O NINHO DE ÁGUIA
Na tarde anterior dirigira-me ao montado, caía
a noite. Uma
contemplação profunda fazia-se
em torno e o
campo adormecia. Sobre as árvores,
o céu côncavo tinha laivos rosa,
como sorrisos de bocas que exalam o último adeus. Por entre os
caules seculares dos
azinhais e carvalheiras, uns
acharoados de incêndio ardiam em apoteoses fúlgidas, sobre
que os braços do arvoredo desenhavam em negro formas de estranhos
esqueletos. Caíam a prumo,
de uma banda e outra, formas de
granitos áridos, mostrando nos recôncavos e na profundeza
lôbrega dos barrancos os primeiros fantasmas da noite,
com os seus capuzes de sombra
derrubados na cara, e um escorregamento de passadas misteriosas,
como de ronda sinistra,
que desemboca na quietação de uma viela, no silêncio da noite velha. Ao centro
do abismo, a vereda serpenteava, corcovando
a sua fita saibrenta entre aglomerações bruscas de basalto e grés vermelho,
donde os matagais
irrompiam como hirsutos cabelos de uma cabeça decepada. Sob a vegetação agressiva dos
espinheiros e zambujais, uma linha de
água corria, fazendo murmúrios tímidos de segredos trazidos de fraga em fraga
— e essa
queixa contínua e
chorosa das gotas caindo manso acrescentava uma
nota saliente à sinfonia
em surdina dos vegetais adormecidos e dos ninhos em rumor. O montado
começava dali a subir pelo irregular das
colinas. Não podia enganar-me na marcha. Tinham-me dito — vais pela vereda, chegas ao cotovelo da rocha,
à esquerda, sobes a encosta.
— É a última
azinheira, tronco direito e vermelho,
com a cortiça descascada. Leva corda para subires. Olhas
para cima, aproximas-te sem fazer ruído,
ouve bem — sem fazer ruído! Dás com o ninho logo. Quando a noite se
fecha, a águia chega,
asas abertas, voo circular
e gritinhos alegres de boa ménagere
que volta com o dia ganho e um
réptil no bico curvo, para os pequeninos
esfaimados.
Decorara todo este itinerário, prometendo não esquecer a
menor cautela, iria devagarinho, muito
devagarinho, sem chapéu, descalço mesmo, olhando para cima e em direitura à
azinheira de tronco vermelho e nu de cortiça. Tinha então doze anos, era rubro e selvagem, de
grenha fulva, dentes pequeninos e brancos,
que eriçavam de gumes o meu riso escarlate e feroz — de korrigan vingativo.
Achavam-me o orgulho de um rei e
a pouca educação de um herdeiro
presuntivo. Era de poucas palavras, vinham-me ao sol alegrias colossais que trasbordavam de mim como o rufo
de um tambor extravasa da caixa de ar;
todos os meus músculos amplos
e duros na contração, contornados
nas linhas altivas de um atleta
imberbe, amavam a luta e se tonificavam na carreira. Passara
até ali numa herdade,
entre boiadas de que uma
mansidão poderosa se abala
glorificando a força, à
rabeira dos arados, plena liberdade montesa, onde o homem regula
as pancadas do seu coração pelo ritmo
tranquilo da grande natureza que desabrocha em evoés hilariantes. Manhã nada, já eu estava a pé, sentado à banca
da cozinha com os ganhões da herdade, diante da
açorda patriarcal que o alho
impregna de odores vermífugos. Vestia como eles a camisola de lã,
o largo chapéu de borla e os grossos sapatos
cardados, pião na algibeira, uma cicatriz transversal na testa, de pedradas antigas. Era imperioso e adorado;
de resto abusava, dizia sempre — quero,
porque quero! Quando eu dormia, a minha mãe ia beijar-me, e de uma vez, acordando sob um desses beijos, que
são como ninfeias albas caídas no
mármore das epidermes frias, voltei-me e disse-lhe enraivecido:
— Os homens não se beijam, apre!
Queimava, em podendo, as bonecas da minha irmã, gostava
de a ver chorar e de a fazer sofrer para
me rir depois.
— Bem feito! Bem feito!
Duma vez bateram-me. Enquanto eu berrava, o galo,
cantando, fazia apoteose da postura
recente de uma galinha
amarela, que desposara. Fui-me
a ele e torci-lhe o pescoço.
— Para não gozares comigo. Toma!
A eira,
diante do monte da
herdade, era em plano inclinado, dura e polida, sem ervas. Deitava-me no cimo e vinha rolando
até baixo. Nunca conseguiam trazer-me limpo
— que tinha um
ódio insofrido pelos fatos novos e pelos peitos engomados, considerando a gravata um
traste inútil, de que me servia para
amarrar chocalhos ao pescoço das ovelhas. Só anos depois acreditei que o mundo que eu não conhecia, o outro, fazia
dessa tira de seda uma caraira perigosa — por muito infestada pelo
contrabando.
Nesse dia, mal deram cinco horas e me apanhei fora da
escola, deitei caminho do montado. Tinha
à cintura uma
corda de linho com aselha, para
subir à árvore,
e no bolso uma navalha
de podar com gume de fouce.
Todas as precauções foram por mim empregadas. Ao dobrar da
rocha, descalcei os sapatos
e tirei o chapéu. Meti a navalha
no peito e desenrolei da cintura
a corda. Depois, resolutamente, dirigi-me
à azinheira. Lá estava
o ninho, era enorme e
construído sobre três pernadas
robustas — como sobre
os três dentes de uma forquilha.
Eu nunca vira coisa igual, a falar sinceramente. Tinha o feitio oval de um berço e ficava tão alto,
tão alto que fazia vertigens. Era preciso
subir até lá. Atirei a laçada à primeira bifurcação do tronco, icei-me.
Depois, escarranchado na pernada mais sólida, joguei com
o laço às ramarias superiores e fui subindo. À medida
que me elevava, a ascensão entrava a dificultar-se; folhas em tufos compactos prendiam-me os cabelos, os ramos oscilavam sob o peso do meu corpo, e de vez em
quando soavam estalidos ameaçadores. Mas
viaja bem o ninho de águia; primeiro um alicerce de quatro ou cinco ramos de sobro, cruzados; depois um
leito de folhas secas e pequenas hastes; sobre o leito, folhas macias
de trevos, de tamujes e fenos — e, forrando delicadamente o estojo, uma
colcha de penugens brancas que a águia arrancava do peito, nos seus transportes
de mãe. Com insano trabalho cheguei-lhe ao pé.
Pulava-me o coração no
peito, e qual não foi a
minha alegria ao ver aconchegadas
no ninho, uma de encontro à outra, adormecidas e tremendo
de frio, duas aguiazinhas implumes,
disformes ainda, mas de vigorosas proporções! Cerrara-se de todo a
noite. Um claro luar com reflexos metálicos
atravessava as vaporizações do arvoredo,
penetrando-as de uma poeira de
átomos cintilantes. Nas faias da ribeira,
os rouxinóis faziam jogos florais arremessando-se os sonetos mais
rítmicos; o veio cristalino dos regatos ia
contando às folhagens úmidas dos balceiros e canaviais uma lenda antiga de fadas azuis e tesouros maurescos, narrativa
muito em segredo, entre murmúrios
de beijos que ao longe mansamente se perdiam.
Dava trindades o sino da aldeia — e as aspirações
pairavam naquele calado ar em que
borboletas negras saltitavam, traçando sinais de mulheres predestinadas.
A Lua, na tela
do céu esmaiado, lembrava, com as suas ranhuras, a máscara da Comédia no pano de uma
ópera cômica, que a luz da ribalta
ilumina. Ergui os olhos — acabava de ouvir um grito. Vi a águia pairar um
momento por sobre a minha
cabeça, de asas abertas, cujas
rémiges em cutelo siflavam como velas de um moinho em atividade. Depois
aquele vulto negro desceu
perpendicularmente, raivoso da minha audácia e estendendo o bico de gumes
curvos, para me ferir.
Agarrado à corda dei
um salto, abandonando o ninho, e fiquei suspenso da
árvore um instante, a dez metros do chão
pedregoso, batendo os dentes de terror. Que fazer? A corda por curta não chegava
ao chão. Deixar-me cair era morrer.
De repente, porém, a enorme
pernada dá um estalido seco, houve um atrito de folhas e lentamente vim baixando. Quando pousei no chão, com os
dois filhos da águia no peito da camisola
e a navalha nos
dentes, senti um prazer sem limites. Tinha destruído
uma felicidade e praticado a façanha de subir à azinheira, sem outro auxílio mais que o de uma pequena corda nodosa
e fina. Levaria os implumes para a
herdade e criá-los-ia com
carne e sangue fresco de cordeiro. E eles cresceriam,
alcançando as poderosas
formas dos pais — bico
adunco e córneo, a
terrível garra contráctil, simetria
elegante nas asas, que um
jogo muscular movimenta com
inexplicável destreza. E pertencer-me-iam, estariam na
gaiola pela minha vontade, comeriam se
eu quisesse. Esta ideia
de ter alguém sob a minha
obediência encheu-me de orgulho. Podia fazer mal sem ter medo das queixas que arrancasse. E
vinham-me tendências para oprimir, para espicaçar,
para expor à
tortura. Também o meu pai me
batia! Que sofressem! Na azinheira,
a águia ia de
ramo em ramo, soltando, a cada
investigação inútil, o seu
grito melancólico. Corria
as árvores próximas, voejava quase à
flor do terreno, batendo com as asas nos tojais da
selva, e indo em todos os sentidos como alucinada. Depois abriu as asas horizontalmente com um pulo, susteve-se nas
penas como um para-quedas, e com firmeza
cortou o ar obliquamente, subindo à região das nuvens. De vez em quando, na calada do campo morto, o seu
grito de mãe roubada ouvia-se na
escuridade, como o silvo de um barco em perigo que pede socorro.
A minha paixão daquela noite foram os filhos da águia.
Persistia na ideia de criá-los — de os fazer gente, dizia
eu. Tinham os olhos quase fechados, com uma orla amarela e a nictitante
espessa, meio descida. O pescoço nu
oferecia um desenho esguio, andavam de rojo, dando pequeninos gritos em busca da penugem quente da mãe.
Meti-lhes à força miolos de pão pelo
bico, que eles bolçaram
escancarando a goela
em carantonhas de uma graça
infinita. Em seguida, servi-lhes água, mas recusavam tudo, os biltres, e se os
deixava um momento punham-se a girar de cabeça alta,
à procura do aconchego
que não sentiam. A minha irmã, que, apesar do mistério em que eu envolvia as minhas operações, conseguira
espreitar o que eu fazia, trouxe-me então
a ideia
de meter as aguiazinhas debaixo
da galinha que na capoeira chocava os ovos que fora pondo.
— Ela pensa que são já pintainhos, e as águias
vão crescendo, crescendo... E dás-me a mais pequenina, sim?
— Dá!... uma figa.
Quando nos mandaram deitar às oito
horas, tudo estava
feito — a galinha consentira em adotar os dois órfãos e a coisa
ia bem! Não pude dormir em toda a noite
com a ideia nos pequenos. Se a galinha os picasse, se os deixasse cair do
cesto!... Os gatos lançar-se-iam furiosos contra esses
dois desamparados e
devorá-los-iam, rosnando. — Aplicava o ouvido: se ouvisse chiar saltava
logo da cama. Quanto
tempo levariam a
crescer? Um mês ou dois — estávamos a catorze. E contava pelos dedos —
era tanto tempo ainda! Mandaria fazer um
carro, que os filhos da águia puxariam. E com que inveja ficariam os rapazes da escola, vendo-me
arrebatado pelos voláteis, com esses deuses
que representava o Manual Enciclopédico! No dia seguinte, ergui-me cedíssimo,
havia estrelas ainda. E mesmo
descalço fui, pé
ante pé, até à capoeira, para investigar do que havia. Os
moços, na eira, faziam já girar os bois
na retraçagem dos calcadouros,
e ouvia-se na altura
o ângelus vibrado pela cotovia.
Acocorei-me devagarinho ao
pé do cesto, estendendo as duas mãos ao longo da palha.
A galinha
dera sinal e, cheia
de cólera, as penas alvoraçadas, precipitou-se contra
mim à bicada, implacavelmente, até me
fazer sangue. Às
apalpadelas percorria a cama de
palha em que os ovos se aninhavam; achara apenas uma das aguiazinhas. Diabo!...
Então, sem medo
já que dessem por mim, corri a
abrir a lucarna, e o dia entrou humedecido pela neblina cheirosa da
manhã. Estava apenas uma águia, era
certo!... Dei um berro de novilho marcado a ferro candente, que ressoou por
toda a casa. Queria a outra águia por força, por força, por força! Queria-a, então? Queria, porque queria. Era minha,
tinha-a eu achado, então? E, como ninguém
dava resposta, entrei
ao pontapé a tudo,
ébrio de uma raiva sanguínea.
E num formidável choro rolava-me pelo ladrilho todo nu. Todo o meu grande desejo era que
me atendessem e viessem todos, surpreendidos, saber o que havia. A voz da minha mãe chamava
pelas criadas; entrei a sentir nos
quartos ruídos bruscos de sapatos que se arrastavam e saias que se enfiam á pressa. Já gritava menos, conseguira o meu
fim, tinha incomodado e metido susto a
todos de casa. Era bastante!
Agora, iriam todos procurar
a minha águia, tinham de ma encontrar por força, ou
arranjar-me outra novazinha em folha,
como aquela. Apre!
Quando de repente me chegou o grito da mãe roubada, grito
brusco e quase surdo, como se o coasse
uma laringe extinta. Toda a noite o ouvira, ora perto ou distante, sempre com uma nota de ira
impotente e suplicação desprezada, na
tenebrosa calada do matagal. Fui para a lucarna, instintivamente atraído, à escuta. Era um grito intermitente, primeiro muito
fraco e repetido, como de alguém a gemer —
gri! gri! gri!
—; após, subitamente,
essa voz dilatava-se, enrouquecida,
fazendo quase um bramido.
Uma mulher não
expressaria melhor a
angústia, o desespero e a morte.
Corava o oriente como uma epiderme sadia traduzindo a comoção de um
beijo; nas moradas dos ninhos, entre
decorações de folhagens e carícias de poética doçura,
as famílias de pássaros,
de melros, de pintassilgos,
rolas e poupas, chilreavam
felizes e singelas, deslumbradas na
irradiação do céu.
Só ela, a águia, ia chamando embalde pelo seus, através
da vastidão do éter, em que a vibração
luminosa ondulava, e apunhalada no seu único amor como essas cruéis imperatrizes que Deus castiga no
único ponto vulnerável da sua alma.
Com os olhos
alongados, via-a rastejar à
flor do solo, pelas chapadas e penhascos, extenuada
e rouca, despregando as asas oblíquas,
de enormes rémiges em cutelo,
como tetos de lares despovoados pela assolação da morte.
— Coitadinha! — dizia eu comovido. —
Coitadinha!...
Então fiquei
entorpecido num constrangimento
profundo e singular,
que nunca tinha
experimentado. Sentia na
goela o embaraço inexprimível
que é nas crianças o
prólogo do choro soluçante e
inconsolável, sob que a alma germina em bons impulsos e leais
dedicações, como na
terra se abrem as flores primaveris, sob o influxo das primeiras
chuvas.
Antes que viessem
surpreender-me corri a vestir-me, e resoluto,
os olhos cheios de lágrimas e a corda à cintura, voltei a buscar depois
a aguiazinha. A minha irmã chamou-me,
soluçava.
— Olha,
morreu!... — disse-me toda aflita, mostrando-me o cadáver da outra
águia, que, durante
a noite, com mil precauções,
tinha ido roubar ao cesto.
— Por isso
achei falta — gritei
colérico, batendo o pé. E aos urros, crescendo contra ela de punhos cerrados,
dizia-lhe golfando impropérios:
— Maldita! Má! Peste! Nosso Senhor há de
castigar-te, deixa estar.
Ai de mim! Na capoeira, a
galinha raivosa, reconhecendo o outro enjeitado à luz da manhã, acabava de o matar à bicada,
lançando-o fora do cesto.
Então desatei a chorar. Nunca fora tão desgraçado,
nunca!... Nem quando me davam açoites
com o chinelo, o que estava debaixo da cama do meu pai, a rir-se de mim pelo
buraco ignóbil da tomba. E agora, que fazer?
Meti no seio da camisola os dois enjeitadinhos mortos, e
a correr atravessei a eira, sem dar
bons-dias a ninguém. O dia começava. Rasgando as escuridões em que se envolveria, o panorama saía das
nebrinas dissipadas a golpes de sol aqui
e além, nas cristas dos
outeiros. Desci a correr a
ladeira do monte, pendores suaves donde o olhar abrangia, para
todos os lados, perspetivas do mais belo
matiz, montados, restolhos de searas, regatos orlados de choupos e faias,
mais para além, hortejos alegres onde chiavam noras e se espiralava o fumo dos casais, vinhedo sem fim bordando
sinuosidades bucólicas, brancas ermidas
pousadas nas montanhas, e, perdendo-se na serenidade esfumosa do horizonte,
povoações que na luz
iam fazendo mais e mais nítidos os seus delineamentos. A paisagem tinha
agora uma nitidez de gravura.
As aldeias sorriam para o noivado
da natureza em festa, enquanto, de uma banda e outra, grandes massas de arvoredo abriam destaques
surpreendentes.
Iam tranquilamente
pelos terrenos ceifados os
carneiros dos rebanhos, alongando o pescoço, a fofa
corpulência tufada de lã
patente em camas de espiraizinhas
miúdas.
Alguns velhos guias experientes e graves, focinho
erguido, a grossa cornadura em anéis de
diâmetros crescentes, enrolada como o arrepio da cabeleira de um dandy, chocalho pendente por correias de couro cru, a
orelha inquieta, olhavam vivamente o largo,
bebendo os sons e procurando-lhe a
origem solícitos, como quem tem
sobre si a responsabilidade da tribo e o futuro dos pequeninos. Acima da redondeza das ancas de
alguns, cabritinhos fulvos, de grandes orelhas horizontais, uma
meiguice cândida na vista,
erguiam-se a prumo furando caminho, as
maxilas entreabertas, por
onde se escapava um queixume tenuíssimo — mé!
mé! — alguma coisa
como os rudimentos da cartilha do rebanho.
Vários preguiçosos, estacados
a meio da corrente, mergulhavam o focinho na água,
bebendo. Poucos tinham já
passado e cortavam a dente
as gramíneas alastradas
nas barranceiras. O velho cão descansa,
numa postura séria de patriarca, enquanto, nas meias-tintas dos planos secundários, o pastor, de manta ao
ombro e polainas encarquilhando na tomba
dos sapatos cardados, tinha o
seu ar pasmado de montanhês, olhando a
catarata de ouro fundido que o sol jorrava do nascente,
numa apoteose de cáusticas vivas
— olhar em que se estagnava a silenciosa doçura dos olivais cinzentos e se refletia
a conceção panteísta de um
Deus amantíssimo, que fecunda os
trigos das searas, preside às crias e vem de noite, mansamente,
com o seu capuz de estrelas derrubado para diante,
lançar a bênção ao gado que
dorme, inoculando no sonho do pastor o esmalte de um sorriso de ceifeira, vermelho como as cerejas úmidas
de Junho.
Correndo através do montado, cheguei à ribeira, que pude
salvar num pulo de lobo, e, sem
me deter, entrei
a trepar a pedregosa
encosta, na direitura do ninho. Faziam-se ali acumulações selváticas de
tojeiros e silvados, cabeças de rochedos
pardacentos, espinhais de luxuriante amplitude, que tolhiam o passo a
quem ia. E aquele recanto,
plutônico e brusco, desenhava-se
numa como penumbra de floresta,
que de cima caía filtrada pelos amontoados da folhagem.
Deixara de ouvir a águia, e era pungente o sossego daquela região, equiparado ao orfeão gigantesco de voláteis,
que na planície entoava o poema sinfônico
da manhã. Por duas ou três vezes ergui a voz para insuflar a vida nos ecos do desfiladeiro. De rocha em rocha,
quando muito, o eco repetia a última
sílaba, num murmúrio tímido, como rezado à
roda de um féretro, e morria.
Pela montanha,
troncos penitentes e negros orando de
braços abertos. Nos pegos da
ribeira, as reticulações
verde-negras dos limos deixando evolar a
putrilagem das febres más. Silêncio
abrasado, pesando.
Quando cheguei ao ninho, arquejava. E,
antes de erguer a vista sobre
ele, detive-me um instante,
olhando à roda com um terror
sombrio, que o remorso envenenava.
Se a águia desse
comigo podia matar-me à
bicada. E teria razão — ai de mim!
Estava sozinho.
Não se
via dali o monte já. De
repente, casualmente, sem mesmo
querer, dei com a águia, que, de cima do ninho, abria as asas e sobre mim estendia o seu pescoço ávido. Fiquei
tremendo ante a raiva silenciosa que paralisava
a terrível rainha. Ela ia decerto formar voo e cair sobre mim, para dilacerar-me
com as suas garras de três gumes implacáveis de uma vingança cruel.
Olhamo-nos por tempo. As asas da águia abriram os seus leques
enormes de varetas curvas. A imobilização porém continuava e o pescoço permanecia caído à borda do ninho. Veio-me a ideia de que
podia estar morta. Atirei-lhe com uma pedra — a mesma indiferença.
Sem querer saber de mais, desenrolei a corda e atirei-a à
primeira pernada da árvore. Quando atingi a altura do ninho, pude olhar bem de perto a
águia agonizante, que um
frêmito vago' percorria.
Era poderosa e
magnífica, de enormes asas pardacentas, cujas fortes rémiges
se aguçavam como punhais, na ponta.
Estava de bruços sobre o ninho, como se quisera aquecer o peito de encontro aos frouxéis alvinitentes em que os
filhinhos tinham visto a primeira luz. cabeça um pouco chata descaía adiante num bico
de bordos dentados, e sobre a íris de oiro a nictitante ia descainho
na sombra da agonia, como um apagador
sobre a luz do círio pascal.
A águia morreu
nesse dia, à mesma
hora em que as outras aves voltavam cantando aos ninhos, para dormir com a prole.
Por muito tempo, cruzando o montado atrás dos rebanhos do meu
pai, pude ver nos
cimos da azinheira gigante, suspenso, o berço-túmulo, a que o
esqueleto da águia fazia guarda, dia e noite, de asas estendidas, branquejando
na sombria folhagem da árvore. E vinham-me
então remorsos, que fora eu o assassino daquela dinastia real!
Vai completar-se
um ano
que a tua filha
desceu à cova, Ó
minha mãe! E, vendo-te curvada no teu luto, pobre mulher
envelhecida de lágrimas, sublime por
toda uma vida de abnegação sem exemplo, para mim fico pensando que deve ser cruel
o Deus que tu adoras, se
nunca teve remorsos de haver roubado também — o Ninho de Águia.
1881 — Vila de Frades.
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
Comovente Narração, de um tempo tão distante onde, numa comparação
ResponderExcluirpodemos sentir a valorização da vida em toda em todos os sentidos e,
de todos os seres.