domingo, 25 de agosto de 2013

Fialho de Almeida: "A Desforra de Baccarat"

A DESFORRA DE BACCARAT

O conde não acompanhou a sua esposa nessa noite.

Era quinta-feira.

O  Inverno rigoroso,  céus continuamente emburelados  em forros plúmbeos, chuvas eternas que não davam guarida,  lama pelas ruas,  bocejos pelos  gabinetes,  aspetos  constipados, a  bronquite tripudiando a  sua  impunidade  pelos  narizes  das famílias,  em S. Carlos  a  Varezi trilando divinamente,  com  aquele  sorriso  que parecia uma  esperança  e que  se tornou,  desde que ela  partiu, num desespero. No Grêmio  Alberto de Selvas esperava o conde; além  disso,  apostara  no  Clube a  queda do ministério;  e,  por fim,  ele  não queria  dizer, mas Fatime esperava-o, queria cear com ele, a Fatime do corpo de baile,  uma  loira  picante,  de  carnes  friamente  impuras,  cujo  olhar,  de  um  pardo  inerte, possuía nos acessos de cólera fulgurações de adorável maldade. Razões  que impuseram resistência às súplicas da condessinha e diante de cuja teimosia  ela  fez beicinho, com  uma  expressão  de candura  inimitável.  De  modo  que,  mal  Charmille,  o velho criado grave,  serviu  o café  no pavilhão chinês,  e o  conde bebeu o seu velho conhaque digestivo, pediu o prussiano, acendeu um  carvajal pequenino, de um aroma penetrante, e, beijando a condessa, partiu.  

No pátio ouvimo-lo cantarolar as coplas dos Sinos, e as suas botas rangeram  no xadrez do átrio. Depois o cupé rodou e ficamos sós. A tarde caía, e sobre o  terraço, para onde rasgavam as janelas do gabinete de trabalho, um raio de sol,  peneirado através das moitas de trepadeiras,  tinha  uma  luz  harmônica,  inefável, discreta, em que se sonhava o idílio, de uma pureza arcangélica, nas  regiões fantásticas  do incomensurável,  sobre o dorso  de cometas  desgrenhados. Uma arara monótona chalreava, suspensa por um só pé a um suporte metálico, patenteando no arrojo das penas, de brilhos ardentemente  metálicos,  matizes inconcebíveis,  divinos  cambiantes de um  mordente  estranho,  tons apaixonadamente fulvos,  em todas  as gradações  do espectro,  com saturações  vivas  de escarlate e violências de verde, de um cáustico  exaltado.  A  condessa fechou  o livro e  olhou para  mim. Era uma criança  anêmica,  fina beleza  aristocrática, crescida  como  uma  avenca  australiana  no  mole ambiente, impregnado de essências, dos budoirs, dos salões e das largas  galerias claras, em que antepassados graves olham dos seus quadros poentos,  ridículos ou funéreos nos seus vestuários de todas as idades.

O seu tipo bourbônico, palidamente senhoril, tinha um cunho real que feria e,  sentindo-a respirar e sorrir, todo o mundo se abalava por ela numa simpatia  entusiasta, num vasto amor infinito e terrível como a morte. Umas religiosas  irlandesas  tinham-na  educado lio  Bom  Sucesso;  por  toda a  parte grades, a  austeridade da clausura, frias pedagogas embiocadas em negro, o sino batendo  as suas pancadas cortantes, as preguiças de levantar cedo, as tristes harmonias  que lhe  ensinavam nas harpas douradas,  e em que pareciam soluçar  tormentosas legendas  de amores  místicos,  e rolarem pelas escadarias dos  cadafalsos vermelhas cabeças palpitantes.

Saiu de  lá falando  menos mal as  línguas,  bordando  jardins  suspensos  em  almofadas de aparato, com um vício, o piano, e um vácuo diante da sua alma  — a vida em que ia entrar. A sua mãe, uma rainha de bailes, lia romances dias  inteiros,  ein  chambre,  deitada  num divã  opulento,  o cabelo por cima  das  mesas, perfumes caros na epiderme e meias de seda esticadas acima do joelho.  

E ela afez-se também às leituras.

Belot, que uma amiga lhe emprestara, pôs em vibração na sua alma uma corda  misteriosa, e pela primeira vez na sua vida de virgem se abrasou em ímpetos.  E o seu sangue impetuoso teve alucinações  candentes,  em que passavam  homens  brancos, virginais, atléticos, nus  e vívidos, que lhe  estendiam os  braços.

Desceu com o visconde Ponson,  com o celerado Capendu e com o patife  Zaccone aos pavores dos subterrâneos em que se despenhavam protagonistas  heroicos;  quis sofrer com eles  as inclemências dos  cárceres e as  agonias da  tortura, escamugindo-se quando pôde pelas saídas misteriosas em que molas  ocultas fazem girar portões de rochedos; subiu as escadas de corda, mascarada  de veludo negro,  com um  frasquinho de  sais no bolso e um  punhal  nos  dentes;  penetrou  conclaves lôbregos em que conspiradores  avançam  solenemente para  fazer frases,  e se pronunciam juramentos  terríveis com as  espadas nuas sobre braseiros consagrados, à luz de tochas de cera amarela. E romanticamente decorou frases pomposas das heroínas, teve atitudes teatrais  de uma  exibição ridícula,  esgares e lirismos.  Pintava  de bistre  olheiras  sentimentais e, sobre os ombros seminus em gaze vaporosa, deixou revolutear  os cabelos turbulentos, secos, crespos, em tons hilariantes.  

Mas uma tarde parou uma carruagem à porta.

Um rapaz que ela vira em S. Carlos, de luneta de oiro, na Havanesa puxando  punhos de aparato, nos chás do ministro da Alemanha declamando teorias, no  Parlamento  pedindo  caminhos-de-ferro  em nome do progresso e da  civilização, entrou com um velho.

Vinham pedi-la em casamento.  

O  pai de  Beatrice  fazia  política,  pedia  também caminhos-de-ferro  e moralidade nas províncias da  pública  administração,  mal sabia o  nome dos  filhos e só ao jantar estava com a família, não obstante lamentar a decadência   da sociedade portuguesa, nos artigos de fundo.  

A mãe, por causa dela, não podia instalar comodamente os amantes, tinha por  isso birras, rogava pragas em voz alta. Vida do diabo. Raio de filhos!  

Um dos apaixonados, o cônego D. Venâncio, queixara-se até às criadas, que  aquilo não podia continuar assim, que nem uma pessoa era senhor de levar a  sua capa de trazer e os seus solidéus de retrós preto, com uma borlazinha na  nuca.

De modo que o casamento fez-se.  

O Ilustrado falou com boas orações incidentes explicativas e adjetivos novos,  da  festa,  dos convidados,  «a  fina  flor», das toilettes,  tudo,  de  aprimorado  gosto, publicava com pompa.

E havia  dois  anos  que Beatrice  era  condessa,  a  condessinha,  e que eu,  o  melhor amigo do conde, assistia às suas matinées e às suas desilusões.  

Na boca pequenina dela, vermelhamente lasciva, uma contração irônica dizia  as suas impaciências, os seus arrebatamentos, as suas flutuantes predileções, os  seus langores e os seus desdéns.  Amava  os vestidos  decotados  e os  largos  colarinhos de cretone azul, que permitem a viagem mística do olhar artista ou  sacrílego, até à promessa, aos esplendores de um seio.

O meu olhar, casualmente, inocentemente — dou a minha palavra de honra  —  como uma  ave ferida,  foi de manso e pouco  a  pouco,  como quem quer  reter o voo e  não  tem forças,  cair  também nesse abismo  de alabastro e,  ao  reparar atônito no sacrilégio, viu a condessinha sorrir, um risinho lancinante  que dizia:

— Então... que é lá isso, também...  

A carne é frágil. Frágil e petulante.

Naquele momento quisera ter cegado. Depois — não vão dizer nada — senti  pena de não ter olhado melhor. Mas era shocking!

Lançava as culpas para a condessinha; para que punha aqueles colarinhos? E,  olhando-me aos espelhos das paredes,  via-me chamejante,  em tons  apopléticos de lagosta, o frisson das grandes culpas pela espinha dorsal.  

Assim chegou aquela tarde.  

Beatrice continuava abandonada no fauteuil, a sorrir.  

E o maldito colarinho aberto, o sicário, aberto, aberto!...  

A tarde esmaecia nos longes, sobre o mar, e no silêncio a noite condensava  escuridades no ar com um metodismo severo, imperturbável, gradual.  

O relógio feriu cinco horas.  

Por uma  janela  aberta  o rumor  da  cidade entrava;  carruagens sentiam-se ao  longe e, no vasto negro, pontinhos de gás bordavam evoluções caprichosas,  marcando  as curvas das ruas,  o afunilamento  dos becos,  as  dilatações das  praças lamacentas.

Não pedimos luz.  

Eu fumava  na  causeusse.  A condessinha,  distraída  agora,  absorta  e com o  olhar perdido nos relevos do teto, abandonava-se; e na penumbra das coisas o  seu busto adquiria linhas ideais de visão benigna, a morbideza cálida de certas  organizações doentias.

Ergueu a voz:  

—  Meu marido...

—  Para  que diabo vem  agora  o marido?  —  pensei  frenético,  com um  embate audaz no cérebro.

—  Meu marido diz-me sempre ter em si, Armando, o seu melhor amigo.  

— Curvei-me.  

—  É uma honra.

—  Cale-se, é apenas gratidão. O conde é sincero. E mudando de tom:  

—  Armando, que idade tem?

—  Vinte, condessa, bem monótonos na verdade.  

—  Vinte anos! — E a sua voz, de uma inflexão musical, era suave como  uma carícia.

Eu sentia-me todo levado para ela...; mas, de súbito, lembrei-me do conde, o  meu melhor amigo.  

Pobre Carlos! Àquela hora, jogava talvez no Grêmio, com os seus íntimos, e  perdia. Belo rapaz! Tínhamos sido condiscípulos no colégio, ele era casmurro  nos seus significados de latim, levava puxões de orelhas.

De uma vez, lembrava-me, havíamos jogado a tapona; ele tivera um galo na  testa, feito com  um  compêndio de  lógica,  a  que nunca  pudera  chegar.  E  tínhamos ficado mal, indiferentes, todo o ano. E via-o magro e bonito na sua  blusa de riscado cheia de tinta de escrever, um molho de chaves de baús, na  algibeira, tilitando.

Às onze horas ia ao Clube falar em política, altivo na sua opinião respeitada,  entre conselheiros graves de calva  e suíças claras.  À meia-noite,  Fatime,  o  vampiro,  esperá-lo-ia  num cupé,  a  S. Roque,  para  irem ao Restaurant Club  cear,  e fazer depois  a  digestão entre beijos  e champanhe  até de  madrugada,  hora em que a bailarina costumava receber um trintanário loiro, trescalando a  cavalariça.

E reatando a palestra, para dizer alguma coisa, perguntei:  

—  E  a  condessa, quantas primaveras? —  Olhava  de soslaio o seu largo  colarinho azul e vinham-me suspiros evaporados de uma grande indolência.  

—  Dezoito — respondeu — mas estou velha, sabe?  

—  Uma aurora! — disse eu com a petulância de quem lapidou uma frase  com o meu tom de mais efeito, de que usava nos grandes momentos. O meu  olhar caía  sobre ela, como  uma  má  sina.  Na penumbra,  brancuras  de seios  empalideciam. E continuando:

—  Quem tem dezoito anos é sempre feliz,  inocente;  aos dezoito anos a  vida é uma bênção, um aroma, uma pérola.. — E queria ser eloquente, mas  estendia-me,  fazia  má  figura.  Ela  ria  com os  seus dentinhos brancos,  que  recortavam de alvuras gulosas o escarlate lascivo da sua boca úmida.

E grave, passado tempo.

—  Sabe,  Armando,  que essa  sua  prosa,  sujeita  a  rimas,  dava  belos  hendecassílabos?

Fiquei todo corrido,  uma  larga  desconsolação  espasmódica, as fontes  aos  baques.

—  Oh! condessinha, é cruel. — E sentia-me corar como um cábula.  

—  Olhe, quer que sejamos francos? A minha vida é bem triste. O conde é  um rapaz adorável. Vestidos, quantos apeteço. Manda vir joias de Paris. Não  me recusa coisa alguma. Eu não queria tanto sim, vê! Porque isto mostra-me  que ele me esqueceu cedo, que se não preocupa dos meus caprichos, entende?  Que me deixa  ir assim, os  deus-dará.  E juro,  Armando,  eu não  lhe merecia  isto.

Chispavam centelhas do meu olhar na ampla dobra azul do colarinho. A sua  túnica branca, imensa, apertada na cintura sem esforço, quebrava-se toda em  dobras à roda, aos seus movimentos rápidos. E contra a luz os seus cabelos  crespos, cortados em borla na cara, lembravam fios de ouro sem liga. A sua  voz tinha uma  resignação penitente,  afogada  numa  tristeza  passiva  e sem  resolução.

Comentei:

—  Oh! é injusta. Não é isso que o conde me confessa todos os dias.  

O lábio teve um escárnio cheio de meigas censuras.  

—  Realmente? Olhe cá. E ele diz então que me ama? Entendo. Armando,  pensa que o amor que ele lhe narra é consagrado à sua mulher? Porque, diga,  Carlos nunca pronunciou o meu nome durante essas expansões. Seja franco,  vamos. Mas diga então.

—  Decerto que pronuncia, condessa: é bem claro, é lógico.  

—  Ergueu-se vivamente, a mão crispara-se-lhe.  

—  Mente, Armando, mente! Perdoe-me a injúria, mas falta à verdade. Ele  ama apenas estas coisas, ouça — e contava pelos dedos: — o seu cavalo árabe,  o jogo de fundos e..  digo?

Ria-se nervosa, desafiando.  

—  Condessa!  

—  Fatime. A dançarina judia.  

Exaltava-se.  

 —  Oh! ilude-se, juro que se ilude. O conde está no Grêmio.

—  Armando, olhe bem para mim. Ousa enganar-me, então? — E rápida,  sufocada, risonha: — Hoje à meia-noite, eles ceiam ambos. Quer saber onde?

—  Mas...

—  É desleal, ocultando-me a verdade, repare.  

—  Como soube...

—  Comprei os criados. Pode ir dizer ao meu marido. Quando se é trocada  por uma  bailarina, fica-nos o direito de chegarmos até onde nos aprouver.  

Não lhe parece?  

E atravessava-me com o olhar.  O  seio  batia.  Fugitivamente,  os  meus olhos  iam casar-se na cor  do  seu  colarinho.  Curvei a  cabeça sem responder.  A  condessinha insistiu com doçura, quase em segredo:  

—  Não acha?  

Fechei os olhos sem dar palavra. Sentia-me perturbado. Onde ia ela chegar? E  depois lentamente, respondendo à sua pergunta, os meus lábios disseram não,  mas todo eu afirmei que sim.

Podem clamar  quanto  quiserem,  mas a  condessinha desejava-me,  queria-me,  ela, a esposa do meu melhor amigo, e a minha fragilidade sentia-se atraída para  ela,  como  uma  asa  de  pena  para  um  íman,  sem remédio,  sem consciência  e  sem destino.  Para  que nos  deixava  o conde todas as noites  sós?  Para  que  a  desgostava a ela, pobre criança inocente e caprichosa?

Havia uma semana que eu andava perturbado diante de Beatrice. Notara que  os seus colarinhos de serão eram cada vez mais largos, e que o seu seio, de um  mármore fatal,  em que destacaria  bem o sangue  de uma  punhalada,  arfava  impetuoso, se próximo de mim. As minhas noites entraram a ser riscadas com  a  fosforescência  daquele desejo,  como um profundo mar entenebrecido e  sombrio. Os seus olhos fixos e húmidos de ânsia, grandes como dois mundos,  estavam sempre diante da minha vista. E o pior não era isso.  

Mas aquele diabo do colarinho...  

—  Armando —  disse  ela  —,  bem sabe como eu sou supersticiosa.  Vai  acontecer desgraça por certo. Olhe. Ontem, uma borboleta negra entrou-me  no boudoir, enquanto tomava o meu banho tépido. Tudo estava fechado, as  cortinas e  as vidraças  unidas,  os  estores pendentes.  De  modo  que da  rua,  aquela  fatal mensageira  não veio,  com certeza.  Digo-lhe  eu,  Armando,  vai  suceder desgraça. Não dormi esta noite, pensando horrores. O conde veio tão  tarde!

E baixinho, só para eu ouvir:  

—  E sabe, trazia no fato uma aroma que não era o dos seus sachets. Eram  os beijos de Fatime. Escusa de olhar para mim, Armando. Não tenho ciúmes  nenhuns.  Ainda  há  poucas noites,  na  valsa  do Roberto,  eu atirei  flores à  bailarina. Porque é uma artista. E que beleza!

E lenta:

—  Não tenho ciúmes, não. Pobre conde! faz o que pode. Todos fazem o  mesmo. Fosse eu homem, to contaria...

E feito um silêncio curto, os olhos baixos:  

—  A minha vingança é outra!  

E lentamente, deixando cair as palavras:  

—  Pena... de..  Talião... Apre!  

Ouvia-se o tiquetaque da pêndula. Eu erguera-me, a tremer, sem uma palavra,  sem uma  ideia,  sem uma  resolução.  Estávamos quase  às escuras e,  mesmo  assim,  eu via  o seu colarinho  decotado e a  cintilação cáustica  dos brincos.  Acendi sobre o fogão duas serpentinas de bronze.

A condessinha,  imóvel,  de pé  na  sua  palidez  fascinante,  o penteado  desmanchado,  tinha  um  sorriso vago;  e,  vendo  a  impressão que as suas  palavras violentas me causavam, disse:  

—  Se o ofendessem, Armando, vingar-se-ia.  

Eu ia protestar; ela juntou logo:  

—  Sou filha dos marqueses de Penha Longa; dez vezes mais orgulhosa por  isso, que qualquer outra.

—  Orgulho fatal! — exclamei eu.  

—  Quero a desforra! Estou cansada de humilhações.  

Eu avancei e disse com força:  

—  Seria indigno!  

Beatrice ressentiu-se, os olhos encheram-se-lhe de grandes lágrimas sublimes.  Balbuciou:

—  Armando!

Tornei asperamente:

—  Seria cobarde!

E, aproximando-me com voz curta, rápida e vibrante, como a de um vingador  colérico:

—  É loucura ou crime? Hem?  

Caiu aniquilada no fauteuil, terrivelmente pálida, os lábios trémulos, dizendo  impercetível:

—  Oh Armando, Armando!. . — Fui ampará-la. O meu Deus! O peso do  seu corpo enlouqueci^-me; eu amava-a, eu queria-a! Atirei-me chorando aos  seus pés. Ah! que infame, que infame eu era!

O  relógio deu meia-noite.  Àquela  hora,  o conde  ceava  com Fatime,  num  gabinete cor-de-rosa, do Restaurant Club. Bebiam talvez o seu champanhe; o  conde  teria ditos de uma  mordacidade  equívoca;  a  judia,  gargalhadas  sonoramente soltas.  Ressoaria  um  beijo..   Nós  ambos,  a  condessinha  e eu,  sentados  no mesmo fauteuil,  ceávamos alguma  coisa  excitante  e bebíamos  pelo mesmo copo, aos golinhos.

Beijos quentes, prolongados e devoradores, uniam os nossos lábios impuros.  De sobre o fogão,  o  retrato de Carlos  olhava,  sorrindo,  o grupo. E um  perfume misterioso flutuava.

Beatrice lembrou-se de repente:  

—  E o conde?  

—  Ora! Tenha juízo. Também, para que foi cear com Fatime? — E rindo:  —  Compraste então  os  criados;  peça  bem pregada!  Nada  de  dar cavaco,  percebes, nada de dar cavaco... Chute!

—  Amo-te  tanto,  tanto!  Aborreço  o conde  pela  tua  causa. Quando ele  apresentou aqui os seus amigos, lembras-te? Trazias as tuas polainas de caça,  um knickerbockers de Pool, numa bonita e fresca manhã. Iam caçar. Eu fiquei  à janela, em roupão, os cabelos despregados.

Bebia devagar, e ao cabo:  

—  Ah!  Esta  liberdade  inebria-me,  meu Deus;  não pode  ser um  crime.  Amar um homem que se viu depois de casada!. .  — E muito baixo, frenética:  —  Os teus cabelos,  a  tua  boca  tão  fresca,  a  tua  pele  tão fina!  Deixa-me  morder, uma  dentadinha pequena, para  não fazer sangue.  —  Eu deitava  champanhe.  —  Mas perturbas-me,  convulsionas-me,  Armando!  Um beijo:  cala-te, meu Deus! É preciso que me sintas: queria morrer contigo, no mesmo  instante,  dormir no  mesmo  caixão,  num cemitério  de grandes  árvores  e  sombras. Endoideço, enlouqueces-me!

E com os seus braços de escultura, fortes, cinzelados e quentes, enlaçava-me o  pescoço, um rubor febril na face, os olhos afogados num langor amorável. E  dizia-me terna,  ternissimamente,  como  só  as mulheres  dizem  na noite  de  núpcias:

—  Tenho tanto peso na cabeça, Armando! Um sono tão grande!...

E toda ela vergava, pesando sobre mim, a cabeça descaída no meu ombro.  

—  Vês como sou tão humilde, tão tua, nem eu sei... uma escrava.

Abandonava-se, suspirando. Os meus beijos desciam pouco a pouco pelo seu  pescoço, em direção ao seu colo.

Repetia:

—  Uma escrava!...

—  Mas há pouco,  louquinha,  dizias-me tu  tão  altiva.  Sou filha dos  marqueses de Penha Longa, dez vezes mais orgulhosa por isso, que qualquer  outra mulher. E agora? Incoerente...

E torcia-lhe o labiozinho amuado, cor-de-rosa.  

Ela bebia. E fazendo estalar a língua:  

—  Ah!  Não repares  no que eu disse.  Nós  falamos sempre em orgulho e   antepassados, quando não temos que dizer outra coisa. O papá era assim: nós  aprendemos.

—  Oh condessa! — disse eu espantado.  

—  Ora! De mais o sabes tu. Dá-me champanhe!  

—  Olha. — E um beijo, outro, outro...  

O conde ceava com Fatime, provavelmente.  

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Fialho de Almeida - Contos (1881)

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