domingo, 25 de agosto de 2013

Fialho de Almeida: "Quatro Épocas"

QUATRO ÉPOCAS
(Contado por um misantropo)
  
Por detrás da nossa casa, passado o laranjal, ficavam as oliveiras, manchando  de pardo o terreno ondulante  que uma  erva  espessa  e florida  cobria.  As  primeiras sezões que tive, por um Verão de há quarenta anos, agradeci-as aos  calores insuportáveis a que durante uma semana me expus sem chapéu, sem  véstia  e sem sapatos.  No campo, segundo o costume patriarcal da  gente  pobre, mal o sino da igreja dá o meio-dia, o pai senta-se à mesa em frente da mulher,  os filhos  à  roda,  e janta-se.  Findo o jantar,  a  família  levanta-se,  conservando o seu lugar, e cada qual põe as mãos. O pai e mãe rezam em voz  baixa,  enquanto os filhos recitam alto a  oração de graças pelo alimento  daquele dia: Muitas graças e louvores sejam dadas ao meu Senhor Jesus Cristo,  pelos muitos bens e esmolas que me faz, tem feito e tem para fazer enquanto  for servido. Padre Nosso...

Depois o chefe  abençoa  os  pequenos  e manda-os tratar da  vida;  os mais  velhos para o trabalho, os mais novos para a escola. O mestre que tive era um  relapso sem emenda.  Dia  sim,  dia  não, gazeta  sabida!  Que júbilo  o meu  quando, ao chegar com a pasta e a cantarinha de água, ouvia pelo tabuado da  escola o sapatear rebelde dos rapazes e as vozes bramiam num coro estridente  que dizia:

— Não há escola, não há escola!

Íamos em bandos depois, cantando praça abaixo, aos socos, aos empurrões e  aos berros.

Uma vida de bezerros circulava nas nossas artérias sadias; uns atiravam com  terra à cara dos outros, 'com pedras e com pastas. Alguns dos mais graciosos  arremedavam o mestre, fazendo carantonhas de estoirar de riso. Vários ainda,  dos que moravam perto, iam jogar o botão, arrancando sem piedade as marcas  das ceroulas e das calças e os botões das jaquetas e coletes. de uma vez que  apareci sem botões, a minha mãe deu-me açoites com tão áspero chinelo que  nunca mais tive vontade de jogar. Aquela sova explica porventura o asco que  ainda hoje sinto pelos jogos — tão abençoada foi ela!

Já  naquelas  idades,  que uma  alegria  embebeda de exuberantes  e  puras  fantasias,  armávamos  panelinhas  de três,  quatro  e cinco,  para  a  brincadeira. Sucedia  às vezes que  essas pequenas sociedades eram surpreendidas pelo  mestre  em pagodes reais.  Levavam todos  com a  régua  ou iam  de joelhos  todos, conforme.

A minha era composta do Chico Rato, cujo pai era feitor na nossa casa, do  Manel da Pomba, um loiro de olhos sinceros, mau como os demônios, e do  Zé Estrelo, hoje pastor.

Em dias de feriado ou de gazeio toca para o olival dançar nos baloiços, fazer  caça aos ninhos ou atirar pedra à velha aos telhados das adegas carairas.  

Duma vez apanhamos um gato que todas as noites nos ia roubar as crias dos  coelhos. Atamos-lhe um baraço ao gasnete, penduramo-lo numa oliveira e foi  pedrada até que morreu. Eu chorava de pena.  

— Oh!  minha lesma!  —  dizia  com desprezo  o Manel da  Pomba,  descarregando às três e às quatro, sobre o pobre animal meio morto.  

Mas o que mais nos  divertia  era  o baloiço.  Atávamos as arreatas das  mulas  umas nas pontas das outras; Zé Estrelo, que era o mais possante, dava laço na  perna sólida, de uma oliveira secular.

As pontas pendentes da corda eram atadas  a  uma  cortiça  rija, que servia de  assento.

E estava pronto — um! dois! três!  

Começava a frescata.  

Durante os cinco ou seis anos que serviu aos nossos prazeres, a velha árvore  nem por um instante nos traiu. A cortiça do baloiço era ocupada às vezes por  três rapazes. Quebravam-se as cordas e vínhamos ao chão; a árvore, porém,  nem nos metia susto, estalando. Boa e velha amiga que parecia feliz deixando-nos pender nos seus ramos metálicos, como esses cachos vivos de que falam as histórias maravilhosas!.. 

Uma  noite,  depois da  ceia, estando todos ainda  sentados  à  roda da  mesa, o meu pai, fazendo a voz solene, disse-me que eu estava um homem e precisava  cuidar do futuro.  Eu tinha  uma  forte admiração pelos  carpinteiros,  naquele  tempo. A arte com que eles punham branca, nova e polida uma velha tábua  com que o meu canivete  nada  podia!..  A habilidade para  tudo  ajustar e o  gosto com que arranjavam os  carros com que brincávamos, arrastando  carretadas de trigo, pelas eiras, davam-me um pasmo sem limites e um desejo  sério de lhes seguir a profissão.

—  Eu cá quero ser carpinteiro — disse eu todo grave.

Meu pai bateu na mesa, e o senhor prior, que estava presente, riu da minha  ambição.

—  Estás tolo, ou que diabo tens? — disse o meu pai de sobrolho hirsuto,  olhando-me.

—  Vais  mas é para  o colégio,  como  os  meninos  do  cirurgião  —  disse  o prior com bondade.

Eu abri os olhos sem entender, ou tremendo de entender. Ir para o colégio,  numa terra distante onde ninguém me queria, deixar o Manel da Pomba e o  Zé Estrelo, e a horta, a casa, o olival, o baloiço e a árvore amiga e tolerante?  Quê?  De cabeça  baixa,  a minha  mãe não dizia  nada.  Puxei-lhe a  saia  devagarinho, ferido de grande medo:

—  Não quero ir, mãe, não quero ir!  

Os olhos dela fecharam-se e, aos cantos das pálpebras comprimidas, lágrimas  silenciosas caíram de uma saudade que ainda hoje me entristece.

Tinha já nove anos e parti.

A lembrança que no colégio, à noite e após todo um dia de aulas que a dureza  dos prefeitos me enlutava de, amargos desalentos, me vinha mais viva, mais  inconsolável e mais triste, era a da árvore velha do olival, que sem queixa me  aturara tanto!

Bons tempos  da  infância,  purpureados  de risos e cheios do casto aroma  da  inocência — que vos não verei mais!.. 

No colégio, à medida que os anos corriam e enraizava dessas leais estimas que  servem para  toda a  vida,  as puerilidades  da  aldeia  apagavam-se-me pouco a  pouco, como lâmpadas sem óleo em templos desertos. Da segunda vez que  vim a férias, vestido como um pequeno senhor, de luvas e relógio, pareceram-me desprezíveis as minhas velhas afeições. Fui uma tarde à escola, de chapéu  na cabeça e bengalinha de junco. O mestre tratou-me por senhor e sentou-me ao seu lado,  corando da  superioridade desdenhosa  que eu mostrava.  Os  rapazes ergueram-se  respeitosamente como  se  tivesse  chegado o  comissário  dos estudos.  Aquela gentalha  de sapatos  cardados,  véstias de  saragoça  e  camisas de pano cru fez-me nojo, e tive humilhação, pensando que fora assim  também, por tanto tempo. Lá estavam nos seus bancos de pinho o Zé Estrelo, o Manel  da  Pomba e  o Rato,  de  cabelo  hirsuto,  punhos  sebentos  e livros  amachucados, olhando-me com esses grandes olhos doces que certos cães-d água fitam nos donos em os vendo a comer. Pouca gente entrara de novo na  escola. De vez em quando, o mestre batia com a régua na mesa e gritava:  

—  Ó lá do canto! Temos paulada não tarda um instante.  

A casa imunda, cheia de cuspo e papéis rasgados, era de uma nudez ignóbil.  

—  Aqui não aprendem francês? —  perguntei  eu com  uma  superioridade  que os meus dez valores na disciplina não justificavam muito.

E nessa noite à  ceia, enquanto  o meu pai  olhava  para  mim num êxtase e a  ternura da minha mãe orvalhava de lágrimas o casto lenço branco que se lhe  encruzava no seio, disse passando a mão pela testa e cabelo, como via às vezes  fazer aos de Matemática no colégio:

—  Lá fui à escola fazer o meu bocado de troça.

Aos  catorze anos  estava  um  homem,  espigado  e pálido,  com as olheiras  sintomáticas da transição de idade. Era bonito e meigo, com mãos de mulher,  que veios azuis reticulavam, como em certos mármores sagrados. As gengibas  tinham-se-me descarnado um pouco, fazendo mais compridos os dentes.  

Ardia na aspiração intensa de usar cabelo crescido e fatos de casimira clara. O  uniforme negro do colégio e o cabelo à escovinha da ordem torturavam-me o  orgulho de rapazinho elegante. O meu grande desejo era ser externo, fumar e  ir ao teatro. Um, de Introdução, já crescido, caíra uma vez de um cavalo e a  queda fizera-o ídolo da rapaziada. Quem pudera gozar também de semelhante  triunfo! — pensava eu por vezes, sentindo um ciúme ardente do herói. Uma  mágica das Variedades, onde fomos todos numa noite de Carnaval, patenteou para mim o  amplo cenário  de um mundo com que o meu temperamento nervoso já  sonhara confusamente. O de Introdução emprestara-me um binóculo, o que  me permitiu observar miudamente  as decorações,  os  figurantes  e os  camarotes.  As bailarinas e os  deuses  vestidos de malha  apertada,  que lhes  desenhava  todas as linhas  dos  corpos,  fizeram-me palpitações de artérias e  securas de garganta. Havia um príncipe loiro, de uma beleza sem rival. Amei-o cá fora, anos depois, quando já perdera a frescura e subira em preço — ai de  mim! Era  uma  actrizita de dezassete anos,  boca  vermelha  e falas musicais,  vestida de rapaz. Nada mais gracioso que os seus pequenos pés ligeiros, que  pulavam ondas, rochedos, abismos e perigos — tudo de lona, é claro. A sua  cinta era fina e flexível, e as ondulações do seio cintilavam numa armadura de  galão, às escamas. Essa noite foi uma febre para mim, impetuosa, alucinada e  tremenda. Que revolta, Santo Deus! Estendido no leito do dormitório, onde  seis  ou sete  dos  meus  condiscípulos  tranquilamente dormiam,  eu  experimentava  dentro  de mim  o  que quer que era de um  desabamento.  Faltava-me o ar e tudo me andava  á  roda.  Que miserável aquela  clausura,  regulada  a  sopa, vaca,  arroz  e duas pêras verdes!  E dez horas de estudo, madrugadas peníveis, repreensões, opressões e malquerenças!. . Sim, para além  do colégio com a sua monotonia de calustros, as suas apostilas, as quintas, os  domingos de folga e a roupa lavada duas vezes por semana, outra existência  auriflamante tumultuava  em amores,  em  pompas,  em perigos  e doidas  fantasias preconcebidas e logo realizadas-,  E aquele príncipe  loiro,  aquelas  fadas azuis,  e as  aspirações  que o magnésio  idealizava  de uma  fascinação  irresistível,  viviam,  cantavam, amavam  ao seu bel-prazer assim vestidos,  lançando à  roda  o cheiro  da  carne  viva  e sadia,  que chama  os  famintos de  deleites, e faz rolar as libras dos perdulários. O candeeiro apagou-se por noite  velha. Ergui-me cautelosamente, em camisa de dormir.

—  Quem anda aí? — perguntou, com voz de porta-machado, o Carvalho,  prefeito, que fora de lanceiros.  

Aquela  voz enregelou-me,  e tornei para  trás,  como se  por mim houvesse  passado a maldição de Israel.

O de Introdução trouxe-me romances. E a leitura frutificou no campo que a  mágica das Variedades havia irrigado. A Filha do Parricida — que esplêndido! «Já  leste?»  dizia eu a  toda a  gente.  O  Filho do Diabo  fez-me sonhar.  E  os  Bastidores do Mundo, o Doutor Negro, e os Mistérios de Londres! Todo eu  era escadas de corda, alçapões, raptos, personagens mascaradas e juramentos solenes.

No quintal,  às vezes, reproduzíamos as cenas terríveis que Íamos  lendo às  escondidas. Fingindo irmos a cavalo, encontravamo-nos num recanto da rua.  

—  Quem sois? — perguntava um.  

—  A lua romperá — respondia outro.  

—  Deixai passar,  irmãos  —  fazia  o primeiro,  e cada  qual seguia  o seu  destino.

Doutras  vezes,  ao  chá,  um  de nós  exclamava  arremessando ao  Outro  um  lenço:

—  O senhor é um cobarde!  

O insultado erguia o trapo, bramindo:  

—  Ah,  que essa  afronta só  se pode apagar com sangue.  Amanhã no  Bosque de Bolonha, às sete.

—  Lá estarei, senhor!  

E íamos dormir em seguida, com o maior sossego.  

Estes devaneios eram positivamente um estado patológico. Estávamos magros  e pálidos,  adorávamos as noites  de luar  e as inglesas  de olhos  claros e  tornozelo másculo,  que nos domingos de Inverno víamos sair da  missa  dos  Ciprestes,  loiras e frescas,  apanhando os  vestidos.  Um piano,  uma  voz  de   mulher, qualquer namoro e o menor pormenor da vida das ruas, era para nós  um tema de sentimentalidade. Suspirávamos por coisas etéreas e por aventuras  trovadorescas. Estudávamos pouco e tomávamos óleo de bacalhau e ferro em  pílulas. Aos quinze anos acabei os preparatórios, e, nas férias grandes que se  seguiram, o meu pai faleceu. Nas cidades, a morte do chefe da casa chega a ser  um episódio sem consequências mais altas que o luto da praxe e duas missas  rezadas — quando a família não fica a morrer de fome. Muda-se logo de casa  por via  de regra,  os filhos alargam a  esfera  dos seus hábitos livres,  e fazem aquisição dos  vícios  que não tinham.  Em quatro meses,  o fim de cada  membro da casa destroncada é comer alegremente as rendas que um trabalho  agro porventura acumulou, no espaço de uma existência de acérrima labuta. O  campo,  porém,  conservando muitas das virtudes  patriarcais,  dá  a  esta perda  um  caráter de fatalidade sem conciliação.  A viúva  envelhece de  lágrimas e  estiola  como uma  trepadeira  queimada;  um  dos  filhos, se  é homem,  empreende e continua a tarefa do pai, adquirindo nos hábitos, no amor e no  respeito da  família  o mesmo  grau de fervor cego e de obediência  dedicada.  Senta-se  à  cabeceira  da  mesa  nas refeições,  dirige  os  trabalhos  do campo,  recebendo as rendas, ordenando as colheitas  e levantando-se mal  o buraco  luza.  Mas o seu governo é todo nominal.  Quem ali  impera,  quem a  tudo  preside, quem julga tudo e tudo ordena, é o velho, o marido, o pai, o outro,  querido fantasma evocado a toda a hora e a propósito de tudo, cujo sudário  até vem estender-se de noite, numa alvura de nebrina, a encher de fecundante  orvalho as vegetações que ele próprio plantou. Quando o meu pai fechou os  olhos,  eu estava  bem  pouco apto a  retomar o arado que a  sua  mão  exausta  deixara  cair.  Era  franzino e branco,  de um  temperamento  irritável  à  menor  emoção,  medroso, fantasista  e  indolente,  a  quem  as duras  profissões  repugnavam como uma  vileza, e a  ideia da  vulgaridade cheia  de um  terror  supersticioso.  A minha mãe chorava  a  toda  a  hora  com dois  irmãozitos  ao  colo. A casa, silenciosa, parecia um túmulo profanado. Pobres como éramos,  se um dia não velássemos a horta e o olival, a miséria bater-nos-ia à porta. E  justamente quando ia  a  entrar na  Politécnica!..   Não sei como aquele tempo  passou. Há coisas que até em ideias são sinistras. Lembro-me que perdi o ano  e amei minha prima  Marta,  uma  loira diáfana,  que viera  para  nossa  casa, da  herdade em que nascera.

Esse amor,  que era  doce,  sincero e casto,  deu a  nota  mais alta na  escala  romântica  daquele  período da  minha vida.  Envergonho-me de o dizer,  mas  lemos Paulo  e Virgínia,  Rafael  e o Átala  em comum, ela  vestida de branco  porque eu lho pedia, eu de cabelos crescidos e grande lustro de pomadas nas  poupas.

Marta,  com a  sua  natureza  contemplativa  e triste,  propendia  àqueles  lances  patéticos da minha imaginação de colegial. Era de uma simplicidade doce e de  uma serena beleza, que os seus olhos azuis enchiam de esplendores religiosos.  Em ela olhando para mim, eu corava. Toda a minha ambição agora era fazer-me bonito  e cidadão, para  me impor  à  sua  ingenuidade.  Que Primavera  a  daquele ano! Depois do jantar íamos de braço dado através dos laranjais em flor, num tapete de campainhas, fumárias e malmequeres, ao rumor das noras e sentindo cair a água nos tanques da horta. Os meus irmãos corriam adiante, com chapéus de palha, fazendo chiar os seus carros de pinho. Nós, devagar,  sentíamos no aroma nupcial das árvores o quer que era de bênção que vinha em golfadas, sobre as nossas cabeças. E debaixo da velha oliveira secular, que já  me protegera  os brinquedos  de garoto  e  cujas ramarias  artísticas,  de tons cinzentos, abriam ao sol o seu toldo amigo, o nosso amor eflorescia tranquilo, como se de cima o olhasse, das folhas e dos ramos, o bom Deus de bondade com que os pequeninos sonham a sorrir.

Aos vinte anos o meu espírito sofrera mais uma transformação. Criara amor  pelo estudo e sentira a necessidade de um ponto de vista em ciência, que lhe  permitisse sugar dos seus ásperos labores um certo número de noções práticas  para  a  vida de  cada  dia.  O  curso de  ciências naturais  conseguiu destruir  o  mundo romanesco e labiríntico que eu idolatrava  em arte,  dando-me certo  gosto  afinal  pelos estudos  de observação.  Comecei  por  queimar todos os  romances inverossímeis dos Srs. Terrail, Reynolds, Féval, Montépin e Zaccone. Depois executei  os  Srs.  Feuillet e Feydeau;  em seguida  fui-me aos  poetas e  vendi-os a oitenta réis o volume — por escárnio. Nas férias herborizava com um  amor de que um  ano antes me julgaria  incapaz;  partia  de manhãzinha  levando os cadernos de dissecação na bolsa de caça, e um estojo de tubos de  vidro, munido de compridos alfinetes no bolso — para as coleções de insetos. Ao cair da noite voltava com duas perdizes à cinta e alguns coelhos, os tubos  cheios dos coleópteros caçados, uma multidão de plantas curiosas esmagadas  no álbum.

Minha mãe, que não compreendia o meu interesse pelos bichitos, muita vez  me olhava surpresa, vendo-me estar horas esquecidas com um áptero no alvo  de um microscópio de Raspail, que eu adquirira no leilão de um classificador.  Como se ergue lentamente o estore colorido de uma janela, através de que um  panorama vivo  se enxerga,  assim os estudos  de análise  erguiam  de sobre o  meu cérebro as fantasias bizarras e piegas,  permitindo-me palpar e  surpreender a  natureza  no drama da  sua  gestação colossal.  Longe de me  dissecarem as faculdades criadoras e as aspirações  saltitantes  da  imaginação,  aqueles trabalhos  minuciosos, pacientes  e  nem sempre coroados  de êxito,  davam-me às vezes conceções delicadas, de larga elegância artística. Adquiri na  frase uma precisão incisiva, de pensador.  

E cheguei  a classificar um  homem ao  primeiro  golpe de  vista, como  fazia a  um  inseto  posto no foco de  uma  bela lente  de  crown-glass. A aridez das  primeiras tentativas não me arrastou a  essa  tristeza  morna  e aborrecida de  certos padecentes  de dispepsias  crônicas.  Por  esse  tempo era  eu  um  grand  gaillard  vermelho  e forte,  com mãos  sólidas e  afeitas indiferentemente  às  argolas do trapézio, ao cabo da enxada e aos escalpelos do anfiteatro. Comia,  como vulgarmente se diz, como um alarve, tinha o sangue vivo e sadio, casto  além disso.  A residência  no campo, após  a  morte do meu pai,  operara  a  metamorfose  do indivíduo anêmico,  seco e propenso  aos  delírios da  imaginação  voluptuosa, no útil primata  de  sangue  quente e respiração  pulmonar, capaz de derrubar a Sé com um soco e ser levado à morte pela mão  de uma criança. A reclusão dos livros reporta o homem a uma simplicidade  doce  e austera  de hábitos e emoções,  e fá-lo  bom,  depois de o  haver feito  grande.

Nenhum tônico mais eficaz à saúde do espírito que a saúde do corpo. Uma  enformatura de atleta tem de ordinário um rouxinol por alma. De forma que  eu sentia a bondade extravasar de mim como nos tempos bíblicos o óleo de  nafta  da  urna  da  santa mulher,  que ajoelhada ungia  os pés de Jesus.  Os  violentos  exercícios  em que o esforço muscular se despende,  a  carreira,  a  ginástica e a caça, faziam a minha paixão, dando-me o culto da minha própria  forma. Erguia verticalmente os dois braços, tendo em cada mão sentado um  dos meus irmãozitos — coisa que assombrava o Zé Rato e fazia contentes os  garotos. Diante dos grandes espetáculos em que a natureza expende a mãos  plenas o jogo ícaro das suas forças harmônicas, a minha alma tinha frêmitos  de asas como as andorinhas que vão atravessar o oceano. A vacilação fatalista  do  período  lamartiniano  fora  substituída  por  uma  compreensão  lógica dos  fatos, por uma tranquilidade honrada à ideia do futuro e pelo testemunho da  mais sã consciência. Entrei afazer religião do trabalho, o que me permitiu não  pensar mais em Deus, tendo-o sempre no  coração.  As mulheres eram concordes em que a  minha beleza era  superior  à  minha amabilidade.  Uma  senhora achou-me uma noite a conversação de um lente. E algumas diziam de mim «Pretensioso!» —  porque lhes  não falava  das locais amorosas e  das  revistas de modas.  

Compreende-se que o meu entusiasmo puritano por tudo quanto era grande  não sobrasse para o espartilho das sirigaitas que se me agitavam no caminho.  

Assim modificado, tinha agora o mais completo desprendimento pelo que se  chama  gozar.  Apagara-se-me o ideal  pelintra  de  muito  folhetinista imberbe,  que consiste em ser cumprimentado à porta da Havanesa por três burgueses  que passem, mostrar todos os Invernos três pares de calças novas sobre dois  de botas velhas, e um plastron vistoso num seio tuberculado.

A ostentação e a exterioridade enfastiavam-me como certos cheiros de ácidos  vegetais. Odiava em geral o ruído e o luxo, não achando digna de um homem  sério qualquer das lânguidas que nos  passeios e nos teatros via  desfilarem,  monótonas e sorvadas,  por  diante de mim.  No seio dos  meus  papéis  ou na intimidade flagrante da natureza em festa, sentia-me outro homem, respirando  saudavelmente e digerindo às mil maravilhas; uma alegria penetrava-me, com  essa  intoxicação anódina  do gás  hilariante,  nos organismos  nervosos,  e eu  crescia  e revigorava,  sentindo a  vida como um  beneficio  sem  preço.  Foi  durante  esse tempo,  o mais laborioso,  o mais infatigável,  o mais  útil e  o  melhor de toda a minha vida, que pude realizar as coleções de insetos que hoje  pertencem à  Escola  Politécnica  e me valeram os  emboras dos grandes  trabalhadores da Europa, e estudar quase completamente a flora continental  que Brotero deixara  lacunosa.  Nestes  trabalhos  depurara-se  minha  sensibilidade ao extremo de me comover perante uma bela árvore ou ao cabo  do estudo de qualquer complicado coleóptero. Um indivíduo vegetal cativara  o meu amor ardente, apaixonado e ingênuo. Era ainda a oliveira que desde a  infância  me oferecia  a  sua  sombra  benéfica,  a  sua  ramaria  frondente e a  enorme corpulência secular do seu tronco. Que grandeza, a desse gigante, que  uma espécie de bondade envolvia e divinizava!...

Aos cinquenta anos tinha os cabelos brancos e a pele rugosa. A minha mulher,  de compleição doentia, dera-me filhos sem saúde e de sensibilidade estranha.  Eram pequenos  pálidos,  de grandes olhos  ardentes,  mãos  febris,  frágeis e  curiosos, cujo futuro me fazia tremer.

Estava cansado e velho. Toda a vida sentira pelo dinheiro um desprezo sem  limites, não lhe dando a honra sequer de o acumular. Perdera a vista do olho  direito, aos trabalhos do microscópio. Era mais pobre que no tempo do meu  pai — tinha apenas do meu o olival. Para economizar, dirigia eu mesmo os  trabalhos  do campo e andava  vestido de saragoça.  Às vezes,  vinha-me o  remorso de não ter alcançado uma fortuna para essas pobres crianças, que a  perpétua contemplação do mesmo  panorama parecia  enlutar de  melancolias  negras e de pressentimentos funestos. Pouco a pouco, à medida que os anos  me polvilharam de  neve  os cabelos,  ia  experimentando  uma  irritação  surda  pelo meu passado laborioso,  mas  estéril,  dessa  coisa  vil  e preciosa  chamada  moeda.  Não  tinha senão despesas;  lucros,  raros!  Então reneguei  da  heroica  abnegação de  outros  tempos, tornando-me  vulgar,  macambúzio  e cheio  de  admiração pelos lavradores opulentos da vizinhança, que recolhiam vinho às  adegas  e trigo aos celeiros.  Os filhos  deles  espezinhariam talvez  um  dia  os  meus filhos, vingando a imbecilidade dos pais da orgulhosa superioridade com  que eu os  tratara.  Os filhos deles  seriam felizes,  cheios  de  confortos  e  prazeres,  com a  faculdade de estudarem onde bem quisessem, e de fazerem  fortuna  como  bem lhes  parecesse.  E os  meus,  mal  enroupados, doentios  e  invejosos — quem sabe se, conhecendo um dia a minha história, maldiriam a  intransigência do meu caráter e a pouca solicitude com que lhes tratara dos  interesses!

Os meus dias então eram levados em percorrer o olival, no cálculo dos litros  de azeite que me renderia a colheita..  Que desalento aquele meu! As árvores  não carregavam todos os anos: enchia-as de pragas, e maldizia a minha vida.  

A oliveira secular somente, compreendendo a minha situação e adivinhando a  angústia  daqueles  passeios solitários,  procurava  com frutos  abundantes  compensar o modesto tributo que as outras árvores  tão custosamente  me  pagavam.  Fora  para  mim a  eterna  mãe afetuosa,  de cujos ramos  pendera  criança; a benévola confidente que cobrira do seu dossel de folhagens o meu  amor por Marta, o esplêndido e vitorioso vegetal diante de que o meu êxtase  de botânico tantas e tamanhas vezes tinha exultado. O amor que eu lhe votara  sofrera as quatro fases de todos os amores da vida humana, em transigência  sempre com a  orientação do  caráter e com o progredir dos  anos.  Fora,  primeiro, o amor de criança incoerente e doido; fora, mais tarde, o amor de  adolescente,  idealista  e rêveur, representativo  da  idade em que  o homem  desagrega da alma as crenças inocentes e começa a participar da influência dos  primeiros instintos  másculos.  Transfeito  no amor de sábio  elevaram-me até  regiões altívolas.  —  Depois,  no Inverno  da  vida,  aquela emoção arcangélica  primeiro,  impregnada de poesia  radiosa  depois,  e tornada  sublime por fim,  decaíra  no  vil  egoísmo,  que mais prefere  aquilo que mais rende,  impressão  sem grandeza  e sem ideal,  derradeira  eflorescência  da  alma  obcecada  pelos  interesses, pelas amarguras e pelas opressões! 

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Fialho de Almeida - Contos (1881)

Um comentário:

  1. "Há coisas que até em ideias são sinistras".
    O conteúdo de uma vida, às vezes nos parece ficção...mas não e!

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