O FUNÂMBULO DE MÁRMORE
A contessina sentiu-se triste
nessa manhã, aborrecida da quietação lânguida do seu boudoir,
da falsa pompa
de vegetação dos seus salões-estufas, da
vida contemplativa dos
aquários de cristal-rocha, da
atmosfera perfumada dos
salões e das alcovas, onde o oxigênio
vivificante se corrompe,
por entre a subtileza das exalações de opopanax e verveine, contidas nos frascos boêmios, todos facetados e cintilantes. Mandou pôr
o cupé, um pequenino cupé estofado de carmesim, grandes fivelões de
madrepérola floreteados; escolheu um
vestido claro, de um
estofo liso, grandes laços
vermelho e branco, apertado em
longa cuirasse, com uma
cauda aristocrática, que deixava
no ouvido um doce frou-frou inebriante.
E com um gorro de penas, de forma
excêntrica, uma tira de gaze a meio rosto, atada
na nuca, penteado
simples, em que destacavam contra a luz
uns pequeninos anéis
dos seus cabelos castanhos, sobre a
cara de castidade sonhada,
com uma camélia franca
no seio, a contessina saltou
para o carro. Era
sábado, nos dias lúcidos
de Maio. O cocheiro teve
ordem de seguir ao longo dos boulevards, atulhados de gente ativa que
tumultuava nos passeios, nos armazéns, nas casas de modas e nos ateliers,
vivamente, alegremente, raça de gigantes e de artistas que ia fecundando as
indústrias com o poder da sua violenta
atividade.
Na Bolsa, à porta,
junto do guarda-vento, viu o conde
de M., que argumentava
com o judeu W. sobre questões de fundos.
Mais adiante, cumprimentou a jovem C., que apartava num
livreiro as últimas publicações de
crítica e de estética. Parou no atelier de Carlo Bórgio, o pintor de quinze anos, que fizera ruído com um quadro
impressionista, repudiado pelo júri de uma
exposição artística em Roma. Encontrou lá a fina flor do mundo culto da cidade:
o médico F., a quem
um trabalho sobre doenças cardíacas abrira as portas
das mais célebres academias europeias; Henrique de R., o folhetinista mais delicado da Itália; Raimundo Conti, o
crítico por excelência, que ditava a lei
do bom gosto, com um bom senso admirável, e mil personagens célebres do grande mundo ilustrado e do grande mundo
elegante.
O pintor tinha olheiras — a contessina
reparou nisso —, não afastara o cabelo ainda e o
seu trajo de manhã, cheio de negligência, o seu
largo e branco colarinho
decotado, deixavam adivinhar pela curva
do seu pescoço forte e levemente
sanguíneo, cor-de-rosa claro,
um corpo escultural de atleta, vigoroso e saudável, criado à larga no puro ar
balsâmico dos campos, ante a vastidão contemplativa
do mar. Não havia no
atelier nenhum quadro novo. Apenas
sobre o cavalete, um cartão esboçado a traços.
Carlos fumava cachimbo; a
contessina achou-o por isso detestável,
e saiu sem lhe haver sorrido como
costumava. Sem ela reparar,
a camélia branca que levava esfolhou-se
ao sair, maculando
a alcatifa escura
do atelier com as pétalas imaculadas, brancura láctea, cheia de
pequeninos veios caprichosos, como as ruas
do mais intrincado labirinto.
Deixou-se cair outra vez nos
coxins do cupé, e mandou rodar para a
galeria Médicis, no extremo ocidental da
cidade.
Ia fatigada, nervosa e
indisposta. Quanto vira lhe apareceu vulgar e indigno da sua
atenção. Mirou no espelho que ficava em frente,
atrás da tábua do cocheiro, a
sua flexível figura,
magra e branca, o seu rostinho fresco, o seu belo
perfil rafaelesco, de uma finura,
de um contorno
verdadeiramente singulares pela
sua pureza, pelo se conjunto, a um tempo audaz e tímido. Uma ruga
impercetível se avincava
verticalmente na sua testa.
E impacientou-se, achou que
estava feia, trigueira, mal vestida. Então inclinou a cabeça para trás, sobre os
coxins, deixou pender o corpo
também, com um abandono,
uma morbidezza tentadora,
estendeu-se quase no
cupé, indolentemente, sem vontade, sem palpitação e sem coragem, com desejos
de se espreguiçar, de sonhar
coisas extraordinárias e fantásticas, de correr aventuras sobre o mar, num cutter ligeiro, pintado de branco, com jovens
marinheiros escoceses, loiros e atléticos,
de uma candura
virginal, que cantassem as árias das
montanhas, baladas suaves e frias, onde
a manhã rompe e os galos cantam, e se ouve bater horas o sino do castelo em ruínas,
ao descer da velha ponte levadiça, quando o couraceiro fantasma recolhe de lança ensanguentada, no meio
dos coros das vítimas.
E sob o domínio da sua
áurea fantasia cerrou os
olhos e começou a viver naquele devaneio que interiormente
ia bosquejando. O cupé
parou enfim, desceu lesta no átrio de
mosaico e penetrou nos salões abertos à curiosidade dos amadores.
Sobre os cavaletes, sobre
degraus e pelas paredes,
patenteavam-se os capid'opera dos
grandes mestres da Renascença, do Perugino, de senza error, de Fra
Angélico, de Sanzio, do Buonarroti, do Ticiano,
do Tintoreto, de Dominiquino,
de Júlio Romano, dos Carraches,
de Montagna e todos os primores das escolas alemãs e flamengas: cenas
de interior, trechos de ménage e
cervejaria, as paisagens realistas dos Holandeses, de céus úmidos e flocos de nevoeiro, onde o verde alcança todas as
gradações vegetais, e o sol, como uma
brasa metida em óleo, se extingue vermelhamente, entre fumaradas que passam. Roçagando a sua
cauda elegante, a
contessina passava sem parar diante dessas soberbas telas, que resumiam todo
o ideal de mais de uma raça, demarcando as tendências
e aspirações, um pouco modificadas
havia muito, na
evolução social do último século.
A cada passo, lhe sorriam dentro de molduras de pau-rosa,
de prata, de sândalo, bronze ou talha, uma madona casta,
com o Bambino nos braços, um mártir amarelecido e chagoso, uma Vênus
concupiscente e nua, um
Cristo dolorosamente lívido, atado ao madeiro da
ignomínia, um guerreiro sob
a armadura cintilante das grandes idades heroicas. E movendo o seu leque de
frias plumagens, todo constelado de cintilações preciosas, com o binóculo de
ouro na pequenina mão calçada em peau de Sudde, o olhar distraído passeando sobre os aspetos
sem os distinguir nem os fixar,
a contessina perdia-se
entre os amadores oficiosos, entre os artistas obscuros de ambos os sexos,
que tiravam cópias, vestidos nas suas
túnicas talares de atelier,
o olhar atento e perscrutador
cravado nos modelos, com uma
concentração nervosa e extática. Não tinha já admiração para
queimar, como um
perfume enervante, ante tamanhos primores acumulados. Desde pequenina conhecia
aquelas magníficas pinturas, e escutara
as exclamações de uma admiração mais ou menos convicta, soltadas pelos entendidos ou pelos pedantes, ao longo
dos vastos salões esplendentes da galeria.
Mas a verdade é que os
modelos clássicos, as sacras-famílias do colorido éclatant,
sempre na mesma pose e composta das mesmas figuras, as cenas bíblicas repassadas de unção
convencional e misticismo fradesco, não iam direitas,
pela sua maneira
e pela sua ideia
simbólica, ao seu coração modernamente
educado de artista, à
sua ária expansiva
de meridional, tão cheia de amor pela verdade e tão penetrada da
sedução esquisita das pompas de uma
natureza luxuriante e escorrendo de cor, e dos característicos hábitos e índoles pitorescas de uma raça vigorosa, cheia
de culto, de forma e de ideal. A sua predileção
artística era alguma
coisa como o aroma
exalado por quanto contemplara em viagens,
estudara em bibliotecas, e sentira
em convivência, aroma que
rescendia em espiras balsâmicas e suavíssimas, numa palpitação de borboleta
irisada num hausto
de liberdade sublime, extraordinária
e sonora. Compreende-se que o seu temperamento lhe
exigisse uma arte que se pudesse admirar
sem profanação, e se pudesse amar sem remorso, que falasse às suas exigências e aos seus caprichos, sem incluir a
recordação dos velhos martírios, apoteoses entre serafins
e nuvens, mistérios idiotas
e teológicos, em que se contrariam,
por princípio de carolice, as leis mais lógicas e simples da ciência, da criação e da espécie.
E numa disposição rebelde,
fatigada das saturações da cor, das exuberâncias sistemáticas de musculatura,
das garridices da forma, da abundância de pinturas, voltou para
trás antes de chegar
ao fim, entrou no carro
cheia de spleen
e abatimento, e mandou rodar para casa.
Atirou o chapéu mal entrou no
boudoir; a camareira trouxe-lhe o roupão de linho de Manchéster com que costumava trabalhar;
e envolta no tecido de listas graves, a fresca figura de uma palidez
serena, foi tomar assento no seu atelier, diante
da estátua de
mármore branco, que começava a
sair ainda indecisamente da bruta massa
de pedra, ferida pelo seu
cinzel fantasista de uma
graça e de uma originalidade cativantes.
Havia tempos que trabalhava nessa
obra, e com que amor!..
A vida das outras mulheres
era-lhe irritante, apertada num pequeno cinto de conveniências e vulgaridades. Pouco conhecera
da família, não sabia admirar o que nas
mães se chama uma. missão heroica e,
nas mulheres em geral, os deveres próprios do sexo.
Tinha percorrido o mundo sozinha.
A quantos a amaram
nesse período, sorrira sempre. À sua natureza excêntrica apareciam deformados
em esgares ridículos os galãs modelos. Fatigava-se
depressa. Demais tinha um
intuito finíssimo de artista, altivo
de mais para aceitar lugares-comuns. Mas havia na sua vida este
episódio — uma noite, num circo de
Nápoles, vira fazendo equilíbrios num globo um rapaz vestido de meia, ágil e elegante. Nunca pôde esquecer aquela figura
que surgira pela primeira vez à sua
imaginação, como eflorescência rara, sonhada entre incoerências de febre.
Procurou depois, mais
perto, essa soberba
organização que fizera na sua sensibilidade
como um lampejo instantâneo, a
fascinação sombria e fatal do jettatore. Pouco a
pouco, a sua
mente apoderou-se daquela imagem fascinante,
correta como não vira outra,
juvenil como não sonhara igual. Todas as noites ia ao circo ver trabalhar o
equilibrista: dominava-a a soberba atitude
do funâmbulo, livre, impetuoso
e colossal. Nela sentia-se,
de fato, toda a opulência
de uma seiva
que irrompe, em circulação
vigorosa e regularíssima; todos aqueles
fortes membros elásticos, flexíveis e aptos aos movimentos
mais contrastantes, se sentiam palpitar de saúde, de vida
e de beleza, ritmo sonoro, cheio
de presteza e propriedade.
E aquela apetitosa figura de
adolescente trigueiro, os olhos esmaltados de uma serenidade
de deus, plástica irrepreensível
e firme, apoderaram-se da contessina,
com um ímpeto, uma
violência que tocavam os
paraxismos da loucura.
Começou então uma existência
noturna, roubada de alegrias,
cheia de sobressaltos,
terrores e prazeres. Zampa,
o funâmbulo, levava
os dias caído entre garrafas de conhaque e fumaças de charuto.
Além disso, tinha gordos pedidos de dinheiro, teimosias de
parasita e surdas raivas de vadio.
Era exigente como um
facchno e brutal como um
barqueiro: a devassidão exasperada
que busca viver
fora do tédio adquirido por longos
dias de desordem, e mediante fantasias realizadas à custa
de grandes despesas. Ela adorava-o; às vezes tinha medo.
Sentia-lha as mãos grosseiras, calejadas do trapézio, a voz
rouca, o hálito alcoolizado, um cheiro a charuto que se metia
pelas mucosas dentro. Gostava porém de o agarrar
pela cintura, de lhe pender do
pescoço nu com todo o peso do corpo, de se entregar com um grande
soluço dilacerante, vergada para trás, cabelos
soltos e a túnica
rasgada de alto a
baixo, com a folha
de um punhal. E era com uma delícia inexplicável,
aguda e cheia de frêmitos, que lhe tirava
a capa, quando Zampa chegava do circo, ainda com os fatos da arena, couraçado na sua beleza superior e intangível.
O espetáculo de um corpo
fortemente criado embriagava-a de uma aspiração criminosa
e de uma animalidade fatal: queria-o!
Algumas vezes Zampa não vinha
e as horas da noite deslizavam para a pobre leviana em suplícios atrozes e vacilações eternas. Então saía a procurá-lo,
só, envolta numa dessas mantas de cores
vivas, que Livorno produz, um punhal no cinto e pálida como uma esperança
pisada à beira
de um esquecimento. Já
podia entrar nos
lugares lôbregos onde tilinta o
dinheiro dos vícios cobardes, para arrancá-lo do jogo, embriagado e vil,
falando uma aravia brutal. Os
convivas faziam-lhe toasts, cobriam-na
de sarcasmos, prenhes de insolência de
bordel. Nestas lutas supremas,
parecia que a sua
paixão se avigorava; queria explicar
a si mesma porque
razão esse palhaço a dominava e a prendia, fazendo dela uma escrava; refletia
então insurgir-se contra
semelhante envilecimento, readquirir
a sua liberdade de
outrora, a sua
franca alegria de criança;
impossível! Quando tratava
de expulsar de si o ébrio, com desprezo
veemente e indignação explosiva, como se levantava diante dela a
esplêndida figura de arcanjo que era o
seu desejo, o seu gozo, o seu deslumbramento e a
sua perdição; e era sempre
o mesmo olhar plácido que ela contemplava, a mesma carne vigorosa, de uma
tonalidade opulenta, a
mesma linha soberba
do perfil, a mesma postura
de academia, altiva e forte, como a de um
gladiador que triunfa, na arena onde espadana o sangue dos mártires e se
espedaçam corpos frementes de vítimas
obscuras e trágicas. Em outros dias, à
força de súplicas, Zampa ficava:
era uma festa. Saíam de carruagem para o campo, lá passavam a tarde no meio da poderosa eflorescência dos
arbustos, no silêncio das villas brancas, em torno de que se alastravam vinhedos, sob os
nogais de um verde quente ou entre
perfumes acres de
pinheiros que gemem o seu cântico desolado. Jantavam sobre a relva, como bons lavradores;
ele não bebia então. Tudo em roda
estalava de risos metálicos,
finamente timbrados; era
bom viver assim. Naquela
afinidade de sensações
tranquilas, a alma
dele parecia irradiar uma delicadeza poética. A contessina descobria-lhe
predileções de paisagem, observações sentidas, fortes destaques de
inspiração, uma docilidade de caráter,
mesmo. E era feliz,
esquecida de angústias de outras
horas, com a mente
povoada de sonhos de ouro. Se fosse assim sempre! Se fugissem para um país remoto, o Oriente, num mosteiro em
ruínas!. . E figurava minaretes tártaros,
as grandes túlipas das cúpulas, rendas frágeis dos pórticos árabes, o céu profundo e cálido, onde
a miragem inverte os
panoramas, paineiras seculares, erguidas entre casas quadradas como dados colossais, albornós brancos, barbas pontiagudas e tez parda — como
nos desenhos de Bida. Ou numa herdade perdida no seio dos Apeninos, longe do
bulício e à beira de um lago, num chalé
vermelho, entre árvores. E pelas madrugarias róseas iriam tomar os leites perfumados de turinas brancas;
os sinos das ermidas tocariam o
Angelus, no meio de
um coro de pássaros;
a natureza seria
de uma sonoridade cristalina, perlada de orvalhos
frescos e cálices de jacintos, cor-de-rosa.
O
seu lirismo abstraía-se em
idealidades azuis, em grandes
e nebulosas viagens, em que
destacava o grupo formado por Zampa e por ela — um pelo braço do outro.
Um domingo, ele não voltou. No
dia seguinte, encontraram-no apunhalado na casa de
jogo. Foi quando
começou a estátua. Dentro de
poucos meses, o mármore,
desbastado, realizava a criação mais lúcida que se possa sonhar. Era uma
obra-prima realmente, esculpida
com verdade profunda e inspiração
fogosa.
Sobre um plano inclinado, via-se um grande globo
polido, retido a meio
caminho do declive. Sobre o globo, numa posição agilíssima e graciosa, o funâmbulo, com os braços abertos, as pernas
quase unidas, a face risonha, juvenil e
um pouco irônica, procurava conservar resolvido o seu problema de equilíbrio pelo maior espaço de tempo
possível: e toda aquela obra ressaltava de
vitalidade, de arrojo e de elegância.
Uma lufada de gênio passara por ali.
Quase se esperava ver oscilar o globo,
moverem-se os pés de Zampa, erguer- se um pouco o travessão de balança que ele
fazia com os braços para deslocar impercetivelmente o centro de gravidade a fim de o fazer subir ou descer, andar ou desandar, dentro da base de
sustentação, e vir descendo, descendo conforme
quisesse, pelo declive geométrico e doce do plano oblíquo, sempre sobre o seu globo humilde e no meio das ovações estrepitantes
de alguns milhares de
espectadores. Era Zampa
tornado estátua; as mesmas
soberbas linhas, a mesma
irrepreensível musculatura, perna firme, retesada e direita, de uma
elegância única, os
fortes encontros, a larga
espádua de herói, de uma curva severa, o braço sem grandes nós
articulares, o pulso atlético, e ricamente modelado,
um peito leonino em que subiam
ondulações viris de seios,
a cabeça um primor de cinzel e um
prodígio de distinção, alta, cabelos revoltos, a
audácia dominadora, olhando em face a
turba pressuposta, com o ar superior de quem se faz admirar.
Era Zampa. Ninguém que o tivesse
visto na arena podia desconhecê-lo.
Ao acabar o trabalho, quando numa
contemplação palpitante ergueu os olhos sobre
a sua obra, o cinzel caiu-lhe das mãos e os soluços estrangularam-lhe a voz.
Toda a sua alma estava ali, como
talvez, nos primitivos dias do mundo, a alma do bom Deus nos corpos dos primeiros homens
criados. Nada fora omitido; era ele, bem
o estava vendo, risonho e vivo como outrora, os lábios quentes de beijos e o
olhar cintilante de raios. Bem
o estava
vendo! Os dias que mediavam entre a morte e a
ressurreição daquele homem tinham-lhe centuplicado
o amor, tornando candente o desejo,
e calcinado as últimas fibrilhas de receio. Era sua, era dele para
sempre. Passariam diante de todo o mundo,
abstraídos um no outro, com o olhar errante nas estrelas.
E de rastos no xadrez do atelier,
cabelos soltos em espiras procelosas, o olhar faiscante de loucura, seminua, agonizante, branca,
cingia com os braços a sua obra imortal,
tentando aquecer com a lava dos seus beijos a gélida indiferença do funâmbulo de mármore.
Enfim, acharam-na
caída aos pés da
estátua, abraçada ao globo
como a serpente dos
retábulos da Virgem, um
sorriso divino de bacante nos
lábios emudecidos. Morrera.
Uma palavra de confidência. Não
procurem na sociedade a contessina: seria ridículo! O
amor moderno, despido dos atavios românticos e das consagrações
imortais, tornou-se, fora da família, o que é na ciência e referido às outras espécies animais:
a excitação fatal, regida
por leis fisiológicas,
que atrai e liga. dois seres da
mesma construtura orgânica
e da mesma conformação
anatômica, posto que de sexo diferente. O mesmo que para os cães, que para os elefantes, que para os
peixes, que para as aves, que para os insetos: instinto,
exacerbado na raça humana
talvez, pela depuração do sistema nervoso. Degradante porém neste caso,
por improdutivo. Atualmente há só duas
mulheres, a da família: a mãe, a esposa, a filha; e a da viela. Esta última, compreende-se, se chega a amar um
funâmbulo, ama-o caninamente, pela
sensação que lhe arranca. Se o funâmbulo morre, esse amor despertado, não transforma nunca a cocotte numa artista, qualquer que seja o seu grau de educação, de gosto e de talento.
Se quiserem ver passar por
instantes a contessina, tal como a sonhamos, vão a um
atelier onde se curve um escultor
sobre a pedra ou sobre o tronco, ou observem
um poeta que febrilmente escreve os
alexandrinos do seu poema. Em qualquer
dos três, poeta, pintor ou escultor, pousou o beijo da contessina. Não é
uma mulher, meus
caros, mas o sopro
abrasado que passa e se extingue, depois de haver criado também
o seu funâmbulo de mármore. Chama-se a
Inspiração. Devemos-lhe o
machado de sílex e o
desenho rudimentar gravado em certas
cavernas sepulcrais; viveu já na cidade lacustre, onde fazia colares de dentes de carnívoros
para ornar o peito dos vencedores; passados
séculos ergueu a Acrópole grega, o Patéon e os circos; fez o Coliseu e a Capela Sistina; tudo quanto é grande
alevantou-o ela, amou os artistas da Renascença,
os arquitetos piedosos da
Meia Idade, levou às fogueiras os apóstatas,
guiou Lutero, descalço e
faminto, através da Alemanha, impôs Savonarola
na Itália, e Cristo obedecera-lhe muito tempo antes. Na ciência, da mesma forma que na religião e na arte, tudo
lhe pertence e tudo lhe obedece; foi
amante de Arquimedes, de Newton,
Laplace, Tyndall, Cuvier e Owen, e sempre a
mesma frescura de tez e a mesma suavidade de forma, a
mesma cintilação no olhar e o
mesmo braço imortal e correto, que rasga no incógnito um sulco palpitante e magnífico.
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
Tão detalhadamente descrito, que os personagens saltam da tela... a riqueza de detalhes leva a visualizar, tanto o cenário quanto os personagens e as cena... inspiração da inspiração da inspiração...
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