sábado, 31 de agosto de 2013

Fialho de Almeida: "A Dor"

A DOR

 Quando o último orango deu origem ao primeiro  homem,  e esse homem  chegando à  virilidade  pôde  desfrutar a  grandeza  da  indomável  força  do  seu pai, domada pela bondade hilariante da sua luminosa inteligência, fez um dia a  si próprio esta pergunta:  

— Em que difiro eu daquele carrancudo ser que não fala  senão por  guinchos e só por contrações grotescas se exprime, que para a alegria tem um  grito e um urro para a cólera, que vê morrer os filhos e fugir-lhe a esposa, sem  que o invada este desconsolado entorpecimento que eu sinto se não remedeio  o mal, e se para o que me cerca não encontro explicação?

Ele caminha aos saltos, coberto de pêlos e ululante de vingança, trepando pela  nodosidade dos caules e enchendo do seu terror feroz as grutas e os maciços  das florestas  palpitantes de  ninhos,  pisando sem remorsos as corolas  mais  purpúreas e os cálices mais olorantes, e não vendo na vastidão opulenta e na  cromática irradiante desse mundo alado ou desse mundo vegetal mais que a  rede em que descuidosamente os seus inimigos vêm cair e onde ele faz as suas  vítimas!

É das diferenças superficiais de estrutura  — de eu estar nu e ele vestido de  pêlos, de ele ter cauda e eu não, de os seus pés terem o feitio das suas mãos  preênsis, enquanto as minhas plantas se espalmam pela asperidão das marchas  a  que  as submeto —,  é das diferenças aparentes de  organismo  que nascem  estas discordâncias de natureza — nele a secura, a ferocidade, o egoísmo e a  inconsequência — em mim o sagrado terror da responsabilidade, o alcance de  vistas que me perturba,  a previsão sagaz que me aconselha, e esta comoção  sem origem que se entorna  no meu corpo,  e me tortura ou me  entusiasma,  conforme provém de uma necessidade satisfeita, ou conforme provém de um  contratempo inesperado?  

E como se  interrogava  em voz alta,  no meio dos castanheiros que as  trepadeiras vestiam em amplexos concupiscentes nas suas couraças de folhas,  viu surgir, dos rochedos negros em que pousava, o velho deus das selvas, alta  figura cingida de cachos e coroada de flores, com barbas de musgos  e vasta  cabeleira de relvas verdejantes.

—  Abre a cabeça do teu filho — disse o deus.  

O homem tomou o machado de sílex, chamou seu filho e fazendo-o ajoelhar  fendeu-lhe o crânio de um só golpe.

—  Essa caixa de osso que partiste é como a casca lenhosa de certos frutos  tropicais de  que te alimentas.  Partida  a  casca,  esses  frutos  revelam a  polpa  delicada, de extraordinário tecido e esquisito sabor.

—  Guarda  esse fruto —  disse  o deus.  E após,  com império:  —  Abre a  cabeça do teu pai!  — ordenou-lhe. O homem encontrou na toca do grande  baobabe  o velho orango que lhe  dera  o ser,  acocorado e trôpego,  roendo  talos. Deu-lhe as boas-noites, pediu-lhe a bênção como de costume, e, quando  o orango  lhe estendia  a  mão lanugenta,  sentiu na  cara  o gume  do machado  que lhe separava o crânio em duas metades.

—  Extrai-lhe o fruto — disse o deus, e o homem obedeceu.  

—  Bem — disse o outro.

E apontando a cada um dos cérebros desnudados:  

—  Este é o cérebro do teu filho, este o do teu pai. Vês que é maior o do  pequeno que o do velho, não vês? Agora segue com atua unha estes arabescos  misteriosos que sulcam a polpa arrancada ao pequeno. Eles desenham o quer  que seja de legenda em hieróglifos: é a buena-dicha da espécie humana. São as circunvoluções,  que mal  se  esboçam no cérebro do orango e  que os  teus  levarão mais  e mais profunda e profusamente impressas.  Até o teu pai,  o  cérebro era alguma coisa tosca como o granito; de ti por diante ele lapida-se,  depura-se e modifica-se — é a pedra preciosa, cáustica na sombra e tenebrosa  na luz, dotada de fulgor próprio e propensa a iluminar ao longe os tenebrosos  recessos dos instintos que herdaste e tens de transmitir suavizados e aptos à  utilidade,  pela  cultura  a  que tu  mesmo  os  forçarás.  Corta-os  ambos  em  pedaços e examina-os bem.  São da  mesma matéria,  têm idêntica  forma e  parecem do mesmo valor. Mas um é o ferro bruto que o mineiro destila do  filão recôndito, o outro é o ferro dotado de propriedades magnéticas. Podes  chamar  àqueles  carvão negro e  torvo,  se tiveres olhado neste diamante  lapidado, que cintila pelos engastes das tuas órbitas como se ardesse vívido na  coroa de um rei.

—  Compreendo! — disse o homem, pensativo.  

—  Olha melhor esse miolo dos dois frutos descascados. Cada polpa se me  afigura formada de lóbulos ou esferoides. É como um continente dividido em  nações pelos grandes  rios,  ou um  país repartido em distritos,  pelas grandes  estradas reais. Cada distrito é a potência que rege alguma determinada função  do corpo — são as bossas. Há a bossa da memória, a bossa da inteligência, a  bossa da luxúria, a da gula...

E,  apontando cada  proeminência, o  deus chamava-as pelos  seus nomes.  Algumas, que eram salientes na criança, ou mal se esboçavam no orango, ou  positivamente  não existiam'.  Em compensação,  o cérebro do bruto tinha  noutras um desenvolvimento colossal a respeito do pequeno, o deus fazia-as  comparar miudamente, uma a uma.

—  Todas as que presidem à direção de necessidades animais, instintos ou  apetites, são consideráveis, no teu pai — dizia ele ao homem. — Todas as que  se  referem  ao intelecto  são de  surpreendente  grandeza  no  teu filho.  Eis  porque buscas alguma coisa mais na vida que a repleção do teu estômago se  tens fome, que a ingestão de água corrente se tens sede, que o repouso se tens sono, e o coito brutal se a virilidade do teu sexo faz explosão ante a fêmea que  passa, serva obediente da tua crueldade ou dócil instrumento da tua lascívia!

 Desse instinto,  que a  natureza institui  para  povoar os seus continentes  e os  seus mares, encher de rumor as florestas.

Faz notar Gratiolet que as circunvoluções dos mais rudes primatas são como  o esquema  das circunvoluções do cérebro humano e de cardumes  as águas,  tiraste tu  os  efeitos mais doces,  as sinfonias mais  límpidas,  os  mais castos  trenos e as mais cintilantes volatas.  

Chamaste-lhe  o amor,  e cristalizando o amor transfizeste-o na  adoração.  À  fêmea  escrava  quebraste as algemas,  não  consentindo que os seus pés  sangrassem, como os teus rudes pés de lutador, nos abrolhos da selva e nos  espinhos da maledicência. Da tua rude cabana fizeste um templo, da tua fé um  lampadário, uma cúpula da tua religião e da mulher o teu deus. No santuário  do teu amor puseste o deus, e da cúpula do templo o lampadário encheu de  esplendores místicos a família e a tua alma. Pela adoração domaste a tua força,  aprendendo a ser delicado para os fracos, altivo para os soberbos, cruel para  os  maus,  justiceiro,  generoso  e valente!  Estas qualidades deve-las à  tua  inteligência,  fluido  singular que emana  deste lóbulo  —  e  apontava —  e te  destacou dos teus antepassados. Por essa faculdade, dominarás os elementos e  os  animais,  serás rei e senhor,  porque o teu braço  obedecerá  sempre à  tua  cabeça. Cada geração receberá da anterior um patrimônio de ideias adquirido,  entregando  religiosamente  à  que  lhe suceder,  acrescentando pelos  seus  esforços  esse patrimônio sagrado e inviolável.  A tua  ambição será  satisfeita,  descansa.

—  E serei eterno? — disse o homem, tremendo àquela ideia. 

—  Na história.
  
—  Na vida! Que me importará a história? Se poderei viver assim sempre, dominando mares  e povos,  e experimentando cá  dentro  esta  plenitude de seiva que extravasa do meu corpo, e se desentranha em colossais alegrias? 

—  Não! — disse o deus com voz profunda. — Morrerás!  

—  De que me serve então tudo isto? — exclamou ele, contraindo a face serena, que uma  graça  infinita  deificava.  E  erguendo os  braços desesperado caiu a chorar a mesquinhez da sua condição. O velho deus sorria. 

—  E qual a bossa que no cérebro do meu filho corresponde a este horrível veneno que a tua palavra me faz beber? 

O deus apontou-lha, dizendo: 

—  Esse veneno chama-se a Dor e nunca envenenou o teu pai. 

—  Faz-me então voltar à nativa bruteza dos meus — disse o homem. — Prefiro a inconsciência rude do orango, a essa inteligência que, iluminando-me a vida, me faz dela um ergástulo, e onde não poderei fazer um passo, bom ou mau que seja, sem que este tribunal interior,  incorruptível  e soberano, me detenha se vou com pressa, ou bruscamente me acorde se adormeci, para me julgar do que eu fizer e para me castigar a toda a hora. 

A voz do deus bradou: 

—  Jamais!
  
E desde então esse animal vaidoso, julgado o mais perfeito e o mais livre dos seres vivos,  tornou-se no miserável escravo  que eternamente geme sob  o chicote do seu verdugo — esse verdugo que se chama: o Pensamento. 


---
Fialho de Almeida - Contos (1881) 

Nenhum comentário:

Postar um comentário