar, e cada qual põe as
mãos. O pai e mãe rezam em voz
baixa, enquanto os filhos recitam
alto a oração de graças pelo
alimento daquele dia: Muitas graças e
louvores sejam dadas ao meu Senhor Jesus Cristo, pelos muitos bens e esmolas que me faz, tem
feito e tem para fazer enquanto for
servido. Padre Nosso...
Depois o chefe abençoa
os pequenos e manda-os tratar da vida;
os mais velhos para o trabalho,
os mais novos para a escola. O mestre que tive era um relapso sem emenda. Dia
sim, dia não, gazeta
sabida! Que júbilo o meu
quando, ao chegar com a pasta e a cantarinha de água, ouvia pelo tabuado
da escola o sapatear rebelde dos rapazes
e as vozes bramiam num coro estridente
que dizia:
— Não há escola, não há escola!
Íamos em bandos depois, cantando
praça abaixo, aos socos, aos empurrões e
aos berros.
Uma vida de bezerros circulava
nas nossas artérias sadias; uns atiravam com terra à cara dos outros, 'com pedras e com
pastas. Alguns dos mais graciosos arremedavam
o mestre, fazendo carantonhas de estoirar de riso. Vários ainda, dos que moravam perto, iam jogar o botão,
arrancando sem piedade as marcas das
ceroulas e das calças e os botões das jaquetas e coletes. de uma vez que apareci sem botões, a minha mãe deu-me açoites
com tão áspero chinelo que nunca mais
tive vontade de jogar. Aquela sova explica porventura o asco que ainda hoje sinto pelos jogos — tão abençoada
foi ela!
Já naquelas
idades, que uma alegria
embebeda de exuberantes e puras fantasias, armávamos
panelinhas de três, quatro
e cinco, para a
brincadeira. Sucedia às vezes
que essas pequenas sociedades eram
surpreendidas pelo mestre em pagodes reais. Levavam todos
com a régua ou iam
de joelhos todos, conforme.
A minha era composta do Chico
Rato, cujo pai era feitor na nossa casa, do Manel da Pomba, um loiro de olhos sinceros,
mau como os demônios, e do Zé Estrelo,
hoje pastor.
Em dias de feriado ou de gazeio
toca para o olival dançar nos baloiços, fazer caça aos ninhos ou atirar pedra à velha aos
telhados das adegas carairas.
Duma vez apanhamos um gato que
todas as noites nos ia roubar as crias dos coelhos. Atamos-lhe um baraço ao gasnete,
penduramo-lo numa oliveira e foi pedrada
até que morreu. Eu chorava de pena.
— Oh! minha lesma!
— dizia com desprezo
o Manel da Pomba, descarregando às três e às quatro, sobre o
pobre animal meio morto.
Mas o que mais nos divertia
era o baloiço. Atávamos as arreatas das mulas umas
nas pontas das outras; Zé Estrelo, que era o mais possante, dava laço na perna sólida, de uma oliveira secular.
As pontas pendentes da corda eram
atadas a
uma cortiça rija, que servia de assento.
E estava pronto — um! dois! três!
Começava a frescata.
Durante os cinco ou seis anos que
serviu aos nossos prazeres, a velha árvore nem por um instante nos traiu. A cortiça do
baloiço era ocupada às vezes por três
rapazes. Quebravam-se as cordas e vínhamos ao chão; a árvore, porém, nem nos metia susto, estalando. Boa e velha
amiga que parecia feliz deixando-nos pender nos seus ramos metálicos, como
esses cachos vivos de que falam as histórias maravilhosas!..
Uma noite,
depois da ceia, estando todos
ainda sentados à roda
da mesa, o meu pai, fazendo a voz
solene, disse-me que eu estava um homem e precisava cuidar do futuro. Eu tinha
uma forte admiração pelos carpinteiros,
naquele tempo. A arte com que
eles punham branca, nova e polida uma velha tábua com que o meu canivete nada
podia!.. A habilidade para tudo
ajustar e o gosto com que
arranjavam os carros com que
brincávamos, arrastando carretadas de
trigo, pelas eiras, davam-me um pasmo sem limites e um desejo sério de lhes seguir a profissão.
— Eu cá quero ser carpinteiro — disse eu todo
grave.
Meu pai bateu na mesa, e o senhor
prior, que estava presente, riu da minha ambição.
— Estás tolo, ou que diabo tens? — disse o meu
pai de sobrolho hirsuto, olhando-me.
— Vais
mas é para o colégio, como
os meninos do
cirurgião — disse
o prior com bondade.
Eu abri os olhos sem entender, ou
tremendo de entender. Ir para o colégio, numa terra distante onde ninguém me queria,
deixar o Manel da Pomba e o Zé Estrelo,
e a horta, a casa, o olival, o baloiço e a árvore amiga e tolerante? Quê? De
cabeça baixa, a minha
mãe não dizia nada. Puxei-lhe a
saia devagarinho, ferido de grande
medo:
— Não quero ir, mãe, não quero ir!
Os olhos dela fecharam-se e, aos
cantos das pálpebras comprimidas, lágrimas silenciosas caíram de uma saudade que ainda
hoje me entristece.
Tinha já nove anos e parti.
A lembrança que no colégio, à
noite e após todo um dia de aulas que a dureza dos prefeitos me enlutava de, amargos
desalentos, me vinha mais viva, mais inconsolável
e mais triste, era a da árvore velha do olival, que sem queixa me aturara tanto!
Bons tempos da
infância, purpureados de risos e cheios do casto aroma da inocência
— que vos não verei mais!..
No colégio, à medida que os anos
corriam e enraizava dessas leais estimas que servem para
toda a vida, as puerilidades da
aldeia apagavam-se-me pouco a pouco, como lâmpadas sem óleo em templos
desertos. Da segunda vez que vim a
férias, vestido como um pequeno senhor, de luvas e relógio, pareceram-me
desprezíveis as minhas velhas afeições. Fui uma tarde à escola, de chapéu na cabeça e bengalinha de junco. O mestre
tratou-me por senhor e sentou-me ao seu lado,
corando da superioridade
desdenhosa que eu mostrava. Os rapazes
ergueram-se respeitosamente como se
tivesse chegado o comissário dos estudos.
Aquela gentalha de sapatos cardados,
véstias de saragoça e camisas
de pano cru fez-me nojo, e tive humilhação, pensando que fora assim também, por tanto tempo. Lá estavam nos seus
bancos de pinho o Zé Estrelo, o Manel
da Pomba e o Rato,
de cabelo hirsuto,
punhos sebentos e livros amachucados, olhando-me com esses grandes
olhos doces que certos cães-d água fitam nos donos em os vendo a comer. Pouca
gente entrara de novo na escola. De vez
em quando, o mestre batia com a régua na mesa e gritava:
— Ó lá do canto! Temos paulada não tarda um
instante.
A casa imunda, cheia de cuspo e
papéis rasgados, era de uma nudez ignóbil.
— Aqui não aprendem francês? — perguntei
eu com uma superioridade que os meus dez valores na disciplina não
justificavam muito.
E nessa noite à ceia, enquanto o meu pai
olhava para mim num êxtase e a ternura da minha mãe orvalhava de lágrimas o
casto lenço branco que se lhe encruzava
no seio, disse passando a mão pela testa e cabelo, como via às vezes fazer aos de Matemática no colégio:
— Lá fui à escola fazer o meu bocado de troça.
Aos catorze anos
estava um homem,
espigado e pálido, com as olheiras sintomáticas da transição de idade. Era bonito
e meigo, com mãos de mulher, que veios
azuis reticulavam, como em certos mármores sagrados. As gengibas tinham-se-me descarnado um pouco, fazendo mais
compridos os dentes.
Ardia na aspiração intensa de
usar cabelo crescido e fatos de casimira clara. O uniforme negro do colégio e o cabelo à
escovinha da ordem torturavam-me o orgulho
de rapazinho elegante. O meu grande desejo era ser externo, fumar e ir ao teatro. Um, de Introdução, já crescido,
caíra uma vez de um cavalo e a queda
fizera-o ídolo da rapaziada. Quem pudera gozar também de semelhante triunfo! — pensava eu por vezes, sentindo um
ciúme ardente do herói. Uma mágica das Variedades,
onde fomos todos numa noite de Carnaval, patenteou para mim o amplo cenário
de um mundo com que o meu temperamento nervoso já sonhara confusamente. O de Introdução
emprestara-me um binóculo, o que me
permitiu observar miudamente as
decorações, os figurantes
e os camarotes. As bailarinas e os deuses
vestidos de malha apertada, que lhes desenhava
todas as linhas dos corpos,
fizeram-me palpitações de artérias e securas de garganta. Havia um príncipe loiro,
de uma beleza sem rival. Amei-o cá fora, anos depois, quando já perdera a
frescura e subira em preço — ai de mim!
Era uma
actrizita de dezassete anos,
boca vermelha e falas musicais, vestida de rapaz. Nada mais gracioso que os
seus pequenos pés ligeiros, que pulavam
ondas, rochedos, abismos e perigos — tudo de lona, é claro. A sua cinta era fina e flexível, e as ondulações do
seio cintilavam numa armadura de galão,
às escamas. Essa noite foi uma febre para mim, impetuosa, alucinada e tremenda. Que revolta, Santo Deus! Estendido
no leito do dormitório, onde seis ou sete
dos meus condiscípulos
tranquilamente dormiam, eu experimentava
dentro de mim o que quer
que era de um desabamento. Faltava-me o ar e tudo me andava á
roda. Que miserável aquela clausura, regulada
a sopa, vaca, arroz
e duas pêras verdes! E dez horas
de estudo, madrugadas peníveis, repreensões, opressões e malquerenças!. . Sim,
para além do colégio com a sua monotonia
de calustros, as suas apostilas, as quintas, os domingos de folga e a roupa lavada duas vezes
por semana, outra existência auriflamante
tumultuava em amores, em
pompas, em perigos e doidas fantasias preconcebidas e logo
realizadas-, E aquele príncipe loiro,
aquelas fadas azuis, e as
aspirações que o magnésio idealizava
de uma fascinação irresistível,
viviam, cantavam, amavam ao seu bel-prazer assim vestidos, lançando à
roda o cheiro da
carne viva e sadia,
que chama os famintos de deleites, e faz rolar as libras dos
perdulários. O candeeiro apagou-se por noite velha. Ergui-me cautelosamente, em camisa de
dormir.
— Quem anda aí? — perguntou, com voz de
porta-machado, o Carvalho, prefeito, que
fora de lanceiros.
Aquela voz enregelou-me, e tornei para
trás, como se por mim houvesse passado a maldição de Israel.
O de Introdução trouxe-me
romances. E a leitura frutificou no campo que a mágica das Variedades havia irrigado. A Filha
do Parricida — que esplêndido! «Já
leste?» dizia eu a toda a
gente. O Filho do Diabo fez-me sonhar. E os Bastidores do Mundo, o Doutor Negro, e os
Mistérios de Londres! Todo eu era
escadas de corda, alçapões, raptos, personagens mascaradas e juramentos solenes.
No quintal, às vezes, reproduzíamos as cenas terríveis
que Íamos lendo às escondidas. Fingindo irmos a cavalo,
encontravamo-nos num recanto da rua.
— Quem sois? — perguntava um.
— A lua romperá — respondia outro.
— Deixai passar,
irmãos — fazia
o primeiro, e cada qual seguia
o seu destino.
Doutras vezes,
ao chá, um de
nós exclamava arremessando ao Outro
um lenço:
— O senhor é um cobarde!
O insultado erguia o trapo,
bramindo:
— Ah, que
essa afronta só se pode apagar com sangue. Amanhã no Bosque de Bolonha, às sete.
— Lá estarei, senhor!
E íamos dormir em seguida, com o
maior sossego.
Estes devaneios eram
positivamente um estado patológico. Estávamos magros e pálidos,
adorávamos as noites de luar e as inglesas
de olhos claros e tornozelo másculo, que nos domingos de Inverno víamos sair
da missa
dos Ciprestes, loiras e frescas, apanhando os
vestidos. Um piano, uma
voz de mulher,
qualquer namoro e o menor pormenor da vida das ruas, era para nós um tema de sentimentalidade. Suspirávamos por
coisas etéreas e por aventuras trovadorescas.
Estudávamos pouco e tomávamos óleo de bacalhau e ferro em pílulas. Aos quinze anos acabei os
preparatórios, e, nas férias grandes que se seguiram, o meu pai faleceu. Nas cidades, a
morte do chefe da casa chega a ser um
episódio sem consequências mais altas que o luto da praxe e duas missas rezadas — quando a família não fica a morrer
de fome. Muda-se logo de casa por
via de regra, os filhos alargam a esfera
dos seus hábitos livres, e fazem aquisição
dos vícios que não tinham. Em quatro meses, o fim de cada membro da casa destroncada é comer alegremente
as rendas que um trabalho agro
porventura acumulou, no espaço de uma existência de acérrima labuta. O campo,
porém, conservando muitas das
virtudes patriarcais, dá
a esta perda um caráter
de fatalidade sem conciliação. A
viúva envelhece de lágrimas e estiola
como uma trepadeira queimada;
um dos filhos, se
é homem, empreende e continua a
tarefa do pai, adquirindo nos hábitos, no amor e no respeito da
família o mesmo grau de fervor cego e de obediência dedicada. Senta-se
à cabeceira da
mesa nas refeições, dirige
os trabalhos do campo, recebendo as rendas, ordenando as
colheitas e levantando-se mal o buraco luza.
Mas o seu governo é todo nominal.
Quem ali impera, quem a
tudo preside, quem julga tudo e
tudo ordena, é o velho, o marido, o pai, o outro, querido fantasma evocado a toda a hora e a
propósito de tudo, cujo sudário até vem
estender-se de noite, numa alvura de nebrina, a encher de fecundante orvalho as vegetações que ele próprio plantou.
Quando o meu pai fechou os olhos, eu estava
bem pouco apto a retomar o arado que a sua
mão exausta deixara
cair. Era franzino e branco, de um
temperamento irritável à
menor emoção, medroso, fantasista e
indolente, a quem
as duras profissões repugnavam como uma vileza, e a
ideia da vulgaridade cheia de um
terror supersticioso. A minha mãe chorava a
toda a hora
com dois irmãozitos ao colo.
A casa, silenciosa, parecia um túmulo profanado. Pobres como éramos, se um dia não velássemos a horta e o olival, a
miséria bater-nos-ia à porta. E justamente
quando ia a entrar na
Politécnica!.. Não sei como
aquele tempo passou. Há coisas que até
em ideias são sinistras. Lembro-me que perdi o ano e amei minha prima Marta,
uma loira diáfana, que viera
para nossa casa, da herdade em que nascera.
Esse amor, que era
doce, sincero e casto, deu a
nota mais alta na escala romântica
daquele período da minha vida.
Envergonho-me de o dizer, mas lemos Paulo
e Virgínia, Rafael e o Átala
em comum, ela vestida de branco porque eu lho pedia, eu de cabelos crescidos e
grande lustro de pomadas nas poupas.
Marta, com a
sua natureza contemplativa
e triste, propendia àqueles
lances patéticos da minha
imaginação de colegial. Era de uma simplicidade doce e de uma serena beleza, que os seus olhos azuis
enchiam de esplendores religiosos. Em
ela olhando para mim, eu corava. Toda a minha ambição agora era fazer-me
bonito e cidadão, para me impor
à sua ingenuidade.
Que Primavera a daquele ano! Depois do jantar íamos de braço
dado através dos laranjais em flor, num tapete de campainhas, fumárias e
malmequeres, ao rumor das noras e sentindo cair a água nos tanques da horta. Os
meus irmãos corriam adiante, com chapéus de palha, fazendo chiar os seus carros
de pinho. Nós, devagar, sentíamos no
aroma nupcial das árvores o quer que era de bênção que vinha em golfadas, sobre
as nossas cabeças. E debaixo da velha oliveira secular, que já me protegera
os brinquedos de garoto e
cujas ramarias artísticas, de tons cinzentos, abriam ao sol o seu toldo
amigo, o nosso amor eflorescia tranquilo, como se de cima o olhasse, das folhas
e dos ramos, o bom Deus de bondade com que os pequeninos sonham a sorrir.
Aos vinte anos o meu espírito
sofrera mais uma transformação. Criara amor pelo estudo e sentira a necessidade de um
ponto de vista em ciência, que lhe permitisse
sugar dos seus ásperos labores um certo número de noções práticas para
a vida de cada
dia. O curso de
ciências naturais conseguiu
destruir o mundo romanesco e labiríntico que eu
idolatrava em arte, dando-me certo gosto
afinal pelos estudos de observação. Comecei
por queimar todos os romances inverossímeis dos Srs. Terrail,
Reynolds, Féval, Montépin e Zaccone. Depois executei os
Srs. Feuillet e Feydeau; em seguida
fui-me aos poetas e vendi-os a oitenta réis o volume — por
escárnio. Nas férias herborizava com um
amor de que um ano antes me
julgaria incapaz; partia
de manhãzinha levando os cadernos
de dissecação na bolsa de caça, e um estojo de tubos de vidro, munido de compridos alfinetes no bolso
— para as coleções de insetos. Ao cair da noite voltava com duas perdizes à cinta
e alguns coelhos, os tubos cheios dos
coleópteros caçados, uma multidão de plantas curiosas esmagadas no álbum.
Minha mãe, que não compreendia o
meu interesse pelos bichitos, muita vez me
olhava surpresa, vendo-me estar horas esquecidas com um áptero no alvo de um microscópio de Raspail, que eu adquirira
no leilão de um classificador. Como se
ergue lentamente o estore colorido de uma janela, através de que um panorama vivo
se enxerga, assim os estudos de análise
erguiam de sobre o meu cérebro as fantasias bizarras e
piegas, permitindo-me palpar e surpreender a
natureza no drama da sua
gestação colossal. Longe de me dissecarem as faculdades criadoras e as
aspirações saltitantes da
imaginação, aqueles
trabalhos minuciosos, pacientes e nem
sempre coroados de êxito, davam-me às vezes conceções delicadas, de
larga elegância artística. Adquiri na frase
uma precisão incisiva, de pensador.
E cheguei a classificar um homem ao
primeiro golpe de vista, como
fazia a um inseto
posto no foco de uma bela lente
de crown-glass. A aridez das primeiras
tentativas não me arrastou a essa tristeza
morna e aborrecida de certos padecentes de dispepsias
crônicas. Por esse
tempo era eu um grand gaillard
vermelho e forte, com mãos
sólidas e afeitas indiferentemente às argolas
do trapézio, ao cabo da enxada e aos escalpelos do anfiteatro. Comia, como vulgarmente se diz, como um alarve, tinha
o sangue vivo e sadio, casto além
disso. A residência no campo, após a
morte do meu pai, operara a metamorfose do indivíduo anêmico, seco e propenso aos
delírios da imaginação voluptuosa, no útil primata de
sangue quente e respiração pulmonar, capaz de derrubar a Sé com um soco e
ser levado à morte pela mão de uma
criança. A reclusão dos livros reporta o homem a uma simplicidade doce e
austera de hábitos e emoções, e fá-lo
bom, depois de o haver feito grande.
Nenhum tônico mais eficaz à saúde
do espírito que a saúde do corpo. Uma enformatura
de atleta tem de ordinário um rouxinol por alma. De forma que eu sentia a bondade extravasar de mim como nos
tempos bíblicos o óleo de nafta da
urna da santa mulher,
que ajoelhada ungia os pés de
Jesus. Os violentos
exercícios em que o esforço
muscular se despende, a carreira,
a ginástica e a caça, faziam a
minha paixão, dando-me o culto da minha própria forma. Erguia verticalmente os dois braços,
tendo em cada mão sentado um dos meus
irmãozitos — coisa que assombrava o Zé Rato e fazia contentes os garotos. Diante dos grandes espetáculos em que
a natureza expende a mãos plenas o jogo
ícaro das suas forças harmônicas, a minha alma tinha frêmitos de asas como as andorinhas que vão atravessar
o oceano. A vacilação fatalista do período
lamartiniano fora substituída
por uma compreensão
lógica dos fatos, por uma
tranquilidade honrada à ideia do futuro e pelo testemunho da mais sã consciência. Entrei afazer religião do
trabalho, o que me permitiu não pensar
mais em Deus, tendo-o sempre no
coração. As mulheres eram concordes
em que a minha beleza era superior
à minha amabilidade. Uma senhora
achou-me uma noite a conversação de um lente. E algumas diziam de mim
«Pretensioso!» — porque lhes não falava
das locais amorosas e das revistas de modas.
Compreende-se que o meu
entusiasmo puritano por tudo quanto era grande não sobrasse para o espartilho das sirigaitas
que se me agitavam no caminho.
Assim modificado, tinha agora o
mais completo desprendimento pelo que se chama
gozar. Apagara-se-me o ideal pelintra
de muito folhetinista imberbe, que consiste em ser cumprimentado à porta da
Havanesa por três burgueses que passem,
mostrar todos os Invernos três pares de calças novas sobre dois de botas velhas, e um plastron vistoso num
seio tuberculado.
A ostentação e a exterioridade
enfastiavam-me como certos cheiros de ácidos vegetais. Odiava em geral o ruído e o luxo,
não achando digna de um homem sério
qualquer das lânguidas que nos passeios
e nos teatros via desfilarem, monótonas e sorvadas, por
diante de mim. No seio dos meus papéis ou na intimidade flagrante da natureza em
festa, sentia-me outro homem, respirando saudavelmente e digerindo às mil maravilhas;
uma alegria penetrava-me, com essa intoxicação anódina do gás
hilariante, nos organismos nervosos,
e eu crescia e revigorava,
sentindo a vida como um beneficio
sem preço. Foi durante esse tempo,
o mais laborioso, o mais infatigável, o mais
útil e o melhor de toda a minha vida, que pude realizar
as coleções de insetos que hoje pertencem
à Escola
Politécnica e me valeram os emboras dos grandes trabalhadores da Europa, e estudar quase
completamente a flora continental que
Brotero deixara lacunosa. Nestes
trabalhos depurara-se minha sensibilidade
ao extremo de me comover perante uma bela árvore ou ao cabo do estudo de qualquer complicado coleóptero.
Um indivíduo vegetal cativara o meu amor
ardente, apaixonado e ingênuo. Era ainda a oliveira que desde a infância
me oferecia a sua
sombra benéfica, a
sua ramaria frondente e a enorme corpulência secular do seu tronco. Que
grandeza, a desse gigante, que uma
espécie de bondade envolvia e divinizava!...
Aos cinquenta anos tinha os
cabelos brancos e a pele rugosa. A minha mulher, de compleição doentia, dera-me filhos sem
saúde e de sensibilidade estranha. Eram
pequenos pálidos, de grandes olhos ardentes,
mãos febris, frágeis e curiosos, cujo futuro me fazia tremer.
Estava cansado e velho. Toda a
vida sentira pelo dinheiro um desprezo sem limites, não lhe dando a honra sequer de o
acumular. Perdera a vista do olho direito,
aos trabalhos do microscópio. Era mais pobre que no tempo do meu pai — tinha apenas do meu o olival. Para
economizar, dirigia eu mesmo os trabalhos do campo e andava vestido de saragoça. Às vezes,
vinha-me o remorso de não ter
alcançado uma fortuna para essas pobres crianças, que a perpétua contemplação do mesmo panorama parecia enlutar de
melancolias negras e de
pressentimentos funestos. Pouco a pouco, à medida que os anos me polvilharam de neve
os cabelos, ia experimentando uma
irritação surda pelo meu passado laborioso, mas
estéril, dessa coisa
vil e preciosa chamada moeda.
Não tinha senão despesas; lucros,
raros! Então reneguei da
heroica abnegação de outros
tempos, tornando-me vulgar, macambúzio
e cheio de admiração pelos lavradores opulentos da vizinhança,
que recolhiam vinho às adegas e trigo aos celeiros. Os filhos
deles espezinhariam talvez um
dia os meus filhos, vingando a imbecilidade dos pais
da orgulhosa superioridade com que eu
os tratara. Os filhos deles seriam felizes, cheios
de confortos e prazeres, com a
faculdade de estudarem onde bem quisessem, e de fazerem fortuna
como bem lhes parecesse.
E os meus, mal
enroupados, doentios e invejosos — quem sabe se, conhecendo um dia a
minha história, maldiriam a intransigência
do meu caráter e a pouca solicitude com que lhes tratara dos interesses!
Os meus dias então eram levados
em percorrer o olival, no cálculo dos litros de azeite que me renderia a colheita.. Que desalento aquele meu! As árvores não carregavam todos os anos: enchia-as de
pragas, e maldizia a minha vida.
A oliveira secular somente,
compreendendo a minha situação e adivinhando a angústia
daqueles passeios
solitários, procurava com frutos
abundantes compensar o modesto tributo
que as outras árvores tão
custosamente me pagavam.
Fora para mim a
eterna mãe afetuosa, de cujos ramos pendera criança; a benévola confidente que cobrira do
seu dossel de folhagens o meu amor por
Marta, o esplêndido e vitorioso vegetal diante de que o meu êxtase de botânico tantas e tamanhas vezes tinha
exultado. O amor que eu lhe votara sofrera
as quatro fases de todos os amores da vida humana, em transigência sempre com a
orientação do caráter e com o
progredir dos anos. Fora, primeiro,
o amor de criança incoerente e doido; fora, mais tarde, o amor de adolescente,
idealista e rêveur, representativo
da idade em que o homem desagrega da alma as crenças inocentes e
começa a participar da influência dos primeiros
instintos másculos. Transfeito
no amor de sábio elevaram-me até regiões altívolas. —
Depois, no Inverno da
vida, aquela emoção arcangélica primeiro,
impregnada de poesia radiosa depois,
e tornada sublime por fim, decaíra
no vil egoísmo,
que mais prefere aquilo que mais
rende, impressão sem grandeza
e sem ideal, derradeira eflorescência
da alma obcecada
pelos interesses, pelas amarguras
e pelas opressões!
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
"Há coisas que até em ideias são sinistras".
ResponderExcluirO conteúdo de uma vida, às vezes nos parece ficção...mas não e!