sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Fialho de Almeida: "O Milagre do Convento"

O MILAGRE DO CONVENTO 

Ficava o convento a meio das vinhas, numa larga planície florente e verde, em  que as oliveiras punham a tristeza bíblica das suas comas cinzentas, como o  zinco oxidado.

A leste corria  o enorme espinhaço  da  cordilheira,  alteroso  e pávido,  cuja  nudez agressiva de linhas se coloria de mancas plúmbeas e vermelhentas, de que os  penedos destacavam selváticos,  lembrando ruínas de monumentos  celtas. Num campo de visão esplendoroso e infinito, alargava-se para o sul o  horizonte azulado na massa de ar, semicírculos de planície que mais e mais se  iam perdendo no esfumado das exalações longínquas.

Do campanário da igreja, o olhar que se alongasse, transpunha daquela banda,  livremente, a caraira de Espanha, no seu voo silencioso de andorinha inquieta.  Em torno  ao velho  casarão,  a  ruína  dos  muros da  cerca, uma:  alta  cruz  truncada,  e dois ou três  arcos  de um  antigo aqueduto de abastecimento,  assinalavam a expulsão violenta dos pobres capuchos, primeiros senhores da  casa  até  às lutas  da  última  guerra  civil.  O  edifício  e a  cerca, vendidos  a  um  fidalgarrão da  Vidigueira,  derruíam  vagarosamente,  à  míngua  de reparos.  O  fidalgo  arrendara  tudo,  abandonando  a  província,  onde só voltava  de ano  a  ano para  vender  herdades  ou hipotecar pastagens e  azinhais. Na cerca,  os  amplos  tanques  de pedra  estavam desconjuntados  e  secos,  cobertos  de  cicutas viridentes;  a  canalização atulhava-se  de raízes e moitões de lodo das  últimas  enxurradas;  caíra  o aqueduto;  e à  boca  lôbrega das cisternas,  as  figueiras bravas irrompiam, alongando os troncos brancos, em que rebrilhava  o verde de largas folhas de recortes duros, como antigas faianças de Koblenz. Debaixo das nogueiras,  cujo aroma  rescendia  morno a  cada  respiração da  aragem, torciam-se as heras nos bancos de granito, estendendo tentáculos no  seu deboche  de vegetação verde-bronze e subindo,  como um  desejo,  pelas  fibras das árvores colossais. Uma estátua de apóstolo mártir caíra de encontro  a  um  castanheiro enorme,  cujas palmas faziam cúpula  sobre essa  cabeça  vergada,  de  granito.  Ao longo  da  ribeira, os  plátanos e  as faias  postavam-se  como  avançadas,  num surdo murmúrio íntimo de  seiva.  E para  além,  o  laranjal espesso, vergado até abaixo, alargava-se, embalsamando o ar, onde as  pombas fugiam no  azul pálido,  como almas que,  purificadas,  penetram os  umbrais serenos  de bem-aventurança. O  convento,  de paredes cinzentas,  telhados  cobertos de erva  e janelinhas  de celas,  desamparadas como órbitas  sem olho, pesava  na  paisagem viva,  com um  ar de mendigo que esmola, à  beira dos caminhos. Acima da grande massa oblonga de muros, fortalecidos a  gigantes de cantaria,  as duas torres sem  cúpula,  encimadas de pequenos  obeliscos de  alvenaria musguenta, de cujas cristas  o  furação  cuspira os  cata-ventos,  erguiam-se  tristemente,  como  um  desenho tosco e  primitivo.  Nos  claustros,  o feitor  da  propriedade estabelecera  tulhas do lagar de azeite,  cobrindo a  taipa  uma  das faces  do quadrado de arcarias,  rasgadas sobre o  pátio central —  onde  os  limoeiros vinham  espalmar toda uma  tapeçaria  de  folhas curvas  e espinhosos troncos,  salpicada  pelo  oiro  baço  dos frutos,  ovalares  e rescendentes.  Uma  legião de  pássaros  vivia  nesse pátio,  na  ebriedade festiva dos aromas; ao centro, o poço de pedra, de relevos brutos,  especavam no ar a roldana negra, que tinha, ao anoitecer, um perfil de forca  viúva. No tempo dos frades, as festas cheias de rumores do velho órgão, de  incensos  e flores  chamavam dos  arredores  as aldeias e farta  colheita de  esmolas.  Agora  a  devoção por  essa  velha  igreja  em ruínas,  de altares  carunchentos  e abóbada  fendida,  esmorecia  lentamente.  Falavam de medos  errantes pelos claustros, soluços pelas escadas de pedra, e vozes que vinham  gargalhar blasfêmias à boca do poço quadrado do pátio. Aparecera mãe uma  filha do eremitão. E os santos, toscamente  esculpidos  e  miseráveis  nos seus  farrapos de túnicas, não inspiravam respeito. O Senhor dos Passos, com uma  enorme cabeça de marfim, estava aliviado a um canto, do peso da cruz, que o  sacrista  bêbedo partira  uma  noite, depois  da  procissão.  Andavam aos  pontapés  pelo  carneiro,  amolgadas e sujas, lâmpadas de  latão, verdentas de  azerve;  os  castiçais coxeavam cobertos de cera  pingada  e moscas  mortas.  E  por um  buraco do coro,  alta  noite,  piando escarninhamente,  as corujas  entravam para  os ninhos  da  capela-mor,  famintas do azeite das lamparinas.  Duas vezes por semana, domingos e quintas, Manuel do Cabo, sacrista, mais o  padre Miguel de Deus, saíam da aldeia, para celebrarem missa no convento, a  que só assistiam o eremitão e a filha, os moços da horta mais o feitor, gente  sombria, com o ar estúpido dos ignorantes maus.

Uma  noite,  padre Miguel de Deus apareceu morto  na  cama  e ficou vago  o  lugar de capelão do convento. Só depois de instâncias repetidas é que padre  Nazaré aceitou o cargo. E, torcendo o focinho bilioso de egoísta, dizia para  Manuel do Cabo, uma quinta-feira, apontando a igreja:

—  Isto não deixa nada, mas, com reformas... 

Manuel do Cabo, que era lido em autos, histórias de Carlos Magno e princesas  Magalonas, não deixou sem comentários a sentença do Sr. padre Nazaré —  um finório, como se dizia na loja do Burjaca. Mas, com reformas..  meditava  ele à  lareira,  enquanto a  filha  Escolástica,  junto  da  candeia,  fazia renda  pensando em ganhões de braços robustos. Que diabo de reformas seriam? A  igreja  não tinha rendas,  nem alfaias,  nem conserto sequer.  A miséria  ia,  esfrangalhada  e imunda,  das toalhas dos  altares aos  dosséis desbotados  da  capela-mor. Começava a estalar a carnação dos mártires; nosso padre-mestre  S. Domingos perdera pouco a pouco as orelhas; havia um S. Luís carunchoso, em cujo ventre os ratos faziam residência segura, por todo o ano. E falar o  padre Nazaré em reformas!...

Chegou o Verão daquele ano, tempo das romarias. 

Cada domingo era  consagrado à  sua  ermida —  à  Senhora  de Guadalupe,  a  Santo António, a Santa Clara, a S. Pedro das Cabeças, a S. Tiago, à Senhora  das Relíquias...  E as aldeias,  vestidas de galas,  raparigas de xales escarlates e  tranças postiças, cavadores de calças curtas, enormes pés e grosseiros chapéus  de borla nas nucas, velhos e crianças nos seus burros, nos seus machitos e nos  seus carros de mato iam em chusma depois do jantar e meio-dia batido nos  sinos  da  paróquia,  estrada  fora,  através  das searas maduras, e  das vinhas  verdes  opulentas de  cachos, trepando colinas e chapadas de olival,  em  direitura às igrejinhas  brancas,  abertas com um  encanto de fé  ingênua  nas  alturas,  e em  contemplação perpétua de  horizontes sem termo. Cada uma  daquelas imagens  de  bem-aventurados,  toscamente  esculpidas  e de uma  pintura bárbara, possuía para a raça crente dos campos a especialidade de um  prodígio, um ramo de milagre original.

Santo António, por exemplo, de três palmos de alto e o rostinho garoto de um  aluno desinquieto, adorado num cerro enorme de montado, e vizinho de um  moleiro  borrachão,  protegia os  namoros.  Era  o mais querido dos arredores.  Nas tardes bonitas de Primavera e nos domingos abafadiços de Verão, a gente  moça  vinha bailar-lhe e  cantar-lhe no  adro,  com  um  desejo  de núpcias  traduzido em clarões  de olhar.  Uma  a  uma,  as raparigas iam  coser-lhe  no  manto,  sorrateiramente,  pequenos bilhetes  escaldando de fé e  de pecado  também, em que se suplicava a intervenção da bendita imagem no bom êxito  de uns amores que qualquer dia rebentavam em escândalo grosso — não tinha  dúvida nenhuma! 

S. Pedro abria as portas do céu, e o seu cortejo compunha-se de velhas beatas  supersticiosas e antigas fandangueiras alegres, cuja fé lhes chegara com rugas e  cabelos  brancos,  após anos  e anos  de rasgada  pândega.  E todos  esses  solitários,  invocados  a  propósito de  secas  insistentes,  colheitas  ruinosas,  implacáveis  Invernos,  doenças,  sezões,  maus-olhados, bruxedos e raios,  gozavam no Verão da sua festa, com música e fogo-de-vistas, sermão, tourada  e procissões garridas à roda da igreja, ou as mais das vezes até ao povoado e  ao som de uma foguetaria atroadora. Os santos do convento, nada; Mas, com  reformas, dizia padre Nazaré. Qual reformas, nem qual diabo! acabava Manuel  do Cabo por acrescentar. 

Um dia, descendo da torre, onde fora descobrir um famoso ninho de pombos  bravos,  reparou num cubículo do coro,  a  um  canto,  nuns  alfarrábios  esquecidos, poentos e rendilhados pelas arganaças. Curioso como era, nunca para  tal olhara.  Agarrou num dos cartapácios  e veio para  baixo.  Torceu  primeiro o gasnete aos borrachos do ninho e à pomba mãe que surpreendera. 

—  Que rica  fritada  não faria  a  Escolástica  daquela  gentinha  toda,  hem?  Um almoço de rei! — dizia Manuel do Cabo, sacudindo a poeira do livro com  as fraldas de uma cruz partida a um canto, e noutro tempo alçada à frente da  comunidade dos capuchos, pelos campos fora, em dias de festa.

Abriu a  grossa capa de pergaminho e leu: Crônica dos  Capuchos, em largas  letras vermelhas.

—  Escuso de ler — ponderava o desdenhoso Manuel do Cabo —; amigos  de raparigas, de vinho e raposeiras ao sol, de pança para o ar. Medo aos tiros,  latim por  qualquer  coisa,  e uma  cantarolação do inferno  nas missas.  Malta!  Conheci o guardião: que grandessíssimo bêbedo!

Como entardecia, fechou a porta da igreja, meteu o livro no alforge mais as  alvas sujas de padre Nazaré,  e,  montando  no  Ginaia,  jumentinho  podre e  peludo, desceu para a vila. Era pelas eiras; a perder de vista, de ambos os lados  da  estrada,  alongavam-se  sinuosamente  pelas colinas as courelas ceifadas,  cujos  torrões secos  dos  calores tropicais esboroavam  ao menor  atrito.  Os  rebanhos percorriam, de banda a banda, os largos trechos de campo, fazendo  um concerto de chocalhos e uma floresta de chifres.

No horizonte formidável, murchavam docemente as últimas eflorescências de  luz. De todos os  lados  as árvores,  com os seus braços de ciclopes negros,  pareciam curvar-se numa saudação benévola,  que os  melros, os melharucos,  os  papa-figos,  as calhandras e os verdelhões repetiam,  ampliando,  vocalizando,  num coro estrondoso,  sonoro,  harmônico e incomparável.  As  vinhas forravam de espessos  tapizes  a  terra  calcinada, de que se  erguiam as  figueiras de largas folhas e troncos  brancos,  num espreguiçamento  de sesta.  Desenhavam-se  para  o longe,  em curvas francas,  os  pendores das serranias  agras, afogados na exalação serena da tarde; de todas as veredas saíam para as  eiras récuas de possantes machos carregados de espigas,  e pelas clareiras  estalava em notas vivas o rumor das cantigas imaginosas. Manuel do Cabo ia  dando boas-tardes aos ranchos de ceifeiras que encontrava. À entrada da vila,  encontrou padre  Nazaré chupando um  cigarro,  enquanto  no calcadouro da  eira os moços retraçavam as espigas, a malho. E à noite, depois da ceia e aceso  o cachimbo, lembrou-se  de folhear  o alfarrábio,  a  passar um  bocado  de  tempo. Leu num cabeçalho do capítulo:

«De como Jesus Nosso Senhor se mostra prodigiosamente aos seus humildes  servos capuchos, e da narração dos milagres sucedidos no convento de Santo  António de Vila Alva.»

—  Pois, sim, sim! — disse Manuel do Cabo, com desdém. Mas leu sempre. 

«E além dos muitos prodígios em que a misericórdia divina se patenteou aos  nossos irmãos,  sarando grande cópia  de  leprosos,  curando enfermos e  fazendo sair o inimigo do corpo de várias mulheres, a súplicas do nosso padre  mestre, Frei António da nossa Senhora, se relata um assombroso milagre que  deixou prostrados em fé quantos tiveram a glória de o presenciar. Não poupa Deus os  pecadores  do mundo,  nem retira  aos que se  arrependem e  conquistam a graça, suas mercês e favores, que únicos são verdadeiros neste  viver de desenganos.. »

—  Tá!  tá!  —  fazia  Manuel  do Cabo, como quem conhece o terreno que  pisa. — Malandrice no caso!

«Em o ano de mil quinhentos e setenta, por uma noite de Janeiro, estando no  convento de Santo António de Vila Alva todos os nossos irmãos recolhidos  nas suas celas e entregues  à  guarda  de Deus, pois como  disse o bem-aventurado S. Francisco de Sales...»

—  Pro  diabo, mais  ele!  —  comentou Manuel  do Cabo, voltando a  folha  sem olhar a citação.

«Se ouviu grande grita na igreja e a modos rugidos de besta-fera, no meio de  copiosos prantos. E, despertada a comunidade, se ouviu uma voz que dizia:  Ide-vos,  tentador! E todos se  prostraram, em oração, para  que Deus Nosso  Senhor não desamparasse seus humildes servos em tamanha agonia e perigo, a  fim que as suas almas pudessem desfrutar a bem-aventurança, que gozam no  seu reino tantos santos e patriarcas, pois como disse...» 

—  Esta cambada metia tanto latinório nos livros, como vinho no bucho.  Ora a súcia, senhores!... 

«Mas o guardião Frei António da nossa Senhora, de virtuosa prática e varão  inspirado do Céu, veio a eles para que cobrassem ânimo, e encaminhando-se  todos para a igreja viram um grande cão preto, lançando fogo pelos olhos e  boca,  que fazia  pavor,  tão  furibundo estava  de ver.  E no altar da  milagrosa  imagem do Senhor dos  Passos,  um  leigo  notou  os  castiçais  derribados,  o  frontal desfeito e coberto de babas malignas. E vindo todos, foi visto agarrado  à  cruz  do Redentor  um  noviço entrado de pouco,  por  nome Serafim,  que  prostrado em êxtase dava graças a Deus por se haver escapado das garras de  Satanás, que outro não era o tinhoso cão negro, que fora visto em fuga.

E todos em joelhos deram graças por tamanho prodígio. Aproximando então  uma  lâmpada  da  verônica  da  sacratíssima  imagem do Senhor dos Passos,  notou Frei  António  que esta chorava  um  choro de sangue de agonia  milagrosa.  E erguendo a  voz  ordenou a  todos os irmãos  que ali  estavam se  prostrassem de novo e fizessem por observar, em tudo, quanto recomendam  os  sábios doutores da  Igreja,  cultivando  a  fé  e espalhando  a  virtude  quotidianamente.. »

—  Naquele tempo chorava  —  ia  dizendo velhacamente o sacristão.  — Hoje, qual!. . Partem-lhe a cruz e não abre bico; rasgam-lhe a túnica, e moita!  Como diabo fariam eles a choradeira?...

Nisto bateram e entrou padre Nazaré. Deu com os olhos no livro e foi logo  observar o trecho.

—  Então você agora  dá-se  à  leitura  de  coisas antigas, hem? Crônicas e  frades, etc...

—  Hum! Pouco. Era pra chamar o sono.

Padre Nazaré pôs o dedo no capítulo do milagre  e olhando de  esguelha o sacrista:

— Quanto lhe devem a você no convento?

—  Seis  meses  certinhos...  faz  hoje.  Nove mil réis! Se  os apanho,  nem  acredito! Chiam-me no papo.

—  O mesmo cá por casa. Leu isto?

— Não tinha outra coisa...

— E que diz, que diz?

—  Eu? E vossemecê, padre Nazaré?

Olharam-se.  Manuel  do Cabo ria  com a  sua figura  podenga  de  campônio,  olhinhos de malícia precavida, um tamborilar de dedos na tampa da arca.

—  Que grande milagre! — fez com ênfase untuosa o padre Nazaré.

— Que grandessíssimo!  —juntou Manuel do  Cabo,  não se sabendo se  falava do prodígio, se do capelão.

— Como já se não fazem hoje — ecoou saudoso o padre, repotreando-se,  com os bugalhos dos olhos nos seios da Escolástica, entretida a esburgar as  ervilhas secas.

— Pouca virtude hoje! — disse o sacristão. — Os tratantes são como água  de pedra..  — E com profundeza convencida, dando uma risada bronca: 

— Mas naquele tempo eram maiores, vá com Deus!

— Hum! — opinou padre Nazaré. Puseram-se a falar no enterro daquele  dia, da velha D. Isaura, uma ricaça da terra. A Escolástica quis saber se tinham  distribuído esmolas e de quanto.

— Tostão!

— Não se alargaram muito, a bem dizer.

— Vamos com Deus, não foram más. Quando foi do doutor Bentes, nem  cheta apareceu.

— Esse sim!  Tomara  a  mulher mais  prós amigos.  —  E desdenhosa:  — Que, segundo me contaram..  

— Não digas asneiras, sua tola, não digas asneiras — clamou azedamente  Manuel do Cabo, que amava a discrição e a harmonia recíprocas. — Você viu? 

Deram nove horas, no relógio da torre. E o sino da câmara correu, segundo a  velha usança.

Padre Nazaré levou o sacrista para a porta da rua e disse em voz cautelosa,  aproximando muito a cara da orelha do outro:

— E se o Senhor dos Passos chorasse ainda? 

— Está lá pra isso!

—  Homem, às vezes... 

—  Então? — fez Manuel do Cabo, à espera que ele dissesse tudo.

Padre Nazaré descreveu então numa linguagem arrastada e mole a rodilhagem  em que se via o convento e os objetos do culto. 

— Você bem sabe, homem. Não há frontais, nem banquetas, nem toalhas, nem alvas, nem vestimentas para  os santos.  É uma  vergonha!  —  acentuava com força. — Tudo que mete nojo! Aquelas galhetas, aquela patena, as duas  sobrepelizes, as alvas, tudo aquilo, senhores, tudo aquilo! Além disso, não sei  se você tem reparado. Uma invernia tesa, temos a abóbada em terra. Sabido!  Você  conhece-me.  Sabe  que  coisa  ao  meu cargo tem  de andar limpinha,  arranjadinha. Senão,  passe  muito  bem..   Ora  se o Senhor  dos  Passos..   você entende?

— Tinha  hoje pensado nisso  mesmo  — observou Manuel  do Cabo,  que medira o alcance da patifaria proposta.

— Ah, tinha? — E numa expansão: — Assim mudava tudo, você entende. Quando correr que o Senhor dos Passos chora, não faltará cão nem gato que  não queira  ver;  calcule as esmolas e  prendas a  seguir.  Você  entende...  são  velas,  azeite,  túnicas,  castiçais,  dinheiro,  legados  por  testamento,  o arraialito  todos os  anos,  missas aos  centos e gorjetas de estalo.  Conserta-se  a  igreja,  asseia-se, pinta-se, caia-se, você entende. No Verão, bailarosca na cerca, fogo- de-vistas, gente assim.. 

E com os dedos em pinha, fazia movimentos de aglomeração oprimida. 

— Sim senhor, sim senhor — resmungava o Manuel do Cabo.

— Aí pela Quaresma, faz-se procissão até à vila, missa cantada, o costume, sermão...  E você verá que se  despovoam  aí as aldeias todas  para  a  romaria.  Selmes não falta.

—  Olha quem, Selmes! Aquilo são brutos como jumentos.

— A Vidigueira, a Cuba, Vila de Frades..  Você entende.

— Essas não comem, parece-me cá.

— Qual! Qual! O povo tem muita religião ainda. Veja você, quando levam a Senhora das Relíquias, pelas secas, ali na Vidigueira. Veja! É um choro, que  nem que as moessem  de pancadaria.  Que nome tem aquilo senão fé? —  E aprumando a estatura desajeitosa, de uma obesidade glutona, invetivava; 

—   Sim, que nome tem? E não é tudo. Você verá que as mais romarias hão de morrer por cauda da nossa. Homem, sempre é um choro de Senhor dos  Passos. E depois, os sermões. O que se pode dizer da imagem... você entende.  E o dinheirão nas festas...  Vendem-se  estampas,  bentinhos,  medidas —  um  chuveiro! Isso fica prós alfinetes da Escolástica. E as fogaças e tudo!...

— É uma rica ideia. Mas se entram a falar, se o vigário percebe...

— Ora deixe. A eles também lhes faz conta. Em Beja fazem o mesmo, os tais letrados.

— Bem. Eu cá, pronto! Pode chorar em querendo. 

— E aproveita-se uma bela ocasião agora. Você sabe que a mãe do fidalgo vem passar um mês para a horta. Grande devota, segundo me contaram. Em  Lisboa, diz  que  leva  a  vida  pelas  igrejas  a  comungar,  a  confessar-se,  a  encomendar  relíquias  e bentinhos.  Excelente  senhora!  e para  mais,  oitenta  anos! Veja você. .

— Está na conta.

— Como anda adoentada, vem a mudar de ares. O sítio é belo, um ar na própria,  verdura. .  Faz-se o milagre:  se  melhora,  corre logo uma fama  de seiscentos demônios.

— Não melhorando... tumba!

—  É capaz de legar rendas para o culto. E você entende.  

—  Entendo. Em ambos os casos, lucro. E quando chega?

—  Mesmo depois de amanhã.

—  É preciso então mandar assear a igreja, que parece um chiqueiro, não  ofendendo quem está.

—  Claro que é preciso! Amanhã trata-se disso.  

No dia seguinte ia grande faina no convento.  

O hortelão varria do laranjal as folhas caídas, os moços aparavam o buxo das  estreitas ruas do jardim, as mulheres caiavam os muros da cerca. Ao mesmo  tempo,  Manuel  do Cabo mais a  filha,  empoleirados  pelos  altares  da  igreja,  destruíam com os  varejões  enormes,  que serviam pela  azeitona,  as pontas  suspensas e negras que alguns milhares de aranhas tinham fabricado, em pelo  menos vinte anos de secreção. Os santos tinham sido apeados dos nichos e  cuidadosamente lavados numas poucas de águas. A cada passo, a Escolástica,  passando o rodilhão molhado pelas barbaças de um mártir, dizia compungida:  

—  O  santo  me perdoe,  mas  estava  que metia  nojo!  —  E em cóleras de  cristã fervorosa: — Estas bilhardeiras da horta, nem ao menos água têm, pra  lavar os santinhos! Velhacas!...

—  Oh, rapariga..  — dizia o sacristão repreensivo.

Foi impossível arrancar ao seu nicho o Senhor dos Passos. Era uma imagem  maciça e tosca, talhada quase a machado, e a quem faltavam dois dedos. Tinha  a cabeça quadrada de um ídolo pelágio, marfim amarelo salpicado de feridas  negras,  cabeleira  comida  de traça  e encimada  de um  resplendor de lata,  dentado  e torto.  A túnica  caía  aos pedaços  numa  miséria  mendiga,  donde  saíam tornozelos gigantescos e pés formidolosos.  

—  Mete respeito! — dizia a Escolástica, molhando o esfregão no alguidar.  

Os cuidados de Manuel do Cabo convergiam especialmente sobre a capela do Senhor,  soturna  e alta,  com colunelos de  talha  e esculturas selvagens  representando serafins e  emblemas  da  Paixão.  Do fecho do  arco, uma  lâmpada de chumbo caía por três cadeiras de ferro; o púlpito ficava em frente  com a balaustrada negra e azulejos no portal; e, traçando caminho de capela  para capela, uma linha de sepulturas rasas arremendava de pedras alvacentas e  tortuosos epitáfios o ladrilho esboroado do pavimento.


Era espaçoso o camarim da imagem, posta ao través para ser vista em toda a  sua  dimensão.  A parede do fundo,  pintada  de judeus colossais  ornados de  chifres  e dentes de javali,  que os  maraus arreganhavam por modo insólito,  ensombrava-se de manchas limosas, fazendo claros na quadrilha de algozes  de Nazareno.

—  Eh, malditos do diabo! — fazia a Escolástica esgrimindo figas sobre a  cáfila, enquanto gravemente o sacrista dava reviravoltas à cabeçorra do ídolo,  a ver se a desaparafusava do tronco. E quando viu a filha descer para renovar  a água das lavagens, Manuel do Cabo destroncando a cabeça santa pôs-se-lhe  a  estudar cuidadosamente  a  anatomia.  Terminava  ela  numa  espécie de  parafuso tubular, tapado por uma rolha. Manuel do Cabo puxou a rolha para  si e deu com uma concavidade que se escavava na cabeça, fazendo nela como  um esconderijo.

—  Cá está  a  marosca!  —  resmungou, torcendo a  venta  de um  modo  pujante.

Deitou água no bojo e vascolejou. A água tingiu-se de vermelho.  

—  Percebo! — disse ele. — Não precisa mais. — disse a meter a rolha no  tubo  de parafuso,  lavou a  cara  do santo,  cuidadosamente restituiu a  cabeça  cheia  de água ao seu lugar.  Alcançara  de velhas devotas uma  túnica  de  paninho roxo, e com esmolas fizera consertar a enorme cruz de pinho que de  longos anos caía  a  um  canto,  aliviando o  semita  do seu peso  infamante.  

Quando a  Escolástica  voltou,  já  o Senhor dos Passos estava  vestido  e paramentado de novo, cruz às costas, a disforme cabeça lívida pendente sobre  os  seios,  cabeleira  esguedelhada  nos ombros e  o resplendor  por  cima,  com  uma mão fatídica impondo condenações. Com ramos de ciprestes juncaram o  chão da capela. Através das ramarias esbugalhavam-se os olhos dos fariseus,  com ar de troça que incendia as iras da Escolástica, vindo porém, a achar eco  no coração do sacrista. Enfim, a mulher do hortelão trouxe flores e verduras,  que foram postas em  simetria  no  altar,  dentro  de canecas de barro  e bilhas  vermelhas, de Estremoz. Acendeu-se a lâmpada da capela, e diante da gente  da horta que viera recolhidamente ver os preparos da igreja, a Escolástica leu  em voz  alta,  no seu  livro de missa,  a  ladainha —  que era  muito bom para  ganhar indulgências.  

Ao cair da noite os preparativos de receção da senhora fidalga estavam feitos;  a  residência  esfregada  e as louças brilhando nos  grandes armários  do  refeitório;  enormes camas de pau-santo  cobertas  do colchas de damascos  crespos, rescendendo à alfazema das gavetas e ao linho de Guimarães; painéis  de santas risonhas com mantos cor de laranja  e  maxilas  de carnívoro;  os  tamboretes em linha  mostrando a  pregaria  luzente;  e um  velho  sofá  de  medalhões de coiro ao fundo da sala, de cujas paredes pendiam, em molduras  castanhas, litografias representando a vida de Dona Inês. Na horta o mesmo  aspeto cuidado e festivo — moitas de hortênsias à entrada, ruas de loureiros e  chorões, caracoleiros e heras vestindo os muros, os tanques limpos, aparada a  relva do laranjal, dálias' escarlates ressaindo dos tufos verdes da contramina,  abóboras e melões de guarda em linha no telhado do chiqueiro, espantalhos  novos pelas figueiras...

—  Tudo  que nem um  brinco!  —  dizia  a  Escolástica à  vizinhança,  descrevendo as canseiras que tivera.

À noitinha apareceu padre  Nazaré,  chapéu  para  a  nuca,  todo  encalmado de  subir as escadas do balcão. Vinha mal do estômago, cheio de securas, a face  macilenta, ventre alto, os intestinos trovejando.

—  É dos pimentos — dizia —, é dos pimentos de conserva.  

Tinha  levado  o dia  metido em casa, em  mangas de  camisa  e chinelos,  com  calma. Fizera suão; com as queimadas os ares andavam turvos e as bestas sem  força para o trabalho.

Demais um desavergonhado de Selmes recusava-se a pagar a meia moeda que  lhe pedira aí pela esborralha. Corja de ladrões!  

Manuel do Cabo filosofou então:  

—  Que hoje em dia o mundo ia cada vez pior.  

Todos cuidando de atafulhar o bandulho, e o diabo que levasse o nosso amigo  e compadre.

Deleitava-se  intimamente o sacrista,  em sabendo  que alguém  caloteava  o  padre Nazaré, um fona incapaz de deitar osso a um cão.  

O padre passeava de uma banda para outra, mãos atrás das costas, um livor  bilioso na pele. E disse sem levantar a cabeça:

—  Sabe que a velha chega amanhã?  

—  Assim ouvi dizer.  

—  Fez aquilo?  

—  Todo o santo dia andei a rapariga a tirar estrume da igreja. Aquilo não é  dizermos que estava porca, senhores, mas tenho já visto malhadas de cabras  mais limpas. Teias d'aranha então, capazes de cobrir o mar. Enfim, ao menos  asseada,  ficou.  Tudo  varrido,  muito flor  nos altares,  azeite nas lâmpadas,  túnica  nova  no Senhor dos  Passos.  É  imagem pra  um  bocado de respeito.  Sempre lhe digo que Padre Eterno era homem do tamanho da torre de Beja,  se tinha parecenças com o seu filho. Alentado, palavra.  

—  Mais respeito com essas coisas, senhor Manuel do Cabo, mais respeito  com essas coisas — advertiu padre Nazaré, que tinha lobrigado a Escolástica  entre portas, à escuta.

E com um formidável arroto abriu a velha homilia sobre o temor de Deus e  os mistérios da Trindade — Padre, Filho e Espírito Santo.

—  Malditos pimentos — dizia —, malditos pimentos! Deus era o espírito  criador,  dotado  de todas as  virtudes e omnipotências.  Era o  infinitamente  bom,  o infinitamente  grande e o infinitamente  piedoso.  Para  impor-se à  limitada compreensão humana, fizera-se homem no seu filho, que padeceu e  morreu...

—  Tudo para nos remir e salvar!  — ajudou de dentro a Escolástica, que   sabia as prosas do Novo Catecismo de Doutrina.
  
—  É tal  e qual —  fez  padre Nazaré.  E vendo a  rapariga  de braços  arregaçados  pediu água,  para  lhos ver  de  perto.  Quando a  Escolástica  se  afastou para  encher o copo, o padre voltando-se disse:  —  É preciso dar  exemplos, homem!

—  Pois que dúvida que é — objetou o outro, puxando fogo ao cachimbo.

Os olhares  dos  dois  encontraram-se  luzindo com a  mesma  expressão de  patifaria.

Traduzindo então os pensamentos  do padre,  Manuel  do Cabo ia  dizendo  a  meia voz:

—  A fidalga chega à tardinha ao convento, com as criadas. Traz homens?

—  Não traz.

—  Melhor. Chega e janta. Depois visita a casa, os lagares, um bocado da  cerca. E salta na igreja sol-posto. Escuridão no altar-mor, nas capelas laterais, lâmpadas acesas,  um  sossego  de morte...   Faz a  sua  oração ao Senhor  dos  Passos, hem? E um de nós então, repara que...

Padre Nazaré tossiu,  para  abafar as palavras que  ia vomitar o  sacrista.  E  Manuel do Cabo desatou a rir. Com um jeito brusco o padre estendeu-lhe a  mão.

—  Até amanhã. Vou-me deitar, que me estou a sentir pior.  

Desceu as escadas do balcão,  enquanto  de pé no  portal o  sacrista  ficava  olhando com o seu risinho de marau inteligente.  

Ao entardecer do outro dia, a caleça entrou com grande estrépito na portada  da cerca. De chapéu na mão, os moços de lavoura, o hortelão, padre Nazaré  mais o sacrista adiantaram-se para cumprimentar a velha dama recém-chegada.  Esta desceu amparada ao braço  do padre e sem baixar a  cabeça  a ninguém.  Era quase octogenária e devia ter sido alta. E toda corcovada, com um vestido  de veludo preto e um capote debruado de peles, subiu a escada que levava ao  andar de cima.

—  Isto aqui é triste, pois não é, senhor padre?

—  Não,  minha rica  senhora,  não  é.  Em campo é do  melhor que tenho

visto. Muita verdura, boas águas, rica vista, enfim, um regalo de propriedade.

E depois, a vizinhança da casa do Senhor...

—  Sim, sim — disse a fidalga. E com inflexão piedosa: — É o que mais  consola.

A mesa estava posta. Pelas janelas abertas do refeitório, via-se morrer a tarde e  esmaecerem nas cristas as últimas tintas inefáveis do dia. Ao lado,  as noras  chiavam fazendo descer e subir sobre a  água das nascentes a  trança  dos  alcatruzes de barro.  Sob  cúpulas verdes de nogueiras,  amoreiras brancas  e  plátanos, a água jorrava nos tanques quadrados; os moços da horta faziam a  rega do  laranjal,  leiras de  pimentos  e  carrapatos;  no extenso pomar os  pêssegos, as maçãs e as romeiras rubras picavam a verdura de pontos vívidos,  de um tom sadio. O ar cristalizava numa serenidade contemplativa e corriam  brisas impregnadas do cheiro dos fenos.

A senhora fidalga tinha-se sentado à mesa, mais a governanta e padre Nazaré,  que a instâncias consentira tomar um caldo.

—  E tem rendas, a igreja?

—  Não, minha rica senhora, não tem. Os foros de trigo apenas dão para as  despesas do  culto; e  ainda  por  cima  mal  pagos...  Os paramentos  são uma  miséria  e o templo faz-se  em ruínas.  Uma  desgraça, minha  rica  senhora!  Desejando estávamos todos que a vossa Excelência chegasse. Temente a Deus  e boa cristã  como é,  a  senhora  fidalga pode bem acudir com  esmolas à  pobreza  dos santos  e  ao  desmantelamento  da  igreja.  Podia-se  até fazer  uma  festa, a modos um arraial, todos os anos. Mas eram precisos certos arranjos  que traziam despesa. Ora não havendo fundos... Vossa Excelência entende.  

—  Far-se-á o que for da vontade de Deus — disse a velha, abrindo o seu  grande leque da  China, preto,  com lantejoulas e pássaros exóticos.  Tinha  tirado o chapéu, bandós postiços desciam aos lados da marrafa, tapando-lhe  as orelhas.  Um pente  de tartaruga  posto ao alto dava-lhe à  cabeça  um  ar  ridículo. A testa, abaulada e saliente, punha como um abat-jour nos seus olhos  profundos, mortiços no fundo das órbitas. Recordava-se pouco do convento,  da disposição dos altares e do número de imagens. Se havia trono?

—  Um pequenino e dourado, todo velho.

—  E santos, senhor padre, e santinhos?

—  Isso muitos, minha rica senhora, muitos. Santa Rita, logo à entrada; S.  Pedro, à esquerda; a Senhora do Rosário...

—  Minha madrinha... — fez notar a governanta, dona papuda, de bigode.  Padre Nazaré cumprimentou, e foi continuando a enumerar:  

—  O Senhor dos Passos, imagem de muita virtude e milagres; Santa Isabel,  rainha.. 

A velha espirrou, e todos correram a fechar as janelas, temendo constipações.  Veio  a  pêlo falar-se de doenças produzidas  por  simples golpes de ar.  Na  opinião da  governanta,  toda  a  enfermidade nascia  de uma  constipação.  Quando tivera o antraz...

—  Vossa Excelência é que me dizem de saúde muito delicada  — disse o  padre para a fidalga, oferecendo-lhe um pêssego descascado.  

Ela contou então os seus achaques, consultara tudo, a homeopatia, a alopatia,  os  seus  diretores  espirituais —  que,  juntou, sendo os  médicos  do  espírito  podem também ser os médicos do corpo, como emissários de Deus — que  são.

—  Muito bem — disse untuosamente padre Nazaré —, muitíssimo bem.

—  Mas poucos  alívios, infelizmente.  —  Tinham feito a  peregrinação  a  Lourdes  no Verão passado,  por  conselho do padre Grainha.  Muito bonito  tudo, as águas de muita virtude, a Senhora rodeada de oferendas dos romeiros, e algumas ricas...  Citava  os presentes da  princesa  Amélia de Brandemburgo,  tocheiras de oiro maciço,  coroas de rubis,  cálices esmaltados  e custódias  góticas...  Tudo valendo milhões,  não faz ideia. Em certos  dias  da  semana,  Nossa Senhora aparecia aos enfermos na gruta, puxando-se um cordelinho...  Mesmo  assim,  passava  mais aliviada  de  Verão;  mas  pouco!  Tinham-lhe  aconselhado a estação no convento, e viera. Ai! Que Deus lhe perdoasse tão  grande ofensa...  mas  tinha  pouca  fé.  A  idade era  já grande obstáculo  a  uma  cura completa.

—  Todavia — acudiu servilmente a governanta  —, sendo da vontade do  Senhor. . Ela bem lhe pedia!

—  E todos  do coração imploramos  —  disse  com austeridade o padre,  enchendo o cálice de porto.  —  E levantando-se dava  boas esperanças,  dizendo a sua grande fé nos ares, nas águas, que as havia férreas, muito perto.  Sempre era outra coisa a vida no campo, outros hábitos, muito sossego... —  Assim concluiu ele com um sorriso, passando o guardanapo pela boca oleosa  dos molhos —, permita Vossa Excelência que eu beba antecipadamente a um  próximo e jucundo restabelecimento.

—  Muito agradecida, senhor padre, muito agradecida e que Deus o oiça —  dizia a velha, molhando os beiços nos dois dedos de Lacrima Christi, que a  governanta  lhe  lançara  no  copo.  E mostrou desejos  de conhecer as terras  próximas —  a  aldeia, como  ela  dizia.  Se  havia fé,  gente  de  certa  ordem,  fortunas..  Padre Nazaré dava pormenores. Nos campos a fé não abundava já,  como no tempo dos frades. Tudo se ia inficionando da lepra das cidades, não  havendo barbeirola que não lesse os jornais e não pregasse heresias por essas  vendas. Jogo,  má vontade ao trabalho além disso.  Não  compareciam à  confissão, não iam à missa. . — E fazendo um gesto beato:  

—  Pervertidos — dizia —, pervertidos! Nas mulheres, mesmo assim, não  era tanto. O coração da mulher é mais entranhável à religião e à fé. De resto,  nas escolas não ensinavam orações. Conhecia rapazes que nem o padre-nosso  diziam de cor.

—  Santo nome de Jesus! — clamava a governanta, com um fervor intenso  nos olhos..   vinho do  Porto e devoção.  A senhora  fidalga lembrou prédicas  aos domingos,  depois  da  missa,  sabatinas de doutrina  para  os  rapazes,  com  um fato novo por mês ao que melhor soubesse as rezas.

Punha as mãos engelhadas como implorando clemência, de olhos em alvo ia  resmungando:

—  Não  sei  onde  isto  há  de  chegar,  meu Deus,  não sei onde  isto  há  de  chegar!

A governanta atribuía as secas, as guerras, as fomes e as epidemias ao estado  impiedoso das almas.  Que isto de não comungar era  medonho...  Diz que  apareciam as alminhas negras, com chavelhos, aos berros.  

—  Credo, mulher, que até faz arrepiar — increpara a fidalgona, fazendo a  cruz nos seios chuchados.

E ergueu-se, tomando o braço do padre Nazaré.  

—  Dê-se ao incômodo de mostrar a  cerca,  senhor padre.  —  Vagarosamente desceram a escadaria de pedra, toda coberta de caracoleiros e  heras, que vinha abrir em leque ao alto de uma rua de loureiros e eloendros.  

Manuel do Cabo albardava o Ginaia, depois de jantar brutalmente na cozinha,  mais o hortelão. Quando o padre passou rente, o sacrista perguntou-lhe:  

—  Então?  

—  Dentro de um mês está pago em dia — disse o outro, e foi andando.  

A velha simpatizara de vez com o padre Nazaré, achando-lhe a compostura  grave e a palavra cristã. Somente lhe via um defeito — era talvez um pouco  campónio,  mãos grossas e sem  anéis, uma rugosidade  de pele  que dava  contactos irritantes.

—  Enfim — dizia a governanta —, na falta de outro...  

Padre Nazaré, pelo seu turno, andava regalado e contente.  

Vinha almoçar e jantar todos os dias,  grandes cuidados com as camisas,  e  barbeava-se  a  miúdo. Nos  primeiros dias  tivera  contrariedades.  Aos  seus  instintos de agricultor brutal repugnavam  as branduras da  catequese,  os  melífluos  conselhos  ditos  entre  citações de Santo Agostinho,  João  Crisóstomo, Carlos  Barromeu e Basílio, autores porque,  valha  a  verdade,  passara a correr, havia bons anos, no seminário. Afizera-se, desde que residia  na  vila,  a  uma  vida  de episódios  rudes,  vindimas,  ceifas e  agiotagem  sistemática. O  seu gênio  violento dava-lhe  intermitências de cólera  biliosa,  durante as quais rogava pragas e dizia obscenidade. Sabia o valor do dinheiro,  e conforme usava  dizer —  poucos o enganavam.  Adorava  o  doce.  Em  pândegas  de amigos,  porém,  gozava  fama  de gracioso e sabia  beber.  Como  pregador era falado nas terras próximas — boa voz, fazendo chorar na Paixão,  gesto dramático e uma  ênfase  pouco  seguida  em geral nos  púlpitos da  província.

Chico  Praça,  poeta  da  vila  e o que mandava  correspondências  ao Bejense,  costumava dizer na loja do Burjaca, aos proprietários que ali iam palestrar, às  noites:

—  Para coro o padre José Pereira, mas no púlpito o Nazaré.  

E todos:

—  É pena que se não dedique!

Eram suculentos e escolhidos os almoços e jantares da senhora fidalga, vinhos  de feição,  loiças,  um  ar de festa,  natas e doçarias de Lisboa. Padre Nazaré  gostava, e vinha dizer para a loja, aos proprietários:  

—  Bela pastelaria hoje!...  

Ou então, arrotando com pompa:  

—  Diabo! Pois fizeram-me mal as perdizes trufadas.  

Aquelas bazófias excitaram ciúmes na  terra;  muitos diziam  com um  riso  pérfido:

—  O mariola achou a ama ao seu gosto!  

E alguns, cuspindo:  

—  Ora o estupor!. .

Pouco a  pouco,  padre Nazaré foi-se  afazendo ao novo estado,  lia  o Fios  Sanctorum  em casa  para  alardear de  instruído,  limava  as unhas  e andava  gordo.  Na  Feira  de Évora,  trocou a  mula  por uma  égua  castanha, comprou  arreios  vistosos e  estribos de ferro. Ia  todas  as manhãs  dizer missa ao  convento e ouvir a velha de confissão. À medida que ascendia no espírito da  fidalga,  tratava  de complicar os  regulamentos da  devoção,  dificultando a  entrada  no reino  dos  Céus e pintando Deus como um  rábula  exigente,  que  embirra  com as comidas  dos  seus fiéis,  e  com as palavras e vestidos  das  mulheres.  Segundo ele tudo era  pecado;  Deus vigiava das nuvens  a  humanidade;  a  vida era  simplesmente a  antecâmara  do  grande reino da  luz,  onde  cada  mortal mal tinha  tempo  para  se  lavar das pústulas malignas  originadas da carne, e transmitidas de Adão. E recomendava à velha as ásperas  penitências que alquebram, horas e horas de joelhos ante os altares, desfiando  rosários bentos  e lendo com voz  lamentosa  as biografias dos  mártires  e  doutores da Igreja.

Este regímen alterou a saúde da velha e ligou-a pelo terror cada vez mais ao  padre.

—  Só me sinto bem, ouvindo aquele santo! — dizia ela com um escarro na goela. — E com inflexão de grande medo:

—  Oh! não me desampare com os seus conselhos, não me desampare com  os seus conselhos!

De vez em quando, Manuel do Cabo interrogava padre Nazaré:  

—  Então o homem chora ou não chora?  

—  Mais tarde. Você entende.  

—  Pois até hoje, meu rico, nem lágrima.  

—  Com água quente, é que é. Você entende.  

—  Só se for isso. A fria não dá resultado.  

Depois com ares profundos:  

—  Que as lágrimas são mornas. Sendo suor, já era outra coisa. Há suores  frios! Andava mais alegre, recebera três meses de ordenado e um presente de  pêssegos,  dos melhores.  E ao entrar na  vila,  sobre o Ginaia,  cantarolava  brejeiramente  lançando  chufas às  lavadeira  —  suas  maganas,  com  quem  tinham dormido a  noite  passada? Que lavassem  as pernas,  grandessíssimas  porcas!

As noites  eram abrasadas e eternas.  Não bulia  folha  na  horta,  os moços do  campo  dormiam ao relento  sobre as mantas,  e tendo por  travesseiro  as  albardas dos jumentos.  Nos aposentos da  fidalga somente,  as  janelas  permaneciam fechadas, não apanhasse Sua Excelência alguma constipação. As  casas de cima, de baixos  tetos abobadados e sobrados carunchentos, antigas  celas de frades  modificadas para  residência  profana,  constituíam  verdadeiras  estufas no Verão.

Nos  corredores  circulava  um  bafo morno,  impregnado  de bafio,  alfazema  velha e incenso — o que recrudescia de um modo terrível a asma da beata.  Toda a noite a governanta levava a abaná-la com ventarolas do tamanho de  sombrinhas e a enrolar-lhe em papéis de seda enormes cigarros de figueira-do-inferno, ao som de intermináveis rezas e custosas promessas ao Senhor dos  Passos.  Porque era  agora  cega a  fé da  velhona,  na  sacrossanta  imagem do  Redentor.  Contara-lhe o padre a  história  do convento,  sua  antiguidade e  virtudes.  Em  tempos  antigos,  os  frades  vendiam uma  espécie  de licor,  que  curava  da  peste e punha  saradas as úlceras mais  daninhas.  Rezavam as  crónicas do convento,  de um  almirante do mar das índias,  da  casa  dos  senhores  da  Vidigueira,  que,  voltando de longínquos  países  coberto de um  vergonhoso mal, se curara de pronto, tomando o benéfico elixir. E junto ao  tanque de pedra tinha aparecido ao venerável padre frei Vicente das Sagradas  Angústias, ancião que rasgava suas carnes a golpes de azorrague — a figura de  Jesus Cristo,  feito homem e cheio  de Espírito  Santo,  vertendo sacratíssimo  sangue das suas feridas, coroado de espinhos e clamando:

—  Faz penitência, Vicente, faz penitência, que serás comigo no reino dos  Céus .. 

Ainda agora  se mostrava  na  terceira lájea  do  tanque, ao  pé do cipreste,  o  vestígio da pegada do Salvador do Mundo.

A velha derretia-se em choro ouvindo tais prodígios, batia nos peitos cheia de  uma convicção fanática, e bradando em guinchos de possessa:

—  Oh misericordioso  Jesus,  que eu não sou  digna!  Oh misericordioso  Jesus,  que eu não sou digna!  —  enquanto  pelos  esconderijos  a  governanta  manducava sofregamente, aos ladrilhos, covilhetes e covilhetes de marmelada.  O episódio do choro de sangue deu, como nenhum outro, insônias e delíquios  à pobre mulher.

—  Há coisas — aventurou ela de olhos baixos, quando certa manhã ouviu  narrar o milagre —, há coisas que só vistas.

Padre Nazaré não deu resposta, mas à tarde trouxe nos alforges a Crônica dos  Capuchos, com um sinal na passagem lida pelo sacristão.

—  Eu não duvidei,  senhor padre —  dizia  a  velha.  —  Ora  Deus nos  perdoe! Assim minha alma se salve, em como eu...

E no dia  seguinte,  a  título  de remissão dos seus pecados,  entregou quatro  libras ao padre Nazaré,  para  esmolas e missas.  Em Setembro os  males da  velha agravaram-se mais, os ataques de asma repetiam-se, a tosse era profunda  e entrecortada  de pieira  estridulosa,  que lhe resfolegava  nas cavernas dos  pulmões.  Uma  noite vieram chamar o padre à  vila  a  toda  a  pressa.  A velha  estava pior, lançara cóleras, falava em confessar-se...   

Padre Nazaré mandou acordar o sacristão e disse-lhe:

—  Venha comigo.  

Cavalgaram as alimárias caminho do convento, e ao verem branquejar à lua as  paredes da  cerca, pelos  claros  da  folhagem, o confessor  da  senhora  fidalga  disse ao seu acólito estas cinco palavras:  

—  Água quente para esta noite.

Era um ataque dos maiores, com silvos e espasmos prolongados. No quarto  abafava-se na exalação das mostarda e do estramônio.  

Em saia branca e chinelos, a governanta fazia cigarros e preparava banhos.  

E ante  cada  retábulo  de  santa  ou asceta  ardiam  velas e lamparinas. Padre  Nazaré conhecia  um  pouco a  moléstia;  tivera  uma  irmã que sofrera  dela  longos anos. O  seu  primeiro cuidado foi  mandar  abrir as janelas.  para  restabelecer a corrente de ar. A velha jazia numa poltrona ao pé da cama, o  escarrador  ao lado,  tronco um  pouco  inclinado para  a  frente,  o hausto  arquejante.

—  Então como se acha a nossa doente? — perguntou carinhosamente o  padre, curvando-se para ela.

A velha mal podia falar e fez um gesto vago.  

—  Ouça — disse o padre à governanta —, deite-lhe sinapismos no peito e  nas costas.

—  Já lá os tem — disse a outra, fazendo-se doutora.  

—  Bem.  Um vomitório então. Água morna  aos  copos;  façam-lhe depois  cócegas com uma pena, nas campainhas.

E em voz alta, para que a fidalga ouvisse:  

—  Mandaram acender a lâmpada do Senhor dos Passos?  

—  Há que tempos! — disse a governanta.  

A esse  tempo aquecia  Manuel  do Cabo a  cafeteirinha de água  na cozinha,  disfarçadamente.  E,  quando a  viu ferver em cachões,  desceu à  igreja, pela  escada do coro. Havia um silêncio lúgubre, trevas densíssimas no santuário e  piar  de corujas nas ventanas da  torre.  Junto  de uma  fresta  gradeada, à  esquerda,  abrindo para  a  horta,  a  folhagem de  um  chorão  gigantesco fazia  marulhos  confusos,  de maré que sobe.  Fora,  nos  plátanos  da  ribeira,  os  rouxinóis conspiravam, e réstias  de lua,  brancas e vagas,  entravam pelas  janelas do coro, pondo luzernas no lajedo das sepulturas rasas.

Manuel  do Cabo desceu de mansinho a  escada  de  tijolo  carcomido,  que  caracolando vinha abrir-se  por  baixo do púlpito.  Os arcos  das capelas  cortavam nos muros  alvacentos da  igreja  enormes bocas escancaradas,  em  cuja  goela as  linhas das imagens  se  esboçavam,  sem relevo. Ouvia-se o  roer  das ratazanas nos madeiramentos carunchosos,  e o rumorejo do  chorão nas  gradarias  da  fresta.  Manuel do  Cabo  parou  diante da  capela  do  Senhor  dos  Passos,  à  escuta.  Nalgum  corredor distante batia  uma  porta.  Havia  conversinhas aos  cantos,  que ora  se afastavam, ora  renasciam.  A boca  do  camarim enramado de cipreste, o clarão noctâmbulo da lâmpada deixava ver  um pedaço de cruz negra, e mais na penumbra a lívida cabeça desgrenhada,  que pendia no peito com um desalento de morte. Tudo o mais era confuso,  acumulado e movediço, aparecendo nas trevas com projeções colossais, cheias  de pavor. O vento vinha a espaços, como se fora um hálito, fazer bruxulear a  luz — e despregavam-se então dos ângulos formidáveis, desde a abóbada até  ao pavimento, massas de espectros, que ante o sacrário deserto vinham dançar  sabbats alucinados.

Para falar franco, Manuel do Cabo não estava muito à sua vontade, não. Medo  não era bem, realmente. E relanceando a vista, com a cafeteira a escaldar-lhe  nas mãos, disse para dentro de si:

—  Olhem que belo sítio para a gente apanhar um tiro...

Veio-lhe à  lembrança  o Estragado,  que,  por  duas vezes,  contra ele pusera  à  cara a espingarda, e lhe prometera muito cedo notícias frescas..  E o Chico da  Aroeira, que andava fugido de soldado e lhe provara do cacete, de uma vez  em que fora apanhado mais a Escolástica, no palheiro.

—  Além disso — pensava ele — isto cheira a patifaria que tresanda.

Olhou à roda, esteve quase a voltar para trás. Mas que diabo!.. . Era uma vez.  Se a coisa pegasse, ninguém perdia com isso, aumentava-se a fé no povo —  que era pouca, com seiscentos diabos. Não pegando, era como se nada tivesse  havido. E os proventos a gozar, o asseio da igreja, as procissões..  Até era bom  para a religião, bem pensado. Andaria pago à hora, boas gorjetas, ali estimado  como um rei. E tudo por uma gotinha de água quente. Ora adeus!  

Subiu as escadas de mansinho, com a cafeteira.  

Logo à entrada do camarim, deu de cara com um vulto. O Estragado. Santo  Deus! Entornou a  água a  ferver pelas mãos.  O  vulto olhava-o imóvel,  todo  barbado. Era  um  judeu da  quadrilha, pintado na  parede. Manuel  do Cabo  resfolegou com força, e foi sempre apalpando — um judeu, não havia dúvida.  Diabo de peça!  A gente às vezes  até está parvo,  senhores.  E entrou a  desaparafusar a cabeça do santo. O sino deu três horas — às três e meia, no  Verão,  é quase  dia.  Nas  lájeas,  a  luzerna do luar ia-se  pouco a  pouco  apagando. Os cães da horta soltavam uivos.

—  Cheira a defuntos que nem diabo! — resmungou Manuel do Cabo. E  na escavação interior da cabeçorra chagada ia deitando água quente.  

—  Assim também eu faço milagre, senhor padre! — trauteava o mariola, já  tranquilo.

Às quatro horas, padre Nazaré veio ter com ele.  

—  Já?

—  Poucochinho, mas promete.  

—  Bem. Vamos dizer missa mesmo no quarto da velha.  

—  Então o estafermo morre ou não morre?  

—  Mais respeito, homem! Podem ouvir.  

—  Vamos a saber?  

—  Está mais aliviada. Dormita.  

—  Temos dinheiro por um sarilho, compadre.  

—  Venha daí.  

Sentindo-se mal, a fidalga quisera confessar-se, resolução que em coisa alguma  transtornava os planos do padre Nazaré. Umas poucas de vezes a governanta,  aflita pelo carácter grave que a coisa parecia ir tomando, chamara o confessor  de parte.

—  Que se havia perigo, seria bom chamar o médico, mandar um telegrama  para Lisboa ao menino Tristão, falar à senhora em testamento. Ela tinha um  medo... não queria responsabilidades; era uma serva antiga, mais de trinta anos  de casa, quase uma pessoa de família. E com insistência voltava ao tabelião,  dizendo casos de pessoas que se tinham ido sem testamento. A D. Mônica, tia  dos Palhas, havia de conhecer; o doutor Mendonça, dos Próprios Nacionais,  sem herdeiros e podre de rico,  que ela  servira  dez anos, ficando por fim a  chuchar no dedo...  Que não dizia  aquilo por  interesse,  mas,  enfim,  era  um  descargo de consciência.  Na  penumbra  do  corredor,  os seus olhos  luziam  cobiçosos e a sua voz saía baixa, breve, quase sibilante.

—  Havia  muita  prata,  roupas,  três baús  de loiças  do Tapão.  Casa  antiga.  Lembrava-se de três governadores da índia, e uma quantidade de arcebispos  na família. Ah, lá isso... Nobreza da melhor. E, pondo a mão febril no braço  do padre, voltava à carga:

—  Se havia perigo... Nada, nada de responsabilidades!  

Por seu lado,  padre Nazaré certificava  que não havia  motivos  para  espalhafatos.  Um ataque mais cruel,  eis tudo.  Que ele  sabia  proceder como  homem e como sacerdote. E punha a mão aberta no peito, na atitude austera  de um iluminado.

—  Como homem e como sacerdote,  D. Doroteia! —  dizia  com força,  espaçando as palavras.  Passara  muito  na  vida, para  estar precavido contra  eventualidades de qualquer ordem. De resto, afirmava com intenção, não lhe  tinha  vindo  a  ideia  do testamento,  servia as  pessoas desinteressadamente,  como lho ditava o seu coração, porque sabia ser amigo.  

E enfático:  

—  Amicus certus in re incerta ..  D. Doroteia!  

—  Ah, em desinteresse não está o senhor padre mais rico do que eu, há de  perdoar. Credo! Os modos de dizer as coisas! É perguntar à senhora fidalga,  ao menino Tristão e a todos de casa, quem eu sou e de quanto por esta gente  tenho sido capaz. Olhe que conheço a família há muitos anos. Não é o senhor  que me dá lições a mim.

E, numa vertigem de narrativas para que não tinha loquela avonde, punha em  relevo a  sua  dedicação,  o que  aturava  pelas doenças dos senhores,  o que  merecera de confiança e estima em toda uma vida de serviços sem preço, o  seu amor pelas coisas da casa, e o trabalho com os gatos e cães da senhora  fidalga, que lá por animaizinhos era cega — não faz ideia!  

E protestando, contando, tentando fazer-se valer, andava à roda febrilmente,  com uma  gula  planturosa  de avara,  as mãos  espalmadas à  altura  dos  olhos,   onde luziam anéis chinfrins de meia libra.  

Padre Nazaré nem escutava, mas dizia de vez em quando, para acalmá-la:  

—  Eu bem conheço  isso,  D. Doroteia,  bem  conheço isso!  De resto,  a  senhora fidalga fizera-o ciente de tudo. Quantas vezes lhe tinha ouvido — que  a Doroteia com ser sua governanta não perdia os foros de boa amiga! — Ah,  era tida em alta conta, creia isto. E por toda a gente, palavra de honra! — que  o não dizia por ela estar presente.

—  Demais — acrescentava, embaindo-a, com a voz ejaculada e surda, de  uma  discrição culposa,  com que no  confessionário arrancava  revelações  picantes  às  boas moças do  campo apavoradas do inferno —,  demais,  quem  lhe diz à senhora que no testamento da fidalga não há um legadozito..   

E vendo-a suspensa, o riso parvo de quem apanhou a sorte, sublinhava umas  poucas de vezes o alvitre proposto, repetindo:

—  Sim, quem lhe diz à senhora?..   

—  Quê? — disse a Doroteia quase a abraçá-lo, com um bocado de rolo a  despregar-se-lhe da cuia. — O senhor padre sabe?  

—  Perdão — atalhou logo padre Nazaré —, eu não disse...

E,  enquanto a  outra  ficava  no  corredor  deslumbrada,  entrou no quarto da  velha com ares de levita vergado à imposição de um jumento, ombros altos,  um jeito vago de mãos e dizendo com um riso ambíguo:  

—  Segredos da confissão, D. Doroteia, segredos da confissão!  

Ficara satisfeito com o manejo político que tinha posto em prática. Apre! que  estivera quase a acarretar o ódio da governanta — uma zorra que a sabia toda!  E devia ter sido bem boa! Mas estava velha, quando não..  E, mais tranquilo,  dizia para consigo:

—  Deixá-la  do nosso lado.  Não  se perde nada.  Tinham já  acabado de  armar o quarto da velha, para a cerimônia da comunhão. em frente do leito e  na mesa improvisada em altar, um crucifixo enorme, velho marfim de lividez  polida, enchia a parede do fundo, que uma colcha de damasco azul, grandes  relevos  fulvos,  vestia de tons doces,  ouro  e céu, à  luz dos castiçais e entre  tufos  de renda,  dos grandes  cortinados pendentes.  À  cabeceira  da  cama  e  numa baixa  poltrona, ampla  como um  divã,  arquejava  a  doente,  entre  almofadas de todos  os  tamanhos,  o escapulário  branco de  Santa  Clara  na  cabeça,  destacando  num  fundo de  estampas devotas e rosários  tocados  em  mantos de várias autoridades celestes.

Quando o padre entrou, a velha tinha os olhos fechados e as mãos errantes  nos braços da poltrona. O escavado da face denotava intensa fadiga, e haustos  fundos,  arrastados,  difíceis  e terminando em  silvo, davam-lhe  um  jogo  angustiado ao cavername do peito opresso. Ele andava nos bicos dos pés para  não fazer ruído;  mesmo assim,  porém,  as  suas botas  novas rangiam,  com  ruídos impertinentes  de janotinha de província.  E,  sentando-se  junto à  poltrona da velha, tocou-lhe na mão com os seus dois dedos suados. Cortara  o cabelo de fresco, à escovinha, e aos cantos da testa alongavam-se para trás,  lustrosos de excreção  gordurenta  e destacando no  luzidio dos cabelos,  dois  crescentes de calva  precoce,  onde  ressaltavam relevos complicados de veias.  Visto  de perfil era  um  pouco adunco,  sobrancelha  cerrada  e tons azuis de  barba espessa pondo-lhe no focinho como que as linhas de um açaimo. Tinha  olhos  grandes  e bem  fendidos,  globo um  pouco injetado,  estourando para  diante,  e um  raio sagaz de pupila  que se  lubrificava  todo ante  as nudezas  trigueiras e túrgidas  das raparigas da  monda.  Procurando fazer adocicada  a  rude voz de que dispunha, disse para a fidalga, de olhos baixos:

—  E agora? Melhorzinha?

A velha ergueu a mão para fazer um gesto. E quase em segredo disse:

—  Assim...

—  Pois visto que se sente mais aliviada vamos à confissão, para rezarmos  depois a oração do Cireneu, que é infalível, infalível!

Dava  explicações  sobre a  oração do Cireneu.  Tinha  lido na  Crônica  dos Capuchos, de curas  miraculosas obtidas pela  reza em  triplicado  de certa  oração mandada ao convento por S. Simão Cireneu, residente não se sabia em  que parte,  e a  instâncias  do nosso venerável  prior frei  António  da  nossa  Senhora,  para  uso de  grande  cópia  de enfermos  dos  arredores.  Para  que  da  recitação  da  prece  pudessem  tirar-se  seguros  resultados,  urgia  fazê-la  recitar  em voz alta e ainda de manhã, por três pessoas ao mesmo tempo, sendo duas  fêmeas e um macho, todas de crucifixo alçado e prostradas em joelhos ante a  hóstia consagrada.

A doente por cuja intenção se fizesse a reza seguraria o sudário, enquanto a  espaços um padre lhe iria chegando aos lábios a esponja embebida em vinagre,  arremedo do que fora praticado com Jesus Cristo, durante a agonia.  

Ouvindo a  última  palavra,  a  velha  tremia  sem responder.  Mesmo assim  macerada de rezas e práticas devotas, sentia no íntimo o terror invencível da  morte.

Era  verdade  que as  almas,  escapando-se  dos corpos  como perfumes  de  ânforas,  em ondulações suaves  iam subindo aos  domínios  da  luz, a  cristalizarem-se  na  eterna  graça, sob a  unção dos  trenos  e  no revérbero da  imortal pureza. Mas o corpo que ela podia palpar e sentir, o que tinha dores,  anseios,  cansaços,  apetites e suores  fétidos,  esse que ela  facultara  nos seus  tempos de dama  do paço às excitações de  récua,  do senhor D.  Miguel  e os  seus companheiros,  e nos minuetes  langorosos  se  tinha requebrado com  meneios de afetada  galantaria,  na tenebrosa  algidez do  sepulcro  buliria  todo  negro, nessa viscosidade da podridão sinistra, que é a última infâmia da carne!

Vendo-a inerte e muda, padre Nazaré tratava de aclarar-lhe bem as origens da  oração proposta, no intento de lhe extinguir os terrores e as sombras funestas.  Simão Cireneu fora o fiel amigo que nas ruas da amargura consentira tomar  sobre os  seus ombros  robustos a cruz,  sob que o Cristo  vergava,  no trajeto  para o suplício. Ele conhecera passo a passo os transes da Paixão, tinha falado  com o Salvador, participado da sua angústia e chorado das suas lágrimas. Era  o grande confidente do Filho de Deus,  e tinha  sido ele o autor  da  benéfica  oração, que até grandes já tinha ressuscitado. Era forçoso pois experimentar,  para bem cumprir os preceitos do Senhor.

—  Pois sim, sim — dizia a velha afinal.  

E, pondo as mãos, balbuciava a confissão.  

Havia já sol quando a oração do Cireneu acabou. Fatigada por toda uma noite  de sofrimentos, e sob o predomínio moral da complicada reza, a velha tinha   conseguido repousar um  pouco.  Abafara-se-lhe  mais  a  pieira,  e a  respiração  readquiria-lhe um ritmo plácido. A Escolástica, avisada por Manuel do Cabo,  tinha vindo logo de manhã com o seu xale de ramos e lenço de seda escarlate,  o livro de missa  na  algibeira  da  saia.  Em ação  de graças pelas melhoras da  senhora,  padre Nazaré celebrou missa  desse  dia  na  capela  do Senhor  dos  Passos, a que vieram assistir todos os homens e mulheres do convento.  

Terminado  o sacrifício,  enquanto  Manuel  do Cabo  ia  buscar a  um  canto o apagador,  o padre,  erguendo a  voz,  pediu uma  Estação pelo inteiro  restabelecimento  da  fidalga,  de  quem fez o panegírico  em grandíloquas  palavras  —  mãe de  raras virtudes,  boa protetora  dos  interesses  de Deus e  benemérita da graça divina.

E todos rezaram a meia voz a Estação pedida, enquanto, abrasada em fervores  místicos, a governanta unia a face às lájeas da capela, desatando em prantos e  suspiros, toda de preto e mordeduras de pulgas no pescoço tísico.  

Aquela exaltação comovera a Escolástica, que disse para a mulher do caseiro:

—  Se não há de ter amor à fidalga, vivendo há uma quantia d'anos na sua  companhia!

E a outra, arrebatando nas unhas um piolho que lobrigara na trunfa do filho,  durante a reza:

—  Com uma certeza — apoiava —, com uma certeza!  

Mal o  padre saiu da  igreja,  a  Escolástica ergueu-se para ir  fazer a  oração  ao  camarim do  Senhor dos Passos,  a  depor-lhe no sacratíssimo pé  o beijo  convencional.

Subiu a escada com o livro de missa nas mãos, de olhos baixos, as mulheres  da  horta  atrás de si.  E,  ajoelhando todas  à  roda  da  imagem,  entoaram a  ladainha, porque a Escolástica tinha grande paixão.

Era  a  filha  do sacrista  quem entoava  os  louvores ou vozes;  todas as outras  mulheres respondiam atabalhoadamente.

—  Ora, á pornobis!  

E ao Agnus Dei, como as burras se enganassem, a Escolástica repreendeu-as  com a sua voz birrenta, de sabichona. Então o filho do caseiro, que andava à  roda bulindo, erguendo a túnica da imagem e dando-lhe puxões na guedelha,  gritou de repente com dedo estendido para a face do ídolo:  

—  Mãe, sangue!  

A caseira, que estava de lado, alongou um pouco a cabeça na direção em que o  rapaz apontava, e pôde ver uma lagrimazinha vermelha, que, caída da pálpebra  do Senhor, vinha pela face lívida fazendo um traço de sangue miraculoso.  

A pobre mulher nem pôde dar palavra, levou as mãos à barriga abaulada por  uma  prenchez medonha,  revirou os olhos e caiu  para  trás barafustando.  Ao  mesmo tempo, a Escolástica, que da pálpebra do seu lado vira cair também a  sua gotinha de sangue, abalou pelas escadas, largando o livro e fazendo cair a  rapariga do caseiro. E, possessa, berrava igreja abaixo em direitura à horta —  que acudissem, aqui-del-rei, não era coisa boa, ia acabar-se o mundo!  Foi  o sacrista  quem primeiro  acudiu  à  berreira,  e picando  o  charuto para  a  cigarrada de ripanço:

—  Qual acabar-se  o mundo,  nem qual diabo!  O  mundo não dá  fim,  enquanto  houver santos  que façam milagres e desavergonhadas que creiam  neles.

E numa expressão de riso cruel, tomando assento na borda do tanque:  

—  Malandros e bêbedas! É o que há.  

Ao meio-dia divulgava-se em Vila Alva o milagre, e a população em chusma,  num burburinho de cortiço,  abandonava  a  terreola caminho do convento,  toda inflamada  em fanatismos e salmejando orações  e ladainhas.  À medida  que se adiantavam na estrada, os magotes reproduziam-se e aumentavam, pelo  concurso da gente que iam encontrando a trabalhar nas fazendas. As beatas  ricas tinham aproveitado a ocasião para fazer toldar os seus carros alentejanos,  puxados  a  mulas e  cobertos  de um  toldo  primitivo,  de lona  e  caniçados.  Algumas em jumentos,  de cadeirinha, chouteavam adornadas de cordões de  oiro,  mitenes de retrós  nas mãos ósseas,  e leques hereditários pintados  de  escudeiros e reis. As do Silva, um ricaço da terra, levavam mantas de lã azul,  de borlinhas,  pregadas em escapulário,  com ganchos representando  malmequeres. E semelhante luxo fazia sensação na romana.  

Chico Praça, com risos céticos de homem que lê, fora também no machinho  do pai inspirar-se e gozar um bocado daquela saloiada ignorante. E, espetado  num charuto de vinte e cinco,  fumo de merino  enorme no coco  dos  domingos, manta verde com perinhas bordadas, calça curta arregaçando sobre  os  elásticos das botorras e o atilho da  ceroula  à  mostra,  cumprimentava  fidalgamente os ranchos, procurando informar-se do modo de ver geral acerca  do prodígio.  As raparigas voltavam-lhe a  cara  ouvindo-o escarnecer dos  santos.

—  Judeus!  —  diziam.  E  umas para  as outras, como se falassem de  uma  universidade:

—  É o que eles vão aprender a Beja!  

Atrás da  chusma  arrastava-se  cacarejando a  gente pobre,  mendigas velhas e  descalças, fisionomias de cera abrasadas por esses olhos chamejantes do meio-dia,  em que se  repinta  em clarões a  efervescência das  índoles  cálidas  e  insofridas;  velhos pastores inválidos,  cobertos  de peles  safadas,  polainas de  feltro, cajados nodosos, e um anguloso seco de múmias, e rapariguitas rotas,  vivendo do rolão córneo das esmolas e que a  lama  cobria  de costas  pardacentas.  E todos,  numa  passividade receosa, eternos  vergados à penúria que envilece,  lá  iam custosamente,  parando nos cotovelos  da  estrada  para  retalharem os comentários  sugeridos pelo caso,  ou recomeçar com voz  quebrada o terço lúgubre da penitência. Muitas mulheres levavam azeite para  as lâmpadas do convento,  ofertas de pão cozido,  fogaças de  galinhas e  borregos  novos. E corria  em  segredo que as Silvas  tencionavam oferecer  ramos de penas comprados em Setúbal, nos banhos do ano passado.  

Porque no grosso beatério da vila a surpresa do milagre vinha de feição, com  os seus embevecimentos místicos e esse brumoso da legenda que dá febre às  imaginações sobreexcitadas. Havia duas semanas que escasseava tema para as  parlendas de soalheiro. O último caso de aborto tivera lugar havia já um mês  — velharia em que mal se falava já. E em casa das Silvas e na loja do Burjaca,  às noites, arrotando sobre a azia do ensopado das ceias, a boa gente lamentava  num fundo de saudade e desespero:

—  Maldita terra! Nem há em que se converse...  

O mulherio acreditava fanaticamente no sangue do Senhor do convento, uma  lição a esses hereges que vinham do estudo falando mal dos santos e rindo da  confissão e da  missa. Deus não era  pois  uma  palavra  vã!  Vivia, amando  sempre a  humanidade e chorando pelas suas  loucuras e  crimes,  no fundo melancólico  de um  templo, que  a  guerra  civil  profanara  e derruíra,  nas  suas  contorções de bacante.  Iam  começar os  bons  tempos  de fé absorvente e  sincera,  em que as almas  vestem a  gaze da  inocência  para  os  esponsais da  bem-aventurança. Então, por esses campos  verdejantes,  no fundo desses  olivais contemplativos ou sobre as colinas e charnecas em que ora  esbravejavam, selváticas,  piorneiros  e tojais,  erguer-se-iam de novo os  eremitérios alvinitentes, cruz erguida nas fachadas, um cordão de tílias no adro  e a porta aberta como refúgio aos vergastados pela miséria, ou pelo desalento. Viria o bom tempo das procissões do campo e das festas a órgãos, em que as  vozes dos frades entoariam a missa num êxtase seráfico, do fundo dos seus  capuzes benditos. E essa azinhaga lúgubre que conduzia às ruínas, o claustro  transfeito em lagar de azeite e as celas aproveitadas para residência de gente  mundana regurgitariam  novamente  de fradinhos  gordos, olho doce e dentes  gulosos, que em tardes de primavera, das grades do coro, lançassem cantigas  brejeiras às roliças lavradoras ingurgitadas  de desejo  e devoção erótica  —  como noutro tempo. Muitas velhas ainda eram do tempo dos frades; algumas  mesmo  tinham dado  guarida  a  guardiões  varrascos,  por noites chuvosas,  enquanto  os  maridos  na  adega ressonavam espapaçados no  vinho dessas  bebedeiras do Alentejo  que chegam a  durar semanas.  E,  voltadas para  o  passado em que se reviam frescalhonas e vivas, as pobres davam suspiros de  mágoa, lamentando a falta de crenças de hoje, e batendo com as cabeças nos  toldos do carroção, a cada solavanco do eixo. Nos homens era menos sincera  a  crença  do milagre.  Iam poucos  na  romaria,  e esses mesmos  seguiam o  femeaço para namoriscarem a torto e a direito.

Padre Nazaré  contara  discretamente  o  prodígio  na  loja  do Burjaca,  palavras  simples,  sem  paixão e sem comentários. Não  lhe convinha muito tornar-se  herói do caso. Velhaco como era, tinha fé em que os ânimos se acenderiam  por versões mais escandecidas e pelos exageros e mentirolas que na boca da  gentalha usam acompanhar os episódios de força como aquele. Efetivamente  corria já na vila que a Escolástica caíra de cama, faniquitos a cada instante, um  esbracejar de endemoninhada debatendo-se  nos  pulsos de dois  sapateiros  vorazes, que a tinham de olho havia muito.

Ao mesmo tempo, o sacrista referira na venda do Salta-Pocinhas, à malta que  ali  se  juntava para  beber fiado,  a  história  circunstanciada  da  velha,  as suas  peregrinações  a  Lourdes,  a  sua  grande fé  e a  sua  caridade,  uma  carinha de  santa,  muitas esmolas.  E,  transfigurado,  tinha  descrito a  imagem  do Senhor  dos Passos, chagado e de olhos abertos, de cujas pupilas fixas parecia sair a  claridade de  além-túmulo,  o quer  que era dava  terror  e fazia  arrebentar de  paixão. E as opiniões começaram a desfilar através das conversas, fuzilando,  lutando,  fazendo contraste.  Uns  criam no  milagre,  impondo condições.  Outros andavam perplexos. Alguns riam.

—  Pode lá ser!

Já se contava que o choro do ídolo não era de hoje. Até ali ninguém reparara.  ainda se o santo desse berros!. . Mas, calado como era, não atraíra as atenções  de ninguém.

—  Quem havia  de  dizer!..   —  ponderava  a  D. Maria do  Juiz.  —  Um  Senhor de pau, como outro qualquer! E havia quem tivesse já desconfiado.  

Algumas velhas até sonhavam todos  os dias com a  imagem,  resplendor  na  cabeça, cruz às costas e a fazer-lhes sinais. E as outras, escutando, ganiam, de  olhinhos piscos:

—  Também a mim! Também a mim!  

Mas o carreiro das Silvas, que ouvira tudo muito calado, largou esta de chofre:  

—  Ponho as mãos numas Horas em como é pouca-vergonha dos padres!

Ameaçaram-no logo. Pedaço de bêbedo, grandíssimo traste que já queria  ter  opinião nas conversas das suas amas, o malcriado!

E,  enquanto elas ralhavam da  petulância  do moço,  a  mais  gente,  nos seus  carros  e nos  seus jumentos,  ria  maganamente,  pondo uma  nota  rutilante  na   prática escura de sacristia das senhoras devotas imbecilizadas e secas.  

Assente  pois que a  lágrima  de sangue segregada diretamente  por Deus,  e  escorrida da pálpebra óssea do ídolo, mantinha partículas divinas, gêmeas das  que ficavam no cálice,  durante a  missa  e à  invocação do celebrante,  toda  a  gente estranhou que o prior da vila não mandasse repicar os sinos, marchando  logo com a irmandade sob o pálio rico, a buscar em procissão solene o Senhor  dos Passos.

Ao subir para o carro, paramentada de seda roxa e toda de véu pela cara, a D.  Maria do Juiz, dando com o pároco a passear na praça, ainda lhe perguntou o  que tencionava fazer.

 O velho olhou-a por um bocado muito sério, e disse:

—  E a senhora?

—  Ora  essa,  senhor padre!  Cumprir com o  meu dever de  cristã.  Vou  penitenciar-me diante  do nosso Senhor.  E seraficamente:  —  Que estão  chegados grandes dias!

—  Pois, felicidades.

E sem mais  améns, o  velho continuara a passear, batendo  na caixa de rapé.  Era homem de cinquenta e tantos, calado e grave, com a bondade rude que  nasce da misantropia aldeã em perpétua contemplação do mesmo horizonte e  das mesmas árvores. Velho leitor da Revolução, e liberal de têmpera, viam-no sempre pronto a bramir contra os escândalos que manchavam o sacerdócio,  violências,  seduções,  roubos,  toda  a  casta  de vícios.  Intimamente  rosnava  contra a penitência, a confissão e essa idolatria das imagens, que torna mais  alvar ainda o povo das freguesias.

Em geral vivia recolhido, longe dos focos de opinião da terra, dizendo missa  na matriz ao romper do sol, percorrendo à tarde as fazendas entre um cajado  e um  cão amarelo,  e passando as noites em caso do médico,  no seu  interminável voltarete.

Quando lhe falaram  no  milagre,  o prior  bateu na mesa  iracundo e  trêmulo, exclamando rudemente:

—  Nunca se viu pouca-vergonha maior!

E logo todo pálido,  receoso de  ter  concorrido  para  o descrédito da  batina,  agitava o lenço vermelho trovejando:

—  Homem, é melhor que não me façam falar!

Aquela  violência  alastrou-se de boca  em boca,  espicaçada  por  comentários  mordentes e velhacas interpretações. Era opinião que o prior detestava padre  Nazaré e sentia atrozes ciúmes do seu talento oratório e da sua fama de rico.  Havia anos que os dois se não falavam por caturrices de eleição. Além disso, as preferências da fidalga pelo outro tinham sido consideradas na terra como  humilhantes para o pároco — um rústico! como se dizia em casa das Silvas.  Durante  toda  essa  manhã, muita  gente fora  consultá-lo sobre se  deveria  acreditar no  milagre.  E,  no  intuito mesmo de sondar a  opinião  da  sua  Reverência sobre o ponto melindroso, vários pediam uma interrogação lógica  para a terrível lágrima do deus.

O velho todo se torcia a cada ataque, e de mil cores derivava na palestra para  episódios pueris,  colheitas,  calores  da  quadra  e preços do vinho.  Mas as  devotas voltavam à carga de pronto, insistindo se seria verdade, se não seria  verdade, se o santinho chorara e seria sangue do legítimo...

Ao mesmo  tempo os  finórios da  terra,  proprietários  ociosos farejando  escândalos em que entreter tempo, egoístas prontos a gozar, pela expectativa  dos contratempos alheios,  espicaçavam-no cruelmente  e  de caso pensado,  vontadinha de apanhá-lo bem na rede, para lhe porem em evidência alguma  lúgubre contradição  de  crenças profissionais.  Mas o prior  permanecia sombrio, suando nas fontes sem dar palavra, um frémito de impaciência nos  ombros.

—  Isto de crer ou não crer, é da consciência de cada um — observava ele,  apertado.

E pitadeando:  

—  Cada qual que se consulte e proceda como melhor lhe convier.  

Mal a romaria chegou à ladeira que afrontava o convento, os carros fizeram  alto por conselho de D. Maria do Juiz, que era autoridade entre as devotas. As  Silvas lançaram-se logo de joelhos.  Algumas velhas tinham-se  descalçado e,  magoando os pés nas asperezas da vereda abrasada de sol, seguiam desfiando  rosários, as oferendas em taleigas de ramagens, xales pela cabeça.  

Ao mesmo  tempo, o povoléu,  pressuroso,  faminto  de assombros  e sem  paciência  para  esperar que os  carros  passassem na  azinhaga,  extravasara  da  estreiteza  do  caminho,  espraiando-se  pelas terras ceifadas, aos  pulos  por  valados  e alvercas.  Uma febre podre de superstições  e pavores  dilatava  os olhares e enlividecia  as  epidermes brônzeas,  alagadas em suor.  De todos  os  lados choviam promessas, alqueires de azeite, sacos de trigo, milagres de cera,  cabelos,  mortalhas,  uma  infinidade de coisas.  Uns prometiam para  que o  Senhor  lhes livrasse os filhos de soldados,  outros  querendo triplicada  seara,  enquanto  vários,  desalentados pela  doença,  sezonáticos e tristes,  vinham  simplesmente solicitar a cura imediata, mediante o valor de uma fogaça. Era  pensamento de todos engodar o ídolo com dádivas chinfrins, como fariam a  um selvagem por meio de missangas e estamparias. E, no intuito de um bom  negócio premeditado, vinham chancelar ao convento o contrato, mentalmente  sem escrúpulos.  À  entrada do templo,  foi uma  berraria  infernal,  prantos,  latinórios, desmaios. .   À frente as  velhas  descalças,  mãos postas  e olhos  no  céu,  faziam um  clamor de ladainhas e preces,  com vozes  esganiçadas  e  lamentosas. A D. Maria do Juiz, que gostava de figurar nas festas e era aia de  Santa Catarina, levara de casa um Santo Lenho de prata, que ergueu à frente  da multidão.

Desgrenhadas e cheias de espinhas carnais, as Silvas vinham-se arrastando nos  joelhos, de braços abertos, e a cada passo pendiam de canseira com delírios de  virgens flatulentas. A D. Maria do Juiz chegava-se então, e solenemente, como  vira fazer em Beja ao bispo, dava o relicário a beijar, bolçando esquírolas de  oração.

Por detrás  delas acumulava-se  a  gente  esfrangalhada, obtusa  num pasmo  irracional.  E batendo nos peitos,  muitos diziam numa espécie de uivo  sonolento, entre caudais de pranto:

—  Misericórdia! Misericórdia!  

Eram trindades quando padre Nazaré apareceu em casa  do sacrista.  Desde  manhã  que não saía  de casa.  O  calor trazia-o morto,  suores,  salvo  seja,  de  jumentinho podre, uma secura diabólica. Que ia pela cidade?

Manuel do Cabo pôs-se a dizer — o prior tinha zurrado: Pouca-vergonha! Na  loja  do Burjaca  não  tinham comido a  pantominice,  o mulherio  fora  em  chusma ao convento, havia três mil e tanto de esmolas, afora azeites e pães  alvos. Padre Nazaré sacudia o pó das mangas, num frémito júbilo de narinas e  o olho nadando em fluidos de vitória. E comovido exclamou:  

—  Grande povo este!  

Depois, muito confidencial:  

—  Despejou a cabeça?  

—  Logo. Por esse lado não há perigo.  

O  seu receio  era  Beja,  porém.  Que o vigário  não  era  para  graças,  segundo  ouvia  dizer.  Pelos  modos  suspendia  padres com sem-cerimônia  excecional. Pequenino como era,  voz aflautada,  e gestos  de alcoviteira,  tornava-se,  nos  lances sérios, de uma rapidez temerosa. Não lhe conheciam empenhos, nem  amigos,  nem actos  de benevolência  no julgamento de qualquer  melindrosa  questão.

—  Espirra-canivetes! — resumia o sacrista.  

Aquela ponderação fez porém sorrir padre Nazaré, que, esboçando atitudes de  poderoso, de trunfo político, exclamou:

—  Ora adeus! Todos os grandes têm uma perna de pau.

E distraidamente, em ar de comentário:  

—  Pois senhores, estão as eleições à porta!  

Sorria-se  com finura  velhaca,  mirando o  outro pelos  cantos  dos  olhos,  contente de fazer presumir a sua importância oculta e inabalável.  

Enfim, prosseguiu a meia voz, a  primeira cunha  está  metida. E bem metida  que está!

O resto, com vagar e jeito. Domingo, rica festa no convento, ali a missinha cantada, sermão de endoidecer os peixes...

—  Eia, o que aí vai!

—  Você verá — tornava envaidecido o padre. E batendo na testa:  

—  Tendo aqui o sermão todo. É de um efeito!...

—  Ah!  pregador  como  primeiro!  Que não se  apanha  segundo por  estas  redondezas.

Padre Nazaré exultava de lisonjeado.  

E oleoso de glória,  o fácies ridente das consciências repousadas,  ia  aventurando ao  sacrista  pequenas confidências,  que espumavam de  humor  como um bom champanhe crepitando num copo.  

Pouco a pouco, a voz, que se lhe abafara cautelosa, desenrolando segredinhos,  foi subindo. E ouviu-se distintamente o padre dizer:  

—  Daqui a cônego, meu amigo, é um trote.

—  Sendo a besta boa... — ponderou o outro, sem o encarar.

Um ano depois, estavam realizadas todas as esperanças do senhor capelão do  convento. A fidalga morrera com fumos de santa, legando rendosos bens ao  templo e ao padre,  ao mesmo tempo  que  a  fama dos prodígios da  imagem  rebentava para  lá  da  pequena  área  das povoações  circunvizinhas,  e nos  domínios  da  lenda  corria  a  província  toda,  avassalando crentes e colhendo  esmolas avultadas.

Todos os dias agora passavam por Via Alva ranchos de romeiros, que, bem  providos de oferendas, ante a imagem do convento vinham fazer penitência.  

O tosco madeiro, que primitivamente só chorava sangue, fazia agora, no dizer  das gentes rudes,  toda  a  casta de maravilhas.  Os cegos  recuperavam a  vista  limpado à  fímbria  das túnicas bentas a  ramela  dos  olhos  assolapados.  Paralíticos, que em cadeirinhas e macas abalavam dos seus lugarejos natais aos  ombros de carregadores, desandavam a passear sem detenças, mal punham os  olhos  na  igreja. Para  expelir o demo dos  esqueletos  da  pobre  gente,  que,  exibindo carantonhas e soltando berros, era trazida em coletes de força até ao  santuário, bastava muitas vezes um sopapo teso de padre Nazaré, algum latim  quando muito.

Contava-se de  lavradeiras estéreis que  se punham fecundas como marrãs,  mediante alguns  dias  de residência  na horta,  dietas místicas e  certas rezas  adequadas. E era infinito o número de rapagões do campo roubados à recruta,  panelas de dinheiro descobertas em rochedos lendários, e jumentinhos alegres  que,  depois de  roubados, vinham dar  às portas dos  donos, fazendo  sinais  maçônicos com o orelha-me.  Desde que,  no Alentejo,  a  qualquer família  se  afigurava  insuperável  um  problema  econômico,  um  caso  patológico  mais  grave, ou um casamento menos lícito de realizar, as opiniões voltavam-se logo  para o Senhor do Convento, na certeza de um êxito próspero e imediato — o que punha em bancarrota  os  curandeiros,  as mulheres de  virtude,  os  procuradores,  os  aveitares e os  médicos.  Desta  cegueira  absorvente  de  crenças,  foi-se  pouco a  pouco  originando toda uma  engrenagem de  pequeninas indústrias, devotas e a vila, tão pobre e tão reles, tomou de súbito  a importância de um centro ativo e florente, em que se falava com respeito.  junta  geral  votou estradas  que ligassem Vila  Alva com os mais sertões,  a  câmara,  pelo seu  turno,  fez abrir poços públicos  e  arborizar  os largos. Ao  mesmo  tempo;  enquanto  duas lojas abriam  com estantes de vidraça,  e um  latoeiro de Beja  vinha  fixar residência  na  artéria  principal do povoado,  as  senhoras  começaram  a  ir à  missa  de  chapelinho e luvas dando-se  pelintramente dom e fazendo os pés pequeninos. Vila Alva, como se dizia nos  serões das Silvas, estava dando sota e ás às terras próximas. Construiu-se um  chafariz com botaréus e tanques,  onde  até bípedes  vinham mitigar-se  das  calmas alentejanas.  A Escolástica  assumiu a  direção  de uma  oficina  de  bentinhos,  medidas e  retábulos  mais  ou menos garridamente  compostos,  onde,  em litografia  e em pintura,  o Senhor  dos Passos  ostentava  as  fisionomias mais estranhas, barba toda ou simplesmente bigode, de coroa ou  sem coroa,  marchando pela  rua da  amargura ou quedando-se  simplesmente  imóvel,  na posição carrancuda  de um  fotografado.  Dando  largas à  sua  veia  elegíaca, Chico Praça, até ali incrédulo, desandou a vender pelas festas hinos  bentos da sua composição, cantatas em pomposas estâncias, no fim das quais  se repetiam estribilhos plangentes:

E os judeus jogando os dados Viam-lhes os cravos pregados...  

Por seu lado, a D. Maria do Juiz, que tivera um tio médico, inventou a Untura  Santa, que vendia em latas de pinto com uma carta de padre Nazaré, atestando  que não havia  segunda  esfregação para  borbulhagens.  E,  como o comércio  prosperava,  as rivalidades desencadearam-se  entre  os  vendilhões,  o que  determinou a  falsificação nos  produtos  e  a  intriga  nas famílias.  As Silvas  fizeram aparecer  um  licor para  fatos; o Bujarca  opôs a  sua  Fomentação do  Horto ao unguento da  D.  Maria; outra  família  determinou suplantar as  estampas da Escolástica, confecionando pequeninos Senhores dos Passos em  barro, trapo, cortiça ou faia, com resplendor ou sem resplendor, conforme os  preços. A esse tempo, inaugurava padre Nazaré uns belos óculos de oiro para  se dar ares de homem importante. Construíra, além disso, uma bela casa com  terraço  e adegas  de  luxo,  alargando ao  mesmo tempo a  cifra  dos seus  milheiros de vinha e deitando carros de parelhas nédias. Estava cada vez mais  fona, lia Vieira e Mont'Alverne para vernaculizar os sermões, usava corrente  de berloques e deitara criada roliça. A sua ideia era a conezia, o poderio, muita  glória.

Desde que o viu rico, Vila Alva entrou a respeitá-lo, a servi-lo, a lamber-lhe a  poeira  das botas. Era  ele quem fazia  as eleições na  terra, quem  orientava  a  opinião, quem fomentava a intriga. Ia frequentes vezes a Beja.  

—  Falar com os trunfos! — cochichava-se às noites na loja do Burjaca.   

E com veneração referia-se aos quatro  ventos a  sua  aliança  com as  notabilidades políticas,  deputados  que lhe  ofereciam jantares, lhe mandavam  cartas de amostras, Diários da Câmara com discursos e as minutas de preços  do vinho, nos mercados de Lisboa.

Aquela preponderância fazia-o temido, e andava nas palminhas, dificultando a  sua intimidade aos menos favorecidos.  

No intuito  de  surpreender alguma informação relativa  ao negócio,  os  proprietários procediam com ele por pequenas sabujices, grande interesse pela  azia  da  sua  Reverência,  um  esmero  de palavras e rodeios servis,  como se  falassem a  um  senhor.  Vila  Alva  queria  em ele querendo,  ria em ele rindo,  bazofiava  em ele  bazofiando.  E a  conezia  não  chegava  nunca! Enfim,  uma  tarde correu que o velho cura ia ser transferido a exigências da política, para  Sant'Ana,  lugarejo de  algumas  casas,  sem  recursos,  sem agricultura  e sem  rendas,  torpemente esquecido na  aridez da  serra.  Em casa  das Silvas,  padre  Nazaré mostrou-se  penalizado do  pobre homem,  que  ficava a  morrer  de  fome. Mas intimamente dava-se os parabéns. Conseguira afastar finalmente o  pulha  que se atrevia  a  humilhar com sessenta  anos de honrada  labuta  a  sua  florente carreira de homem sagaz, em tirocínio para cônego.

Sobre o caso, Manuel do Cabo arquitetou logo o seu tratado prático de moral  característica, por este modo formulada, sempre que um mendigo se arrastava  para lhe pedir esmola:

—  Grande cavalgadura!  

—  Porquê, meu benfeitor?  

—  Inda o pergunta! Aposto que é homem de bem!  

—  Saiba o meu benfeitor que sim.

—  Pois,  amigo,  se  você  tem feito canalhice  enquanto  era  forte,  estava  agora rico. Pedaço d'alarve! E, exemplificando, estendia o braço para o fundo  da praça, onde de um lado sorria a casa nova do capelão, ampla, clara e toda  alegre das  tintas  frescas,  e a  miserável  vivenda empardecida  e  deserta,  que  pertencia ao pároco velho, e desde a sua partida se não abrira mais! 

1877   


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Fialho de Almeida - Contos (1881)

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