A EXPULSÃO DOS JESUÍTAS
À borda do mar ficava o mosteiro,
erguido em peanha de granitos erriçados de
arestas e cobertos na base de tufos de algas verdenegras. Nascera no dia em que um
dos nossos velhos reis alcançara
de infiéis um triunfo, conseguindo arrojá-los bem para lá das
carairas. Com o tempo, aquela
casa, tosca de origem,
guerreiramente dentada de seteiras profundas, entrou a merecer pelas suas virtudes a proteção de prelados e
infantas. Os cavaleiros que partiam para as conquistas, os príncipes que voltavam das
batalhas carregados de despojos, as
infantas que iam em Espanha e na Áustria ligar a sua vida à vida aventureira dos grandes capitães e senhores, antes de
deixarem a pátria ou ao chegar a ela, entravam
a profunda arcaria
álgida do templo, a depor no tabernáculo o penhor
da sua
fé, do seu reconhecimento ou
da sua
saudade. Nada mais severo que semelhante edificação, por cada
raça aumentada e refundida, nas formas arquitetônicas
do tempo.
Penetrava-se na igreja por um
portal esguio e baixo em ogiva, posto no cimo de uma
escadaria de balaústres
curvos, onde se engalfinhavam
monstros exóticos no mármore das
eflorescências poluídas da idade. Sobre o portal e à altura do coro, três rosáceas de vidros corados
deixavam jorrar no santuário a púrpura
sanguinolenta do sol; por cima, era o coruchéu limoso, entre as duas flechas das torres negras,
encimadas de cata-ventos rangentes. À altura da rosácea central, um poste sustentava os dez
fios condutores do telégrafo — e dava uma comoção indefinida ver assim ligados,
como dois reóforos de pilha voltaica, aqueles
dois pólos de mundos diversos
e separados por dezenas e dezenas de séculos — a
casa dos monges
e o zinco transmissor da eletricidade.
Dentro do templo, parte gótico,
parte bárbaro, e no fundo das capelas sombrias em que perpetuamente arfava a
luz soturna dos lampadários de bronze,
viam-se deitadas em sarcófagos, de volutas multíplices, figuras de bispos e eremitas, cavaleiros e santos, toscas
esculturas terríficas, de capacete ao
lado e espada aos pés, em cujas lápides se podia coligir e ler, como numa velha crônica fiel,
a história completa
da nação. Os santos eram ainda
mais toscos que as estátuas dos
mortos. Tinham as formas hirtas, a expressão feroz e os
bárbaros perfis atônitos, desses
ídolos que ainda hoje se encontram mutilados nas ruínas dos pagodes indostânicos,
sob palmeirais colossos.
As Virgens, revestidas de brocados, cintilantes de incrustações de oiro e pedras e coroadas por diademas do mais
singular detalhe, olhavam dos nichos com
os olhos de vidro, estendendo as mãos ferozes e grossas, num chuveiro de ameaças.
Em oração, os
mártires chagados abriam num espasmo as caras selvagens, flagelando
corpos de brutal nudez.
Viam-se caindo das paredes, poentos e aluídos pela humidade, painéis de milagres em que Deus era exaltado como um ser feroz e sujeito a caprichos de
benevolência, para este ou para aquele, sepultando
uns sob as ruínas das
casas, roubando a
outros as colheitas, fulminando os filhos, matando de fome os pais,
e não cedendo nunca da sua raiva faraônica
senão à força
de procissões e sacrifícios.
Naqueles milagres pendentes em
galeria das paredes da
igreja, uma geração de
envilecidos e tristes desfilava, vergada
à opressão de senhores, a guerras impiedosas, a fomes,
a pestes e terremotos. Alguns tinham ali vindo deixar os cabelos e os vestidos.
Muitos, que tinham enfermado de
uma perna ou de um
seio, ofereciam, experimentando melhores,
a imagem em cera ou em
prata dessa perna ou desse seio.
Mostravam-se, num alpendre da cerca, rumas de lemes, velas e mastaréus, destroços
de barcas e ferros de arados,
dos miseráveis surpreendidos em perigo de morte que assim
tinham comprado a clemência dos
santos do mosteiro. Nas aldeias vizinhas, ainda
agora se narrava, com fervor místico
e secreto medo, a série
de prodígios e milagres sucedidos
na igreja, em tempos calamitosos.
Por uma fome do ano de 1573 havia
aparecido no santuário um braço de fogo sustendo um feixe de espigas. Um
físico, que ousara escarnecer de Deus, fora morto por
um corisco, ficando negro na mesma hora,
nas escadas do altar- mor. E o milagre do pai e do filho, e o das duas
cabeças do enforcado... Em tempos del-rei João III nosso senhor, o mosteiro fora entregue aos jesuítas,
então no máximo esplendor do seu
poderio e fortuna. Era ali que mais
de preferência se recolhiam os santos padres de Jesus.
A contemplação do oceano cantando
a sua eterna legenda,
a linha cáustica entre
céu e mar, a
solidão e a poesia
do sítio, convidavam aqueles homens negros,
que a meditação preenchia, como
um líquido preenche um vaso. A cerca
perdeu nesse tempo uma parte da sua nudez — viram-se os limoeiros e as madressilvas vestir os
muros, jorrar água das carrancas
dos tanques, e os pomares
arredondarem as suas pinhas de verde envernizado. Permitiu-se
ao povo que visitasse a horta, os
claustros e as grutas de devoção particular. À hora da missa a turba enchia o mosteiro, ávida
e devota; as confissões feitas com
fervor, mas sem as ameaças do inferno que os antigos
monges vociferavam, atraíam
simpaticamente os penitentes. E Deus apareceu à terra sob uma face de perdão, que quase se
desconhecia.
Cem anos depois,
apesar de se guardarem com a
maior fidelidade as santas relíquias e milagres
do mosteiro, as vetustas tradições estavam esquecidas entre o povo, e poucos se lembravam de ter
ouvido aos avós a narrativa das duas
cabeças do enforcado, do pai e do filho, e da morte do físico-mor.
Mas eis que o Marquês expulsa os
jesuítas, cujo poder e argúcia arcavam com os seus.
Do pórtico escancarado
vê-se sair uma procissão de padres negros e fonte pálida, de cruz à frente. As santas mulheres
ajoelharam na passagem para lhe beijar
os vestidos e receber a última bênção. De novo o mosteiro fica deserto, sem o
caráter hospitaleiro de uma casa de conselho e oração consoladora. Os negros fantasmas dos monges ascetas lívidos e
frios, pregando abstinências e flagícios,
volvem a percorrer os claustros lúgubres
e a rezar nas
capelas, em que os olhos dos ídolos ameaçam o mundo e proclamam a
aniquilação dos povos. Uma treva enluta os espíritos e flutua
de em torno às muralhas. Em baixo, o escárnio
da vaga que alui
pelas cavernas o alicerce de rochas
do templo, é como um rir de diabo
aos pés de um deus inanimado! De noite, a lua que lança flechas pálidas pelas seteiras
profundas para dentro do mosteiro ilumina estranhos
conclaves de espectros. O vento
segreda nos nichos e à roda dos mausoléus, e baixinho
parece orar aos pés do
santuário. A chuva infiltra-se nas abóbadas e umedece
os cimentos. Dentre as junturas
das pedras irrompem gramíneas e
zambujais. Ninguém vai ver o mosteiro
e o pórtico
está fechado. E aquela mole
de pedra, emburelada em
musgos e erguida à beira do mar, lembra um suicida
ajoelhado fazendo a última oração.
No Verão de 1880, o conde F.,
meu amigo, lembrou-me que
poderíamos fazer na sua
propriedade uma estação
agradável. Tinham acabado nela uma chalé
elegantíssimo em tijolo vermelho,
com tetos de cortiça apainelada,
à beira-mar. O parque de
eucaliptos, enorme e cruzado de áleas, que uma areia negra polvilhava, oferecia já troncos de
grande espessura e beleza, soberbos e direitos,
sacudindo aos ventos salgados da costa os seus molhos de folhas em cutelo. Para o interior a vinha era tão
exuberante que subia pelos troncos das árvores, os pomares
alastravam-se túrgidos de frutos numa distância de milhas, e nas colinas
que demarcavam o domínio
imobilizava-se o verde fúnebre dos
pinhais, cujos filamentos pareciam cabelos verdes de antigos deuses
áricos. Na mata, a
caça abundava, coelhos, raposas, perdizes e galinholas. Para obtermos a melhor pesca,
bastava que, debruçados na amura de
rochedos, lançássemos as redes à
água. O calor
em Lisboa apertava; imagine-se o que seria no Alentejo, na casa
dos meus pais! Decididamente vale a pena
ir com F., valia decididamente a pena. E partimos. Antes de penetrar na
quinta dei com o mosteiro, em que nunca ouvira
falar. Veio-me naturalmente a curiosidade de o ver por
detalhe, e passar numa noite, até, com as
sombras legendárias e romanescas
que tamanho medo faziam às
aldeias circunvizinhas.
Por baixo do edifício, o mar
tinha escavado profundíssimas cavernas que as algas mais
finas tapizavam traiçoeiramente.
Estalactites cônicas desciam da abóbada
a encontrar estalagmites, em que os moluscos
arrastavam mosaicos de
incrustações excêntricas. Por entre as colunatas o fragor da ressaca,
nas noites de temporal, era de
instrumentação titânica, e reboava no templo, como a evocação bíblica do Vale de Josafat.
As grutas prolongavam-se nas
trevas em todas as direções, e íamos de gatas, escorregando nas babugens que a maré deixava
na dentadura das penedias. de uma vez o
archote apagou-se-nos, e o fantástico palácio do mar não tinha termo —
galerias sobre galerias, colunas
truncadas e janelas abertas sobre a treva
fétida e sepulcral!
Visitadas as criptas, penetramos
no mosteiro. Tão pesada e ampla construção fez-me ver que a base perdia pouco a pouco a
solidez à medida que por baixo a onda ia
limando o granito. Aqui e além
até, as abóbadas fendiam sorrateiramente; em
cada Inverno chuvoso, se
sucediam os desabamentos parciais,
e o lajedo dos calustros
abaulava-se abrindo bocas
nas junturas, de que uma respiração pútrida parecia exalar-se.
Tínhamos chegado à quinta nos fins de
Maio, e em Julho
ainda lá estávamos. Mas fatigados já, o conde, especialmente, que o retinham ali negócios de
dinheiro, porque dizia sentir o mais
autêntico desprezo. Visitado o
mosteiro, caçadas todas as perdizes, galinholas e betardas do sítio, ferido nos
viveiros naturais da costa um bom golpe de pesca,
as nossas duas imaginações
impuseram-se o trabalho de descobrir
diversão que nos garantisse a estada na quinta até meados de Agosto — tempo de Cascais e do jogo forte.
Uma manhã ergui-me antes do dia e
fui acordar o conde.
— Achei, venho participar-to.
—
O que achaste tu a esta hora?
— Uma distração, cos diabos!
— Da natureza das outras,
aposto. Modificaste o feitio dos
papagaios, hem?
— Ora adeus ! — disse eu rindo.
— Então diz lá.
—
Sabes que me dou um pouco à telegrafia?
—
Não tens lucrado muito com isso, não.
—
Vais ver que se lucra sempre em saber as coisas. Vou mandar vir o meu transmissor
aperfeiçoado e fios condutores.
—
E estabeleces um telégrafo entre o chalé e a casa da Palmeira. Estás
tolo com toda a certeza.
—
Mau! Ouve.
—
Bem! Diz.
—
Liga o transmissor por meio de
fios, aos dez fios telegráficos que se apoiam na rosácea do mosteiro. E recebemos os
telegramas fresquinhos e sem pagar nada.
Hem?
—
Mas — disse o conde encantado —, é preciso
que vamos habitar os mosteiro.
—
E porque não?
Ele deu um salto na cama.
—
Mas é esplêndido!
—
Decerto.
—
E pode-se alarmar o País.
— Não vejo como.
—
Nem eu, cos diabos, mas pode-se alarmar.
—
Bem…
—
E é como se os telegramas nos fossem enviados diretamente, como se nos obedecessem a agência
Havas, os gabinetes da
Europa, as grandes capitais, o Oriente e o diabo que te leve, que
nos leve e leve todo o mundo!
—
Eia!
— E podemos incendiar o orbe.
— Pelo telégrafo? Que ideia fazes
do telégrafo.
— Eu, nenhuma. Não morde?
— Conhecendo as pessoas não.
— Tanto melhor! E quando teremos
os aparelhos?
— Amanhã.
— Telegrama que passe, hem?..
— Não escapa!
— E grátis, gratuites, sem pagar nada, hem?
— Claríssimo!
— Dá cá um chocho pela ideia.
— Prefiro um cálix de Madeira.
No outro dia o transmissor chegou
com o rolo de fios, metemo-nos à obra. Às
cinco da tarde recebemos o primeiro telegrama.
«Sampetersburgo, 8, às horas da
manhã. — Uma bomba explosiva rebentou junto do czar,
quando este se preparava para
montar a cavalo. A
polícia procede a investigações —
Havas.»
— Este diabo escapa sempre. É extraordinário.
— Aí vem outro.
— Vou jurar que é bomba, que ainda
desta vez não alcançou o invulnerável.
— Nada. «Paris, oito, à uma hora. — Chegou a
embaixada Birman e partiu o Sr. Grévy.»
— Todos para casa do diabo.
Estávamos no
coro de mármore branco, com
baixos-relevos representando martírios
de santos. Das paineluras negras, monges e virgens perdiam-se
na penumbra da abóbada deslocada
pelo templo com uma vastidão de crepes. As estátuas dos monges e cavaleiros pareciam colossais, de imóveis
nos mausoléus, essa
austeridade das figuras de
Miguel Ângelo no
túmulo dos Médicis.
— É triste isto! — disse eu comovido.
A perspetiva do mar, roxo da
banda do nascente, tinha irritações animais até à linha rubra do ocaso —
dorso de cetáceo ensanguentado
pelo arpéu do sol moribundo. A vista, que
percorrendo a imensidade líquida sem repousar num ponto, voltava com um desalento de ave
ferida, trazia a
ideia da morte e a saudade de uma existência menos
crua, nesses ditirâmbicos impérios em que as cabeças se coroam de flores.
De repente, na absorção em que
tínhamos caído, pareceu-me que um frêmito percorrera o balaústre onde me
encostava. E cada vez mais distantes, foram-se sucedendo estalidos secos.
— Não ouviste? — disse eu ao conde. Ele não
tinha ouvido.
— O quê?
— Parece que isto tremeu.
— É que tu escutas. E como estás com medo..
Pusemo-nos a rir.
— Sabes que mais? Vamos passar a noite ao chalé.
— Cobarde!
— Tanto melhor! E se esta dança nos caísse em
cima?
— Oh, diabo! Podia ser que não ficássemos vivos,
não te parece?
— Quase.
— Então vamos. Primeiro a tua saúde.
— Obrigado. Queres que eu tenha medo por nós
dois.
— Mas os telegramas?
— Amanhã continuaremos na exploração.
— Olha bem para mim. Isto não é exploração ou
roubo, hem?
— Seja roubo. Anda.
— Então dá às coisas os verdadeiros nomes, irra!
Descemos. Aqueles estalidos
tinham-me dado calafrios, palavra de honra.
— Como tu vens enfiado! — dizia F., troçando.
— Como tu vens amarelo!
— Qual de nós teve maior susto?
— Foste tu; pois quem?
— E se ficasses na derrocada, ó conde?
— Não tinha pena, palavra.
— Bem, não falemos mais em tal.
— Mas amanhã continuaremos com os telegramas?
— Decerto.
— E eles que chegam como garraios!
No dia seguinte, era meio-dia
quando acabamos de almoçar. O conde bebia como um saxônio, para honrar a memória do
irmão do seu tio, dizia, honrado comerciante
londrino do Cais do Sodré.
— Em plena luz é sob a pressão de quatro
garrafórias ninguém tem medo. Vamos ao telegramas?
Deitamos caminho do
mosteiro, e entoando o God
Save The - Quem aparecemos ante o portal gótico do templo. F.
gritou zombeteiramente:
— Adiante! — Era ele quem tinha medo.
Subi ao coro. Na fita de papel,
sempre em movimento e desenrolando-se com imperturbável
presteza, no cilindro de
aço anexo ao aparelho, o punção do recetor tinha escrito, horas antes, este
telegrama:
O que dirá
«Paris, 9, às 10 horas da manhã.
— Terminou o prazo de 24 horas concedido aos jesuítas de Paris para saírem das casas
que ocupavam e fecharem os cursos públicos
que regiam. Hoje, às II
horas, a polícia
fará despejar todos os estabelecimento da
Companhia de Jesus. Receiam-se distúrbios. O
prazo de 15 dias foi cedido aos
estabelecimentos da mesma Ordem, em atividade em toda a França.»
— A padralhada vai ficar fula! — gritou F.
— padre Kurpi, respeitado e escanhoado diretor espiritual da minha tia
baronesa? Eh! que vai tudo raso!
— Uma hora. Isto enfastia. Vamos às ostras.
— Não vejo inconveniente — disse o conde com um jogo
de ombros. — Vamos lá.
— Se passar algum telegrama, o punção deixa na
fita escrito o que houver.
Descemos aos rochedos e das rochas à areia.
A maré enchia, e uma água cristalina e tépida,
do sol no zênite,
acariciava lubricamente as
barbaças das cariátides de alga que à
boca da gruta faziam carantonhas.
— Já fizeste a digestão? — inquiriu F.
— Já, e tu? E o banho está tão patife!. .
— Nesse caso atiremo-nos à água.
— Vá feito.
Em cinco minutos, as nossas
cabeças saíam à flor do oceano como a desses tritões alegres que nas estampas rodeiam
os carros em concha dos
deuses marinhos. Nadávamos a distância
em frente da caverna, que vista
daquele ponto tinha as mais singulares parecenças
com uma boca de
réptil descomunal.
— Repara — dizia eu apontando. — Aquele fita de
areia clara que forra a entrada é como
um beiço estendido.
Depois, logo as primeiras
pedras aguçadas compõem a porção incisiva e canina
da dentadura. Olha
para o fundo.
Vês as estalactites cônicas que descem do teto? São os dentes
do crocodilo com fome. Olha mais
para o fundo, aquela arcada incompleta — é a goela. Lá tens a úvula, o céu-da-boca
retalhado de sulcos negros. Agora para cima
da boca,
aquela buracaria em triângulo.
Primeiro temos as narinas, ferozes e dilatadas. Nas horas de borrasca a
água esguicha por ali, como dos respiros
de uma baleia. E os olhos,
tão profundos e sem órbita!
Depois a cabeça, toucada do
barrete gótico do mosteiro.
— É original! — dizia F. reparando.
— É terrível — juntei eu.
Continuamos a
nadar. Um zumbido de vida exuberante saía da
água. De cabeça estendida, eu olhava a caverna.
Parecia-me ter notado um movimento lateral
de maxilas, na estranha boca do inferno. O monstro triturava. Diabo!
Ri-me dali a pouco do poder da
minha imaginação, irritada ante aquele cenário de titãs.
A faiscação do astro vestia o
cetáceo do mar numa couraça de relâmpagos, e uma rede de oiro amoldava-se à ondulação do monstro
respirando. Mas então notei que as
estalactites oscilavam, e as fauces do
antro se
uniam numa estrangulação de
raiva. Dessa garganta formidável de agonizante, um oceano arremessou contra nós
montanhas de água negra,
fervilhando em espuma sulfídrica.
A violência do jacto foi tamanha
que ambos nós, eu e o conde, fomos morder a areia do fundo, distante da caverna como
estávamos. Das entranhas da terra saíram
rugidos como se o
mundo fizesse derrocada — vimos
mexer o convento, abaterem-se as
flechas das torres, desabar a abóbada com fracasso indescritível —, a vaga atirou-se raivando de
encontro aos destroços como um molosso
aos peitos de um vencido. E meia hora depois, no sítio do mosteiro assentava
a pirâmide torva dos destroços, sobre que as gaivotas aos
gritos descreviam as suas espiras
fatídicas.
Chegado à praia
e envergando o fato, o meu
primeiro cuidado foi ver as horas.
— Três e
meia! A
derrocada tinha portanto sido
às três, no dia nove de Junho de mil oitocentos e oitenta.
O
conde chegou a casa sem poder
falar. Nunca assistira
a espetáculo mais grandioso.
Nem o incêndio do Banco.
Dias depois, um criado da quinta
veio trazer-nos intacto o recetor que pudera salvar
nas ruínas, e um
bocado de papel onde
estava escrito a punção
o seguinte telegrama:
«Paris, 9) às
3 da tarde. Completou-se
em Paris a
expulsão dos jesuítas. O povo
assistiu sem protesto ao cumprimento dos decretos da República. Reina sossego.»
Pois que o povo era indiferente,
a pedra quisera protestar, derruindo, contra essa lei que afugentava, implacável, as
tristes ovelhas do Senhor!
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
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