sábado, 31 de agosto de 2013

Fialho de Almeida: "A Expulsão dos Jesuítas"

A EXPULSÃO DOS JESUÍTAS

À borda do mar ficava o mosteiro, erguido em peanha de granitos erriçados  de arestas e cobertos na base de tufos de algas verdenegras. Nascera no dia em  que um  dos nossos velhos  reis alcançara de infiéis um  triunfo, conseguindo  arrojá-los bem para  lá  das carairas.  Com o tempo,  aquela  casa,  tosca  de  origem, guerreiramente dentada de seteiras profundas, entrou a merecer pelas  suas virtudes a proteção de prelados e infantas. Os cavaleiros que partiam para  as conquistas, os príncipes que voltavam das batalhas carregados de despojos,  as infantas que iam em Espanha e na Áustria ligar a sua vida à vida aventureira  dos grandes capitães e senhores, antes de deixarem a pátria ou ao chegar a ela,  entravam a  profunda  arcaria  álgida  do templo, a  depor no tabernáculo  o  penhor da  sua  fé,  do seu reconhecimento ou da  sua  saudade.  Nada mais  severo que semelhante edificação, por cada raça aumentada e refundida, nas  formas arquitetônicas do tempo.

Penetrava-se na igreja por um portal esguio e baixo em ogiva, posto no cimo  de uma  escadaria  de  balaústres  curvos,  onde se engalfinhavam monstros  exóticos no mármore das eflorescências poluídas da idade. Sobre o portal e à  altura do coro, três rosáceas de vidros corados deixavam jorrar no santuário a  púrpura sanguinolenta do sol; por cima, era o coruchéu limoso, entre as duas  flechas das torres  negras,  encimadas de cata-ventos rangentes. À altura da  rosácea central, um poste sustentava os dez fios condutores do telégrafo — e dava uma comoção indefinida ver assim ligados, como dois reóforos de pilha  voltaica,  aqueles  dois  pólos de mundos  diversos  e separados  por  dezenas e  dezenas de séculos —  a  casa  dos  monges  e o zinco transmissor  da  eletricidade.  Dentro  do templo,  parte gótico,  parte bárbaro,  e no fundo das  capelas sombrias em que perpetuamente arfava a luz soturna dos lampadários  de bronze, viam-se deitadas em sarcófagos, de volutas multíplices, figuras de  bispos e eremitas, cavaleiros e santos, toscas esculturas terríficas, de capacete  ao lado e espada aos pés, em cujas lápides se podia coligir e ler, como numa  velha  crônica  fiel,  a  história  completa  da  nação.  Os santos eram  ainda  mais  toscos que as estátuas dos mortos. Tinham as formas hirtas, a expressão feroz  e os  bárbaros perfis  atônitos,  desses  ídolos  que ainda hoje se  encontram  mutilados nas ruínas dos pagodes indostânicos, sob palmeirais colossos.

As Virgens,  revestidas de brocados,  cintilantes de incrustações  de oiro e  pedras e coroadas por diademas do mais singular detalhe, olhavam dos nichos  com os olhos de vidro, estendendo as mãos ferozes e grossas, num chuveiro  de ameaças.

Em oração,  os  mártires  chagados abriam  num espasmo as  caras selvagens,   flagelando corpos  de  brutal nudez.  Viam-se  caindo das paredes,  poentos e  aluídos pela humidade,  painéis de milagres  em que Deus era  exaltado como  um ser feroz e sujeito a caprichos de benevolência, para este ou para aquele,  sepultando uns sob as  ruínas  das  casas,  roubando  a  outros  as colheitas,  fulminando os filhos, matando de fome os pais, e não cedendo nunca da sua  raiva  faraônica  senão  à  força  de procissões e sacrifícios.  Naqueles milagres  pendentes em galeria  das  paredes da  igreja,  uma  geração de  envilecidos  e  tristes desfilava,  vergada  à  opressão  de senhores, a  guerras impiedosas,  a  fomes, a pestes e terremotos. Alguns tinham ali vindo deixar os cabelos e os  vestidos.  Muitos, que tinham  enfermado  de  uma  perna  ou de um  seio,  ofereciam,  experimentando  melhores,  a  imagem em cera  ou em  prata dessa  perna ou desse seio. Mostravam-se, num alpendre da cerca, rumas de lemes,  velas e mastaréus,  destroços  de barcas e ferros de arados,  dos  miseráveis  surpreendidos em perigo de morte que assim tinham comprado a clemência  dos santos  do mosteiro.  Nas aldeias vizinhas,  ainda  agora  se narrava,  com  fervor  místico  e secreto medo,  a  série  de prodígios e milagres  sucedidos na  igreja, em tempos calamitosos.

Por uma fome do ano de 1573 havia aparecido no santuário um braço de fogo sustendo um feixe de espigas. Um físico, que ousara escarnecer de Deus, fora  morto por  um  corisco,  ficando negro na mesma  hora,  nas escadas do altar- mor. E o milagre do pai e do filho, e o das duas cabeças do enforcado...   Em tempos  del-rei João III  nosso senhor, o mosteiro fora  entregue aos  jesuítas,  então no máximo esplendor  do seu poderio e fortuna. Era  ali  que  mais de preferência se recolhiam os santos padres de Jesus.

A contemplação do oceano cantando a  sua eterna  legenda,  a  linha  cáustica  entre  céu e  mar,  a  solidão  e a  poesia  do sítio,  convidavam aqueles  homens  negros,  que a  meditação preenchia,  como  um  líquido preenche  um  vaso.  A  cerca perdeu nesse tempo uma parte da sua nudez — viram-se os limoeiros e  as madressilvas vestir  os  muros,  jorrar água das carrancas dos  tanques,  e os  pomares arredondarem as suas  pinhas  de verde envernizado.  Permitiu-se  ao  povo que visitasse a horta, os claustros e as grutas de devoção particular. À  hora da missa a turba enchia o mosteiro, ávida e devota; as confissões feitas  com fervor,  mas  sem as ameaças  do inferno que os  antigos  monges  vociferavam, atraíam simpaticamente os penitentes. E Deus apareceu à terra  sob uma face de perdão, que quase se desconhecia.

Cem anos  depois,  apesar de se  guardarem  com a  maior fidelidade as santas  relíquias  e milagres  do mosteiro,  as  vetustas tradições estavam  esquecidas  entre o povo, e poucos se lembravam de ter ouvido aos avós a narrativa das  duas cabeças do enforcado, do pai e do filho, e da morte do físico-mor.  

Mas eis que o Marquês expulsa os jesuítas, cujo poder e argúcia arcavam com  os seus.

Do pórtico  escancarado  vê-se sair uma  procissão  de padres negros e fonte  pálida, de cruz à frente. As santas mulheres ajoelharam na passagem para lhe  beijar os vestidos e receber a última bênção. De novo o mosteiro fica deserto, sem o caráter hospitaleiro de uma casa de conselho e oração consoladora. Os  negros fantasmas dos monges ascetas lívidos e frios, pregando abstinências e  flagícios, volvem a  percorrer os claustros lúgubres e a  rezar  nas  capelas, em  que os  olhos dos ídolos  ameaçam o mundo e proclamam  a  aniquilação  dos  povos. Uma treva enluta os espíritos e flutua de em torno às muralhas. Em  baixo,  o escárnio  da  vaga  que alui  pelas cavernas o alicerce  de  rochas  do  templo, é como um rir de diabo aos pés de um deus inanimado! De noite, a  lua que lança flechas pálidas pelas seteiras profundas para dentro do mosteiro  ilumina  estranhos  conclaves de  espectros. O  vento  segreda  nos nichos  e à  roda  dos mausoléus,  e baixinho  parece orar aos pés  do santuário.  A chuva  infiltra-se nas abóbadas  e umedece  os cimentos.  Dentre as junturas das  pedras irrompem gramíneas e zambujais.  Ninguém vai ver  o mosteiro  e  o   pórtico  está  fechado. E aquela  mole  de pedra,  emburelada em musgos  e  erguida à beira do mar, lembra um suicida ajoelhado fazendo a última oração.

No Verão de 1880,  o conde F.,  meu amigo,  lembrou-me que poderíamos  fazer na  sua  propriedade uma  estação agradável.  Tinham acabado nela  uma chalé  elegantíssimo em tijolo  vermelho, com tetos  de cortiça  apainelada,  à  beira-mar. O parque de eucaliptos, enorme e cruzado de áleas, que uma areia  negra polvilhava, oferecia já troncos de grande espessura e beleza, soberbos e  direitos, sacudindo aos ventos salgados da costa os seus molhos de folhas em  cutelo. Para o interior a vinha era tão exuberante que subia pelos troncos das  árvores,  os pomares  alastravam-se túrgidos de frutos numa distância  de  milhas,  e nas colinas  que demarcavam o  domínio imobilizava-se  o verde  fúnebre dos  pinhais, cujos filamentos pareciam cabelos  verdes de antigos  deuses  áricos.  Na mata,  a  caça  abundava,  coelhos, raposas,  perdizes e  galinholas. Para obtermos a melhor pesca, bastava que, debruçados na amura  de rochedos,  lançássemos  as redes à  água.  O  calor  em Lisboa  apertava;  imagine-se o que seria no Alentejo, na casa dos meus pais! Decididamente vale  a pena ir com F., valia decididamente a pena. E partimos. Antes de penetrar  na  quinta  dei com  o mosteiro, em que nunca  ouvira  falar.  Veio-me  naturalmente a curiosidade de o ver por detalhe, e passar numa noite, até, com  as sombras legendárias e romanescas  que  tamanho medo faziam às aldeias  circunvizinhas.

Por baixo do edifício, o mar tinha escavado profundíssimas cavernas que as  algas mais  finas tapizavam traiçoeiramente.  Estalactites cônicas desciam da  abóbada a encontrar estalagmites, em que os moluscos  arrastavam mosaicos  de incrustações excêntricas.  Por  entre as colunatas o fragor da  ressaca,  nas  noites de temporal, era de instrumentação titânica, e reboava no templo, como  a evocação bíblica do Vale de Josafat.

As grutas prolongavam-se nas trevas em todas as direções, e íamos de gatas,  escorregando nas babugens que a maré deixava na dentadura das penedias. de  uma  vez  o archote  apagou-se-nos,  e o fantástico palácio do mar não tinha  termo —  galerias sobre galerias,  colunas truncadas e janelas abertas sobre  a treva fétida e sepulcral!

Visitadas as criptas, penetramos no mosteiro. Tão pesada e ampla construção  fez-me ver que a base perdia pouco a pouco a solidez à medida que por baixo  a  onda ia  limando o granito.  Aqui e além até,  as abóbadas fendiam  sorrateiramente;  em  cada  Inverno chuvoso,  se  sucediam os  desabamentos  parciais,  e o  lajedo dos  calustros  abaulava-se  abrindo  bocas  nas  junturas, de  que uma respiração pútrida parecia exalar-se. Tínhamos chegado à quinta nos  fins de Maio,  e em  Julho  ainda lá  estávamos.  Mas fatigados já,  o conde,  especialmente, que o retinham ali negócios de dinheiro, porque dizia sentir o  mais autêntico desprezo.  Visitado o mosteiro,  caçadas todas as perdizes,  galinholas e betardas do sítio, ferido nos viveiros naturais da costa um bom  golpe  de pesca,  as nossas duas imaginações  impuseram-se  o trabalho  de  descobrir diversão que nos garantisse a estada na quinta até meados de Agosto  — tempo de Cascais e do jogo forte.

Uma manhã ergui-me antes do dia e fui acordar o conde.  

— Achei, venho participar-to.  

—  O que achaste tu a esta hora?  

— Uma distração, cos diabos!

— Da natureza  das outras,  aposto.  Modificaste o feitio  dos  papagaios, hem?

— Ora adeus ! — disse eu rindo.  

— Então diz lá.

—  Sabes que me dou um pouco à telegrafia?

—  Não tens lucrado muito com isso, não.

—  Vais ver que se lucra sempre em saber as coisas. Vou mandar vir o meu transmissor aperfeiçoado e fios condutores.

—  E estabeleces um telégrafo entre o chalé e a casa da Palmeira. Estás tolo  com toda a certeza.

—  Mau! Ouve.  

—  Bem! Diz.

—  Liga o transmissor por  meio de fios,  aos dez fios telegráficos  que se  apoiam na rosácea do mosteiro. E recebemos os telegramas fresquinhos e sem  pagar nada. Hem?

—  Mas —  disse  o conde encantado —,  é preciso  que vamos habitar  os  mosteiro.

—  E porque não?  

Ele deu um salto na cama.  

—  Mas é esplêndido!  

—  Decerto.  

—  E pode-se alarmar o País.  

— Não vejo como.  

—  Nem eu, cos diabos, mas pode-se alarmar.  

—  Bem…  

—  E é como se os telegramas nos fossem enviados diretamente, como se  nos obedecessem a  agência  Havas,  os gabinetes  da  Europa,  as grandes  capitais, o Oriente e o diabo que te leve, que nos leve e leve todo o mundo!  

—  Eia!

— E podemos incendiar o orbe.  

— Pelo telégrafo? Que ideia fazes do telégrafo.  

—  Eu, nenhuma. Não morde?

—  Conhecendo as pessoas não.

— Tanto melhor! E quando teremos os aparelhos?

—  Amanhã.

—  Telegrama que passe, hem?.. 

— Não escapa!

—  E grátis, gratuites, sem pagar nada, hem?

— Claríssimo!

— Dá cá um chocho pela ideia.

—  Prefiro um cálix de Madeira.

No outro dia o transmissor chegou com o rolo de fios, metemo-nos à obra.  Às cinco da tarde recebemos o primeiro telegrama.

«Sampetersburgo, 8, às horas da manhã. — Uma bomba explosiva rebentou  junto  do czar,  quando este  se preparava  para  montar a  cavalo.  A  polícia  procede a investigações — Havas.»

—  Este diabo escapa sempre. É extraordinário.  

—  Aí vem outro.  

—  Vou jurar que é bomba,  que ainda  desta vez não alcançou o  invulnerável.

—  Nada. «Paris, oito, à uma hora. — Chegou a embaixada Birman e partiu  o Sr. Grévy.»

—  Todos para casa do diabo.  

Estávamos  no  coro de mármore branco,  com baixos-relevos  representando  martírios  de santos.  Das  paineluras negras,  monges e virgens  perdiam-se  na  penumbra da abóbada deslocada pelo templo com uma vastidão de crepes. As  estátuas dos monges e cavaleiros  pareciam colossais,  de imóveis  nos  mausoléus,  essa  austeridade das figuras de  Miguel  Ângelo  no  túmulo dos  Médicis.

—  É triste isto! — disse eu comovido.

A perspetiva do mar, roxo da banda do nascente, tinha irritações animais até à linha rubra  do ocaso —  dorso  de cetáceo ensanguentado pelo arpéu do sol moribundo. A vista, que percorrendo a imensidade líquida sem repousar num ponto, voltava  com um desalento  de ave  ferida,  trazia  a  ideia da  morte e  saudade de uma existência menos crua, nesses ditirâmbicos impérios em que as cabeças se coroam de flores.
  
De repente, na absorção em que tínhamos caído, pareceu-me que um frêmito percorrera o balaústre onde me encostava. E cada vez mais distantes, foram-se sucedendo estalidos secos.

—  Não ouviste? — disse eu ao conde. Ele não tinha ouvido.  

—  O quê?  

—  Parece que isto tremeu.  

—  É que tu escutas. E como estás com medo..   

Pusemo-nos a rir.

—  Sabes que mais? Vamos passar a noite ao chalé.  

—  Cobarde!

—  Tanto melhor! E se esta dança nos caísse em cima?  

—  Oh, diabo! Podia ser que não ficássemos vivos, não te parece?  

—  Quase.  

—  Então vamos. Primeiro a tua saúde.  

—  Obrigado. Queres que eu tenha medo por nós dois.  

—  Mas os telegramas?    

—  Amanhã continuaremos na exploração.  

—  Olha bem para mim. Isto não é exploração ou roubo, hem?

—  Seja roubo. Anda.

—  Então dá às coisas os verdadeiros nomes, irra!

Descemos. Aqueles estalidos tinham-me dado calafrios, palavra de honra.

—  Como tu vens enfiado! — dizia F., troçando.

—  Como tu vens amarelo!

—  Qual de nós teve maior susto?

—  Foste tu; pois quem?

—  E se ficasses na derrocada, ó conde?

—  Não tinha pena, palavra. 

—  Bem, não falemos mais em tal.  

—  Mas amanhã continuaremos com os telegramas?

—  Decerto.

—  E eles que chegam como garraios!

No dia seguinte, era meio-dia quando acabamos de almoçar. O conde bebia  como um saxônio, para honrar a memória do irmão do seu tio, dizia, honrado  comerciante londrino do Cais do Sodré.

—  Em plena luz é sob a pressão de quatro garrafórias ninguém tem medo. Vamos ao telegramas?  

Deitamos  caminho do  mosteiro, e entoando  o God  Save  The  - Quem  aparecemos ante o portal gótico do templo. F. gritou zombeteiramente:  

—  Adiante! — Era ele quem tinha medo.  

Subi ao coro. Na fita de papel, sempre em movimento e desenrolando-se com  imperturbável  presteza,  no  cilindro  de  aço  anexo  ao aparelho, o punção do  recetor tinha escrito, horas antes, este telegrama:

O que dirá  

«Paris, 9, às 10 horas da manhã. — Terminou o prazo de 24 horas concedido  aos jesuítas de Paris para saírem das casas que ocupavam e fecharem os cursos  públicos que regiam.  Hoje,  às II  horas,  a  polícia  fará  despejar todos  os  estabelecimento  da  Companhia  de Jesus.  Receiam-se distúrbios.  O  prazo de  15 dias foi cedido aos estabelecimentos da mesma Ordem, em atividade em  toda a França.»

—  A padralhada vai ficar fula! — gritou F. —  padre Kurpi, respeitado e  escanhoado diretor espiritual da minha tia baronesa? Eh! que vai tudo raso!  

—  Uma hora. Isto enfastia. Vamos às ostras.  

—  Não vejo inconveniente — disse o conde com um jogo de ombros. —  Vamos lá.

—  Se passar algum telegrama, o punção deixa na fita escrito o que houver.  

Descemos aos  rochedos e das rochas à  areia.  A maré enchia,  e uma  água  cristalina  e tépida,  do  sol no  zênite,  acariciava  lubricamente as barbaças das  cariátides de alga que à boca da gruta faziam carantonhas.  

—  Já fizeste a digestão? — inquiriu F.  

—  Já, e tu? E o banho está tão patife!. .

—  Nesse caso atiremo-nos à água.

—  Vá feito.

Em cinco minutos, as nossas cabeças saíam à flor do oceano como a desses  tritões alegres que nas estampas rodeiam os  carros em concha  dos  deuses  marinhos. Nadávamos a  distância  em frente da  caverna,  que vista  daquele  ponto tinha as  mais singulares  parecenças  com uma  boca  de  réptil  descomunal.

—  Repara — dizia eu apontando. — Aquele fita de areia clara que forra a  entrada  é como  um  beiço  estendido.  Depois,  logo as  primeiras  pedras  aguçadas compõem a  porção incisiva  e canina  da  dentadura.  Olha  para  o  fundo.  Vês  as estalactites  cônicas que descem do teto? São os  dentes  do  crocodilo com fome. Olha mais para o fundo, aquela arcada incompleta — é a  goela. Lá tens a úvula, o céu-da-boca retalhado de sulcos negros. Agora para  cima da  boca,  aquela  buracaria  em triângulo.  Primeiro  temos  as narinas,  ferozes e dilatadas. Nas horas de borrasca a água esguicha por ali, como dos  respiros de uma  baleia.  E os olhos,  tão profundos e sem órbita!  Depois a  cabeça, toucada do barrete gótico do mosteiro.  

—  É original! — dizia F. reparando.  

—  É terrível — juntei eu.  

Continuamos  a  nadar.  Um zumbido de vida  exuberante saía  da  água.  De  cabeça estendida, eu olhava a caverna. Parecia-me ter notado um movimento  lateral de maxilas, na estranha boca do inferno. O monstro triturava. Diabo!  

Ri-me dali a pouco do poder da minha imaginação, irritada ante aquele cenário  de titãs.

A faiscação do astro vestia o cetáceo do mar numa couraça de relâmpagos, e  uma rede de oiro amoldava-se à ondulação do monstro respirando. Mas então  notei que as estalactites oscilavam,  e as fauces do antro  se  uniam numa  estrangulação de raiva. Dessa garganta formidável de agonizante, um oceano  arremessou contra  nós  montanhas de água negra,  fervilhando  em espuma  sulfídrica.

A violência do jacto foi tamanha que ambos nós, eu e o conde, fomos morder  a areia do fundo, distante da caverna como estávamos. Das entranhas da terra  saíram rugidos como  se  o  mundo fizesse derrocada  —  vimos  mexer o  convento, abaterem-se as flechas das torres, desabar a abóbada com fracasso  indescritível —, a vaga atirou-se raivando de encontro aos destroços como um  molosso aos peitos de um vencido. E meia hora depois, no sítio do mosteiro  assentava  a  pirâmide torva  dos destroços,  sobre que as gaivotas  aos  gritos  descreviam as suas espiras fatídicas.

Chegado à  praia  e envergando o fato,  o meu primeiro  cuidado foi ver as  horas.

—  Três  e meia!  A  derrocada tinha portanto  sido às  três, no dia nove de  Junho de mil oitocentos e oitenta.

O  conde chegou a  casa  sem poder  falar.  Nunca  assistira  a  espetáculo  mais  grandioso. Nem o incêndio do Banco.

Dias depois, um criado da quinta veio trazer-nos intacto o recetor que pudera  salvar  nas  ruínas,  e um  bocado  de papel  onde  estava  escrito a  punção  o  seguinte telegrama:

«Paris,  9)  às 3 da  tarde.  Completou-se  em  Paris  a  expulsão dos  jesuítas.  O  povo assistiu sem protesto ao cumprimento dos decretos da República. Reina  sossego.»

Pois que o povo era indiferente, a pedra quisera protestar, derruindo, contra  essa lei que afugentava, implacável, as tristes ovelhas do Senhor!  

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Fialho de Almeida - Contos (1881)

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