A DESFORRA DE BACCARAT
O conde não acompanhou a sua
esposa nessa noite.
Era quinta-feira.
O
Inverno rigoroso, céus
continuamente emburelados em forros
plúmbeos, chuvas eternas que não davam guarida,
lama pelas ruas, bocejos pelos gabinetes,
aspetos constipados, a bronquite tripudiando a sua impunidade
pelos
narizes das famílias, em S. Carlos
a Varezi trilando divinamente, com aquele sorriso
que parecia uma esperança e que
se tornou, desde que ela partiu, num desespero. No Grêmio Alberto de
Selvas esperava o conde; além disso, apostara
no Clube a queda do ministério; e, por
fim, ele
não queria dizer, mas Fatime
esperava-o, queria cear com ele, a Fatime do corpo de baile, uma
loira picante, de
carnes friamente impuras,
cujo olhar, de
um pardo inerte, possuía nos acessos de cólera
fulgurações de adorável maldade. Razões que
impuseram resistência às súplicas da condessinha e diante de cuja teimosia ela fez
beicinho, com uma expressão
de candura inimitável. De
modo que, mal
Charmille, o velho criado
grave, serviu o café
no pavilhão chinês, e o conde bebeu o seu velho conhaque digestivo,
pediu o prussiano, acendeu um carvajal
pequenino, de um aroma penetrante, e, beijando a condessa, partiu.
No pátio ouvimo-lo cantarolar as
coplas dos Sinos, e as suas botas rangeram no xadrez do átrio. Depois o cupé rodou e
ficamos sós. A tarde caía, e sobre o terraço,
para onde rasgavam as janelas do gabinete de trabalho, um raio de sol, peneirado através das moitas de
trepadeiras, tinha uma
luz harmônica, inefável, discreta, em que se sonhava o
idílio, de uma pureza arcangélica, nas regiões
fantásticas do incomensurável, sobre o dorso
de cometas desgrenhados. Uma
arara monótona chalreava, suspensa por um só pé a um suporte metálico,
patenteando no arrojo das penas, de brilhos ardentemente metálicos,
matizes inconcebíveis,
divinos cambiantes de um mordente estranho,
tons apaixonadamente fulvos, em
todas as gradações do espectro, com saturações
vivas de escarlate e violências
de verde, de um cáustico exaltado. A
condessa fechou o livro e olhou para
mim. Era uma criança anêmica, fina beleza
aristocrática, crescida como uma
avenca australiana no mole
ambiente, impregnado de essências, dos budoirs, dos salões e das largas galerias claras, em que antepassados graves
olham dos seus quadros poentos, ridículos
ou funéreos nos seus vestuários de todas as idades.
O seu tipo bourbônico,
palidamente senhoril, tinha um cunho real que feria e, sentindo-a respirar e sorrir, todo o mundo se
abalava por ela numa simpatia entusiasta,
num vasto amor infinito e terrível como a morte. Umas religiosas irlandesas
tinham-na educado lio Bom Sucesso;
por toda a parte grades, a austeridade da clausura, frias pedagogas
embiocadas em negro, o sino batendo as
suas pancadas cortantes, as preguiças de levantar cedo, as tristes harmonias que lhe
ensinavam nas harpas douradas, e
em que pareciam soluçar tormentosas
legendas de amores místicos,
e rolarem pelas escadarias dos cadafalsos
vermelhas cabeças palpitantes.
Saiu de lá falando
menos mal as línguas, bordando
jardins suspensos em almofadas
de aparato, com um vício, o piano, e um vácuo diante da sua alma — a vida em que ia entrar. A sua mãe, uma
rainha de bailes, lia romances dias inteiros, ein
chambre, deitada num divã
opulento, o cabelo por cima das mesas,
perfumes caros na epiderme e meias de seda esticadas acima do joelho.
E ela afez-se também às leituras.
Belot, que uma amiga lhe
emprestara, pôs em vibração na sua alma uma corda misteriosa, e pela primeira vez na sua vida de
virgem se abrasou em ímpetos. E o seu
sangue impetuoso teve alucinações
candentes, em que passavam homens
brancos, virginais, atléticos, nus
e vívidos, que lhe estendiam os braços.
Desceu com o visconde
Ponson, com o celerado Capendu e com o
patife Zaccone aos pavores dos
subterrâneos em que se despenhavam protagonistas heroicos;
quis sofrer com eles as
inclemências dos cárceres e as agonias da tortura, escamugindo-se quando pôde pelas
saídas misteriosas em que molas ocultas
fazem girar portões de rochedos; subiu as escadas de corda, mascarada de veludo negro, com um
frasquinho de sais no bolso e
um punhal nos dentes; penetrou
conclaves lôbregos em que conspiradores
avançam solenemente para fazer frases,
e se pronunciam juramentos
terríveis com as espadas nuas
sobre braseiros consagrados, à luz de tochas de cera amarela. E romanticamente
decorou frases pomposas das heroínas, teve atitudes teatrais de uma
exibição ridícula, esgares e
lirismos. Pintava de bistre
olheiras sentimentais e, sobre os
ombros seminus em gaze vaporosa, deixou revolutear os cabelos turbulentos, secos, crespos, em
tons hilariantes.
Mas uma tarde parou uma carruagem
à porta.
Um rapaz que ela vira em S.
Carlos, de luneta de oiro, na Havanesa puxando punhos de aparato, nos chás do ministro da
Alemanha declamando teorias, no Parlamento pedindo
caminhos-de-ferro em nome do
progresso e da civilização, entrou com
um velho.
Vinham pedi-la em casamento.
O
pai de Beatrice fazia
política, pedia também caminhos-de-ferro e moralidade nas províncias da pública
administração, mal sabia o nome dos filhos e só ao jantar estava com a família,
não obstante lamentar a decadência da sociedade portuguesa, nos artigos de fundo.
A mãe, por causa dela, não podia
instalar comodamente os amantes, tinha por isso birras, rogava pragas em voz alta. Vida
do diabo. Raio de filhos!
Um dos apaixonados, o cônego D.
Venâncio, queixara-se até às criadas, que aquilo não podia continuar assim, que nem uma
pessoa era senhor de levar a sua capa de
trazer e os seus solidéus de retrós preto, com uma borlazinha na nuca.
De modo que o casamento fez-se.
O Ilustrado falou com boas
orações incidentes explicativas e adjetivos novos, da
festa, dos convidados, «a
fina flor», das toilettes, tudo,
de aprimorado gosto, publicava com pompa.
E havia dois
anos que Beatrice era
condessa, a condessinha,
e que eu, o melhor amigo do conde, assistia às suas matinées e às suas desilusões.
Na boca pequenina dela, vermelhamente
lasciva, uma contração irônica dizia as
suas impaciências, os seus arrebatamentos, as suas flutuantes predileções, os seus langores e os seus desdéns. Amava
os vestidos decotados e os
largos colarinhos de cretone
azul, que permitem a viagem mística do olhar artista ou sacrílego, até à promessa, aos esplendores de
um seio.
O meu olhar, casualmente,
inocentemente — dou a minha palavra de honra — como
uma ave ferida, foi de manso e pouco a
pouco, como quem quer reter o voo e
não tem forças, cair
também nesse abismo de alabastro
e, ao reparar atônito no sacrilégio, viu a
condessinha sorrir, um risinho lancinante que dizia:
— Então... que é lá isso,
também...
A carne é frágil. Frágil e
petulante.
Naquele momento quisera ter
cegado. Depois — não vão dizer nada — senti pena de não ter olhado melhor. Mas era
shocking!
Lançava as culpas para a
condessinha; para que punha aqueles colarinhos? E, olhando-me aos espelhos das paredes, via-me chamejante, em tons apopléticos de lagosta, o frisson das grandes
culpas pela espinha dorsal.
Assim chegou aquela tarde.
Beatrice continuava abandonada no
fauteuil, a sorrir.
E o maldito colarinho aberto, o
sicário, aberto, aberto!...
A tarde esmaecia nos longes,
sobre o mar, e no silêncio a noite condensava escuridades no ar com um metodismo severo,
imperturbável, gradual.
O relógio feriu cinco horas.
Por uma janela
aberta o rumor da
cidade entrava; carruagens
sentiam-se ao longe e, no vasto negro,
pontinhos de gás bordavam evoluções caprichosas, marcando
as curvas das ruas, o
afunilamento dos becos, as dilatações
das praças lamacentas.
Não pedimos luz.
Eu fumava na
causeusse. A condessinha, distraída
agora, absorta e com o olhar perdido nos relevos do teto,
abandonava-se; e na penumbra das coisas o seu busto adquiria linhas ideais de visão
benigna, a morbideza cálida de certas organizações
doentias.
Ergueu a voz:
—
Meu marido...
—
Para que diabo vem agora
o marido? — pensei
frenético, com um embate audaz no cérebro.
—
Meu marido diz-me sempre ter em si, Armando, o seu melhor amigo.
— Curvei-me.
—
É uma honra.
—
Cale-se, é apenas gratidão. O conde é sincero. E mudando de tom:
—
Armando, que idade tem?
—
Vinte, condessa, bem monótonos na verdade.
—
Vinte anos! — E a sua voz, de uma inflexão musical, era suave como uma carícia.
Eu sentia-me todo levado para
ela...; mas, de súbito, lembrei-me do conde, o meu melhor amigo.
Pobre Carlos! Àquela hora, jogava
talvez no Grêmio, com os seus íntimos, e perdia. Belo rapaz! Tínhamos sido
condiscípulos no colégio, ele era casmurro nos seus significados de latim, levava puxões
de orelhas.
De uma vez, lembrava-me, havíamos
jogado a tapona; ele tivera um galo na testa,
feito com um compêndio de
lógica, a que nunca
pudera chegar. E tínhamos
ficado mal, indiferentes, todo o ano. E via-o magro e bonito na sua blusa de riscado cheia de tinta de escrever,
um molho de chaves de baús, na algibeira,
tilitando.
Às onze horas ia ao Clube falar
em política, altivo na sua opinião respeitada, entre conselheiros graves de calva e suíças claras. À meia-noite,
Fatime, o vampiro,
esperá-lo-ia num cupé, a S.
Roque, para irem ao Restaurant Club cear, e
fazer depois a digestão entre beijos e champanhe
até de madrugada, hora em que a bailarina costumava receber um
trintanário loiro, trescalando a cavalariça.
E reatando a palestra, para dizer
alguma coisa, perguntei:
—
E a condessa, quantas primaveras? — Olhava
de soslaio o seu largo colarinho
azul e vinham-me suspiros evaporados de uma grande indolência.
—
Dezoito — respondeu — mas estou velha, sabe?
—
Uma aurora! — disse eu com a petulância de quem lapidou uma frase com o meu tom de mais efeito, de que usava nos
grandes momentos. O meu olhar caía sobre ela, como uma
má sina. Na penumbra,
brancuras de seios empalideciam. E continuando:
—
Quem tem dezoito anos é sempre feliz,
inocente; aos dezoito anos a vida é uma bênção, um aroma, uma pérola.. — E
queria ser eloquente, mas estendia-me, fazia
má figura. Ela
ria com os seus dentinhos brancos, que recortavam
de alvuras gulosas o escarlate lascivo da sua boca úmida.
E grave, passado tempo.
—
Sabe, Armando, que essa
sua prosa, sujeita
a rimas, dava
belos hendecassílabos?
Fiquei todo corrido, uma
larga desconsolação espasmódica, as fontes aos baques.
—
Oh! condessinha, é cruel. — E sentia-me corar como um cábula.
—
Olhe, quer que sejamos francos? A minha vida é bem triste. O conde é um rapaz adorável. Vestidos, quantos apeteço.
Manda vir joias de Paris. Não me recusa
coisa alguma. Eu não queria tanto sim, vê! Porque isto mostra-me que ele me esqueceu cedo, que se não preocupa
dos meus caprichos, entende? Que me
deixa ir assim, os deus-dará.
E juro, Armando, eu não
lhe merecia isto.
Chispavam centelhas do meu olhar
na ampla dobra azul do colarinho. A sua túnica
branca, imensa, apertada na cintura sem esforço, quebrava-se toda em dobras à roda, aos seus movimentos rápidos. E
contra a luz os seus cabelos crespos,
cortados em borla na cara, lembravam fios de ouro sem liga. A sua voz tinha uma
resignação penitente,
afogada numa tristeza
passiva e sem resolução.
Comentei:
—
Oh! é injusta. Não é isso que o conde me confessa todos os dias.
O lábio teve um escárnio cheio de
meigas censuras.
—
Realmente? Olhe cá. E ele diz então que me ama? Entendo. Armando, pensa que o amor que ele lhe narra é
consagrado à sua mulher? Porque, diga, Carlos
nunca pronunciou o meu nome durante essas expansões. Seja franco, vamos. Mas diga então.
—
Decerto que pronuncia, condessa: é bem claro, é lógico.
—
Ergueu-se vivamente, a mão crispara-se-lhe.
—
Mente, Armando, mente! Perdoe-me a injúria, mas falta à verdade. Ele ama apenas estas coisas, ouça — e contava
pelos dedos: — o seu cavalo árabe, o
jogo de fundos e.. digo?
Ria-se nervosa, desafiando.
—
Condessa!
—
Fatime. A dançarina judia.
Exaltava-se.
—
Armando, olhe bem para mim. Ousa enganar-me, então? — E rápida, sufocada, risonha: — Hoje à meia-noite, eles
ceiam ambos. Quer saber onde?
—
Mas...
—
É desleal, ocultando-me a verdade, repare.
—
Como soube...
—
Comprei os criados. Pode ir dizer ao meu marido. Quando se é trocada por uma
bailarina, fica-nos o direito de chegarmos até onde nos aprouver.
Não lhe parece?
E atravessava-me com o
olhar. O
seio batia. Fugitivamente, os
meus olhos iam casar-se na
cor do
seu colarinho. Curvei a
cabeça sem responder. A condessinha insistiu com doçura, quase em segredo:
—
Não acha?
Fechei os olhos sem dar palavra.
Sentia-me perturbado. Onde ia ela chegar? E depois lentamente, respondendo à sua pergunta,
os meus lábios disseram não, mas todo eu
afirmei que sim.
Podem clamar quanto
quiserem, mas a condessinha desejava-me, queria-me, ela, a esposa do meu melhor amigo, e a minha
fragilidade sentia-se atraída para ela, como
uma asa de
pena para um
íman, sem remédio, sem consciência e sem
destino. Para que nos
deixava o conde todas as
noites sós? Para
que a desgostava a ela, pobre criança inocente e
caprichosa?
Havia uma semana que eu andava
perturbado diante de Beatrice. Notara que os seus colarinhos de serão eram cada vez mais
largos, e que o seu seio, de um mármore fatal, em que destacaria bem o sangue
de uma punhalada, arfava impetuoso, se próximo de mim. As minhas noites
entraram a ser riscadas com a fosforescência daquele desejo, como um profundo mar entenebrecido e sombrio. Os seus olhos fixos e húmidos de
ânsia, grandes como dois mundos, estavam
sempre diante da minha vista. E o pior não era isso.
Mas aquele diabo do colarinho...
—
Armando — disse ela
—, bem sabe como eu sou
supersticiosa. Vai acontecer desgraça por certo. Olhe. Ontem, uma
borboleta negra entrou-me no boudoir,
enquanto tomava o meu banho tépido. Tudo estava fechado, as cortinas e
as vidraças unidas, os
estores pendentes. De modo
que da rua, aquela
fatal mensageira não veio, com certeza.
Digo-lhe eu, Armando,
vai suceder desgraça. Não dormi
esta noite, pensando horrores. O conde veio tão tarde!
E baixinho, só para eu ouvir:
—
E sabe, trazia no fato uma aroma que não era o dos seus sachets. Eram os beijos de Fatime. Escusa de olhar para mim,
Armando. Não tenho ciúmes nenhuns. Ainda
há poucas noites, na
valsa do Roberto, eu atirei
flores à bailarina. Porque é uma
artista. E que beleza!
E lenta:
—
Não tenho ciúmes, não. Pobre conde! faz o que pode. Todos fazem o mesmo. Fosse eu homem, to contaria...
E feito um silêncio curto, os
olhos baixos:
—
A minha vingança é outra!
E lentamente, deixando cair as
palavras:
—
Pena... de.. Talião... Apre!
Ouvia-se o tiquetaque da pêndula.
Eu erguera-me, a tremer, sem uma palavra, sem uma
ideia, sem uma resolução.
Estávamos quase às escuras
e, mesmo assim,
eu via o seu colarinho decotado e a
cintilação cáustica dos brincos. Acendi sobre o fogão duas serpentinas de
bronze.
A condessinha, imóvel, de pé
na sua palidez
fascinante, o penteado desmanchado,
tinha um sorriso vago;
e, vendo a
impressão que as suas palavras
violentas me causavam, disse:
—
Se o ofendessem, Armando, vingar-se-ia.
Eu ia protestar; ela juntou logo:
—
Sou filha dos marqueses de Penha Longa; dez vezes mais orgulhosa por isso, que qualquer outra.
—
Orgulho fatal! — exclamei eu.
—
Quero a desforra! Estou cansada de humilhações.
Eu avancei e disse com força:
—
Seria indigno!
Beatrice ressentiu-se, os olhos
encheram-se-lhe de grandes lágrimas sublimes. Balbuciou:
—
Armando!
Tornei asperamente:
—
Seria cobarde!
E, aproximando-me com voz curta,
rápida e vibrante, como a de um vingador colérico:
—
É loucura ou crime? Hem?
Caiu aniquilada no fauteuil,
terrivelmente pálida, os lábios trémulos, dizendo impercetível:
—
Oh Armando, Armando!. . — Fui ampará-la. O meu Deus! O peso do seu corpo enlouqueci^-me; eu amava-a, eu
queria-a! Atirei-me chorando aos seus
pés. Ah! que infame, que infame eu era!
O
relógio deu meia-noite.
Àquela hora, o conde
ceava com Fatime, num gabinete
cor-de-rosa, do Restaurant Club. Bebiam talvez o seu champanhe; o conde
teria ditos de uma
mordacidade equívoca; a judia, gargalhadas sonoramente soltas. Ressoaria
um beijo.. Nós
ambos, a condessinha
e eu, sentados no mesmo fauteuil, ceávamos alguma coisa
excitante e bebíamos pelo mesmo copo, aos golinhos.
Beijos quentes, prolongados e
devoradores, uniam os nossos lábios impuros. De sobre o fogão, o
retrato de Carlos olhava, sorrindo,
o grupo. E um perfume misterioso
flutuava.
Beatrice lembrou-se de repente:
—
E o conde?
—
Ora! Tenha juízo. Também, para que foi cear com Fatime? — E rindo: —
Compraste então os criados;
peça bem pregada! Nada
de dar cavaco, percebes, nada de dar cavaco... Chute!
—
Amo-te tanto, tanto!
Aborreço o conde pela
tua causa. Quando ele apresentou aqui os seus amigos, lembras-te? Trazias
as tuas polainas de caça, um knickerbockers de Pool, numa bonita e
fresca manhã. Iam caçar. Eu fiquei à
janela, em roupão, os cabelos despregados.
Bebia devagar, e ao cabo:
—
Ah! Esta liberdade
inebria-me, meu Deus; não pode
ser um crime. Amar um homem que se viu depois de casada!.
. — E muito baixo, frenética: — Os
teus cabelos, a tua
boca tão fresca,
a tua pele
tão fina! Deixa-me morder, uma
dentadinha pequena, para não
fazer sangue. — Eu deitava champanhe.
— Mas perturbas-me, convulsionas-me, Armando!
Um beijo: cala-te, meu Deus! É
preciso que me sintas: queria morrer contigo, no mesmo instante,
dormir no mesmo caixão,
num cemitério de grandes árvores
e sombras. Endoideço, enlouqueces-me!
E com os seus braços de
escultura, fortes, cinzelados e quentes, enlaçava-me o pescoço, um rubor febril na face, os olhos
afogados num langor amorável. E dizia-me
terna, ternissimamente, como
só as mulheres dizem
na noite de núpcias:
—
Tenho tanto peso na cabeça, Armando! Um sono tão grande!...
E toda ela vergava, pesando sobre
mim, a cabeça descaída no meu ombro.
—
Vês como sou tão humilde, tão tua, nem eu sei... uma escrava.
Abandonava-se, suspirando. Os
meus beijos desciam pouco a pouco pelo seu pescoço, em direção ao seu colo.
Repetia:
—
Uma escrava!...
—
Mas há pouco, louquinha, dizias-me tu
tão altiva. Sou filha dos marqueses de Penha Longa, dez vezes mais
orgulhosa por isso, que qualquer outra
mulher. E agora? Incoerente...
E torcia-lhe o labiozinho amuado,
cor-de-rosa.
Ela bebia. E fazendo estalar a
língua:
—
Ah! Não repares no que eu disse. Nós
falamos sempre em orgulho e antepassados, quando não temos que dizer outra
coisa. O papá era assim: nós aprendemos.
—
Oh condessa! — disse eu espantado.
—
Ora! De mais o sabes tu. Dá-me champanhe!
—
Olha. — E um beijo, outro, outro...
O conde ceava com Fatime,
provavelmente.
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
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