O MILAGRE DO CONVENTO
Ficava o convento a meio das
vinhas, numa larga planície florente e verde, em que as oliveiras punham a tristeza bíblica
das suas comas cinzentas, como o zinco
oxidado.
A leste corria o enorme espinhaço da
cordilheira, alteroso e pávido,
cuja nudez agressiva de linhas se
coloria de mancas plúmbeas e vermelhentas, de que os penedos destacavam selváticos, lembrando ruínas de monumentos celtas. Num campo de visão esplendoroso e
infinito, alargava-se para o sul o
horizonte azulado na massa de ar, semicírculos de planície que mais e
mais se iam perdendo no esfumado das
exalações longínquas.
Do campanário da igreja, o olhar
que se alongasse, transpunha daquela banda,
livremente, a caraira de Espanha, no seu voo silencioso de andorinha
inquieta. Em torno ao velho
casarão, a ruína
dos muros da cerca, uma:
alta cruz truncada,
e dois ou três arcos de um
antigo aqueduto de abastecimento,
assinalavam a expulsão violenta dos pobres capuchos, primeiros senhores
da casa
até às lutas da
última guerra civil.
O edifício e a
cerca, vendidos a um
fidalgarrão da Vidigueira, derruíam
vagarosamente, à míngua
de reparos. O fidalgo
arrendara tudo, abandonando
a província, onde só voltava de ano
a ano para vender
herdades ou hipotecar pastagens
e azinhais. Na cerca, os
amplos tanques de pedra
estavam desconjuntados e secos,
cobertos de cicutas viridentes; a
canalização atulhava-se de raízes
e moitões de lodo das últimas enxurradas;
caíra o aqueduto; e à
boca lôbrega das cisternas, as
figueiras bravas irrompiam, alongando os troncos brancos, em que
rebrilhava o verde de largas folhas de
recortes duros, como antigas faianças de Koblenz. Debaixo das nogueiras, cujo aroma
rescendia morno a cada
respiração da aragem, torciam-se
as heras nos bancos de granito, estendendo tentáculos no seu deboche
de vegetação verde-bronze e subindo,
como um desejo, pelas
fibras das árvores colossais. Uma estátua de apóstolo mártir caíra de
encontro a um
castanheiro enorme, cujas palmas
faziam cúpula sobre essa cabeça
vergada, de granito.
Ao longo da ribeira, os
plátanos e as faias postavam-se
como avançadas, num surdo murmúrio íntimo de seiva.
E para além, o laranjal
espesso, vergado até abaixo, alargava-se, embalsamando o ar, onde as pombas fugiam no azul pálido,
como almas que, purificadas, penetram os
umbrais serenos de
bem-aventurança. O convento, de paredes cinzentas, telhados
cobertos de erva e janelinhas de celas,
desamparadas como órbitas sem
olho, pesava na paisagem viva, com um
ar de mendigo que esmola, à beira
dos caminhos. Acima da grande massa oblonga de muros, fortalecidos a gigantes de cantaria, as duas torres sem cúpula,
encimadas de pequenos obeliscos
de alvenaria musguenta, de cujas
cristas o furação
cuspira os cata-ventos, erguiam-se
tristemente, como um
desenho tosco e primitivo. Nos
claustros, o feitor da
propriedade estabelecera tulhas
do lagar de azeite, cobrindo a taipa
uma das faces do quadrado de arcarias, rasgadas sobre o pátio central — onde
os limoeiros vinham espalmar toda uma tapeçaria
de folhas curvas e espinhosos troncos, salpicada
pelo oiro baço
dos frutos, ovalares e rescendentes. Uma
legião de pássaros vivia
nesse pátio, na ebriedade festiva dos aromas; ao centro, o
poço de pedra, de relevos brutos,
especavam no ar a roldana negra, que tinha, ao anoitecer, um perfil de
forca viúva. No tempo dos frades, as
festas cheias de rumores do velho órgão, de
incensos e flores chamavam dos
arredores as aldeias e farta colheita de
esmolas. Agora a
devoção por essa velha
igreja em ruínas, de altares
carunchentos e abóbada fendida,
esmorecia lentamente. Falavam de medos errantes pelos claustros, soluços pelas
escadas de pedra, e vozes que vinham
gargalhar blasfêmias à boca do poço quadrado do pátio. Aparecera mãe uma filha do eremitão. E os santos,
toscamente esculpidos e
miseráveis nos seus farrapos de túnicas, não inspiravam respeito.
O Senhor dos Passos, com uma enorme
cabeça de marfim, estava aliviado a um canto, do peso da cruz, que o sacrista
bêbedo partira uma noite, depois
da procissão. Andavam aos
pontapés pelo carneiro,
amolgadas e sujas, lâmpadas de
latão, verdentas de azerve; os
castiçais coxeavam cobertos de cera
pingada e moscas mortas.
E por um buraco do coro, alta
noite, piando
escarninhamente, as corujas entravam para
os ninhos da capela-mor,
famintas do azeite das lamparinas.
Duas vezes por semana, domingos e quintas, Manuel do Cabo, sacrista,
mais o padre Miguel de Deus, saíam da
aldeia, para celebrarem missa no convento, a
que só assistiam o eremitão e a filha, os moços da horta mais o feitor,
gente sombria, com o ar estúpido dos
ignorantes maus.
Uma noite,
padre Miguel de Deus apareceu morto
na cama e ficou vago
o lugar de capelão do convento.
Só depois de instâncias repetidas é que padre
Nazaré aceitou o cargo. E, torcendo o focinho bilioso de egoísta, dizia
para Manuel do Cabo, uma quinta-feira,
apontando a igreja:
—
Isto não deixa nada, mas, com reformas...
Manuel do Cabo, que era lido em
autos, histórias de Carlos Magno e princesas
Magalonas, não deixou sem comentários a sentença do Sr. padre Nazaré
— um finório, como se dizia na loja do
Burjaca. Mas, com reformas..
meditava ele à lareira,
enquanto a filha Escolástica,
junto da candeia,
fazia renda pensando em ganhões
de braços robustos. Que diabo de reformas seriam? A igreja
não tinha rendas, nem
alfaias, nem conserto sequer. A miséria
ia, esfrangalhada e imunda,
das toalhas dos altares aos dosséis desbotados da
capela-mor. Começava a estalar a carnação dos mártires; nosso
padre-mestre S. Domingos perdera pouco a
pouco as orelhas; havia um S. Luís carunchoso, em cujo ventre os ratos faziam
residência segura, por todo o ano. E falar o
padre Nazaré em reformas!...
Chegou o Verão daquele ano, tempo
das romarias.
Cada domingo era consagrado à
sua ermida — à
Senhora de Guadalupe, a
Santo António, a Santa Clara, a S. Pedro das Cabeças, a S. Tiago, à
Senhora das Relíquias... E as aldeias,
vestidas de galas, raparigas de
xales escarlates e tranças postiças,
cavadores de calças curtas, enormes pés e grosseiros chapéus de borla nas nucas, velhos e crianças nos
seus burros, nos seus machitos e nos
seus carros de mato iam em chusma depois do jantar e meio-dia batido nos sinos
da paróquia, estrada
fora, através das searas maduras, e das vinhas
verdes opulentas de cachos, trepando colinas e chapadas de
olival, em direitura às igrejinhas brancas,
abertas com um encanto de fé ingênua
nas alturas, e em
contemplação perpétua de horizontes
sem termo. Cada uma daquelas
imagens de bem-aventurados, toscamente
esculpidas e de uma pintura bárbara, possuía para a raça crente
dos campos a especialidade de um
prodígio, um ramo de milagre original.
Santo António, por exemplo, de
três palmos de alto e o rostinho garoto de um
aluno desinquieto, adorado num cerro enorme de montado, e vizinho de
um moleiro borrachão,
protegia os namoros. Era o
mais querido dos arredores. Nas tardes
bonitas de Primavera e nos domingos abafadiços de Verão, a gente moça
vinha bailar-lhe e cantar-lhe
no adro,
com um desejo
de núpcias traduzido em
clarões de olhar. Uma
a uma, as raparigas iam coser-lhe
no manto, sorrateiramente, pequenos bilhetes escaldando de fé e de pecado
também, em que se suplicava a intervenção da bendita imagem no bom
êxito de uns amores que qualquer dia
rebentavam em escândalo grosso — não tinha
dúvida nenhuma!
S. Pedro abria as portas do céu,
e o seu cortejo compunha-se de velhas beatas
supersticiosas e antigas fandangueiras alegres, cuja fé lhes chegara com
rugas e cabelos brancos,
após anos e anos de rasgada
pândega. E todos esses
solitários, invocados a
propósito de secas insistentes,
colheitas ruinosas, implacáveis
Invernos, doenças, sezões,
maus-olhados, bruxedos e raios,
gozavam no Verão da sua festa, com música e fogo-de-vistas, sermão,
tourada e procissões garridas à roda da
igreja, ou as mais das vezes até ao povoado e
ao som de uma foguetaria atroadora. Os santos do convento, nada; Mas,
com reformas, dizia padre Nazaré. Qual
reformas, nem qual diabo! acabava Manuel
do Cabo por acrescentar.
Um dia, descendo da torre, onde
fora descobrir um famoso ninho de pombos
bravos, reparou num cubículo do
coro, a
um canto, nuns
alfarrábios esquecidos, poentos e
rendilhados pelas arganaças. Curioso como era, nunca para tal olhara.
Agarrou num dos cartapácios e
veio para baixo. Torceu
primeiro o gasnete aos borrachos do ninho e à pomba mãe que
surpreendera.
—
Que rica fritada não faria
a Escolástica daquela
gentinha toda, hem?
Um almoço de rei! — dizia Manuel do Cabo, sacudindo a poeira do livro
com as fraldas de uma cruz partida a um
canto, e noutro tempo alçada à frente da
comunidade dos capuchos, pelos campos fora, em dias de festa.
Abriu a grossa capa de pergaminho e leu: Crônica
dos Capuchos, em largas letras vermelhas.
—
Escuso de ler — ponderava o desdenhoso Manuel do Cabo —; amigos de raparigas, de vinho e raposeiras ao sol,
de pança para o ar. Medo aos tiros,
latim por qualquer coisa,
e uma cantarolação do
inferno nas missas. Malta!
Conheci o guardião: que grandessíssimo bêbedo!
Como entardecia, fechou a porta
da igreja, meteu o livro no alforge mais as
alvas sujas de padre Nazaré,
e, montando no
Ginaia, jumentinho podre e
peludo, desceu para a vila. Era pelas eiras; a perder de vista, de ambos
os lados da estrada,
alongavam-se sinuosamente pelas colinas as courelas ceifadas, cujos
torrões secos dos calores tropicais esboroavam ao menor
atrito. Os rebanhos percorriam, de banda a banda, os
largos trechos de campo, fazendo um
concerto de chocalhos e uma floresta de chifres.
No horizonte formidável,
murchavam docemente as últimas eflorescências de luz. De todos os lados
as árvores, com os seus braços de
ciclopes negros, pareciam curvar-se numa
saudação benévola, que os melros, os melharucos, os
papa-figos, as calhandras e os
verdelhões repetiam, ampliando, vocalizando,
num coro estrondoso, sonoro, harmônico e incomparável. As vinhas
forravam de espessos tapizes a
terra calcinada, de que se erguiam as
figueiras de largas folhas e troncos
brancos, num espreguiçamento de sesta.
Desenhavam-se para o longe,
em curvas francas, os pendores das serranias agras, afogados na exalação serena da tarde;
de todas as veredas saíam para as eiras
récuas de possantes machos carregados de espigas, e pelas clareiras estalava em notas vivas o rumor das cantigas
imaginosas. Manuel do Cabo ia dando
boas-tardes aos ranchos de ceifeiras que encontrava. À entrada da vila, encontrou padre Nazaré chupando um cigarro,
enquanto no calcadouro da eira os moços retraçavam as espigas, a malho.
E à noite, depois da ceia e aceso o
cachimbo, lembrou-se de folhear o alfarrábio,
a passar um bocado
de tempo. Leu num cabeçalho do
capítulo:
«De como Jesus Nosso Senhor se
mostra prodigiosamente aos seus humildes
servos capuchos, e da narração dos milagres sucedidos no convento de
Santo António de Vila Alva.»
—
Pois, sim, sim! — disse Manuel do Cabo, com desdém. Mas leu sempre.
«E além dos muitos prodígios em
que a misericórdia divina se patenteou aos
nossos irmãos, sarando grande
cópia de
leprosos, curando enfermos e fazendo sair o inimigo do corpo de várias
mulheres, a súplicas do nosso padre
mestre, Frei António da nossa Senhora, se relata um assombroso milagre
que deixou prostrados em fé quantos
tiveram a glória de o presenciar. Não poupa Deus os pecadores
do mundo, nem retira aos que se
arrependem e conquistam a graça,
suas mercês e favores, que únicos são verdadeiros neste viver de desenganos.. »
—
Tá! tá! —
fazia Manuel do Cabo, como quem conhece o terreno que pisa. — Malandrice no caso!
«Em o ano de mil quinhentos e
setenta, por uma noite de Janeiro, estando no
convento de Santo António de Vila Alva todos os nossos irmãos
recolhidos nas suas celas e
entregues à guarda
de Deus, pois como disse o
bem-aventurado S. Francisco de Sales...»
—
Pro diabo, mais ele!
— comentou Manuel do Cabo, voltando a folha
sem olhar a citação.
«Se ouviu grande grita na igreja
e a modos rugidos de besta-fera, no meio de
copiosos prantos. E, despertada a comunidade, se ouviu uma voz que
dizia: Ide-vos, tentador! E todos se prostraram, em oração, para que Deus Nosso Senhor não desamparasse seus humildes servos
em tamanha agonia e perigo, a fim que as
suas almas pudessem desfrutar a bem-aventurança, que gozam no seu reino tantos santos e patriarcas, pois
como disse...»
—
Esta cambada metia tanto latinório nos livros, como vinho no bucho. Ora a súcia, senhores!...
«Mas o guardião Frei António da
nossa Senhora, de virtuosa prática e varão
inspirado do Céu, veio a eles para que cobrassem ânimo, e
encaminhando-se todos para a igreja
viram um grande cão preto, lançando fogo pelos olhos e boca,
que fazia pavor, tão
furibundo estava de ver. E no altar da
milagrosa imagem do Senhor
dos Passos, um
leigo notou os
castiçais derribados, o
frontal desfeito e coberto de babas malignas. E vindo todos, foi visto
agarrado à cruz
do Redentor um noviço entrado de pouco, por
nome Serafim, que prostrado em êxtase dava graças a Deus por se
haver escapado das garras de Satanás,
que outro não era o tinhoso cão negro, que fora visto em fuga.
E todos em joelhos deram graças
por tamanho prodígio. Aproximando então
uma lâmpada da
verônica da sacratíssima
imagem do Senhor dos Passos,
notou Frei António que esta chorava um
choro de sangue de agonia
milagrosa. E erguendo a voz
ordenou a todos os irmãos que ali
estavam se prostrassem de novo e
fizessem por observar, em tudo, quanto recomendam os
sábios doutores da Igreja, cultivando
a fé e espalhando
a virtude quotidianamente.. »
—
Naquele tempo chorava — ia
dizendo velhacamente o sacristão.
— Hoje, qual!. . Partem-lhe a cruz e não abre bico; rasgam-lhe a túnica,
e moita! Como diabo fariam eles a
choradeira?...
Nisto bateram e entrou padre
Nazaré. Deu com os olhos no livro e foi logo
observar o trecho.
—
Então você agora dá-se à
leitura de coisas antigas, hem? Crônicas e frades, etc...
—
Hum! Pouco. Era pra chamar o sono.
Padre Nazaré pôs o dedo no
capítulo do milagre e olhando de esguelha o sacrista:
— Quanto lhe devem a você no
convento?
—
Seis meses certinhos...
faz hoje. Nove mil réis! Se os apanho,
nem acredito! Chiam-me no papo.
—
O mesmo cá por casa. Leu isto?
— Não tinha outra coisa...
— E que diz, que diz?
—
Eu? E vossemecê, padre Nazaré?
Olharam-se. Manuel
do Cabo ria com a sua figura
podenga de campônio,
olhinhos de malícia precavida, um tamborilar de dedos na tampa da arca.
—
Que grande milagre! — fez com ênfase untuosa o padre Nazaré.
— Que grandessíssimo! —juntou Manuel do Cabo,
não se sabendo se falava do
prodígio, se do capelão.
— Como já se não fazem hoje —
ecoou saudoso o padre, repotreando-se,
com os bugalhos dos olhos nos seios da Escolástica, entretida a esburgar
as ervilhas secas.
— Pouca virtude hoje! — disse o
sacristão. — Os tratantes são como água
de pedra.. — E com profundeza
convencida, dando uma risada bronca:
— Mas naquele tempo eram maiores,
vá com Deus!
— Hum! — opinou padre Nazaré.
Puseram-se a falar no enterro daquele
dia, da velha D. Isaura, uma ricaça da terra. A Escolástica quis saber
se tinham distribuído esmolas e de
quanto.
— Tostão!
— Não se alargaram muito, a bem
dizer.
— Vamos com Deus, não foram más.
Quando foi do doutor Bentes, nem cheta
apareceu.
— Esse sim! Tomara
a mulher mais prós amigos.
— E desdenhosa: — Que, segundo me contaram..
— Não digas asneiras, sua tola,
não digas asneiras — clamou azedamente
Manuel do Cabo, que amava a discrição e a harmonia recíprocas. — Você
viu?
Deram nove horas, no relógio da
torre. E o sino da câmara correu, segundo a
velha usança.
Padre Nazaré levou o sacrista
para a porta da rua e disse em voz cautelosa,
aproximando muito a cara da orelha do outro:
— E se o Senhor dos Passos
chorasse ainda?
— Está lá pra isso!
—
Homem, às vezes...
—
Então? — fez Manuel do Cabo, à espera que ele dissesse tudo.
Padre Nazaré descreveu então numa
linguagem arrastada e mole a rodilhagem
em que se via o convento e os objetos do culto.
— Você bem sabe, homem. Não há
frontais, nem banquetas, nem toalhas, nem alvas, nem vestimentas para os santos.
É uma vergonha! —
acentuava com força. — Tudo que mete nojo! Aquelas galhetas, aquela
patena, as duas sobrepelizes, as alvas,
tudo aquilo, senhores, tudo aquilo! Além disso, não sei se você tem reparado. Uma invernia tesa,
temos a abóbada em terra. Sabido!
Você conhece-me. Sabe
que coisa ao meu
cargo tem de andar limpinha, arranjadinha. Senão, passe
muito bem.. Ora
se o Senhor dos Passos..
você entende?
— Tinha hoje pensado nisso mesmo
— observou Manuel do Cabo, que medira o alcance da patifaria proposta.
— Ah, tinha? — E numa expansão: —
Assim mudava tudo, você entende. Quando correr que o Senhor dos Passos chora,
não faltará cão nem gato que não
queira ver; calcule as esmolas e prendas a
seguir. Você entende...
são velas, azeite,
túnicas, castiçais, dinheiro,
legados por testamento,
o arraialito todos os anos,
missas aos centos e gorjetas de
estalo. Conserta-se a igreja, asseia-se, pinta-se, caia-se, você entende.
No Verão, bailarosca na cerca, fogo- de-vistas, gente assim..
E com os dedos em pinha, fazia
movimentos de aglomeração oprimida.
— Sim senhor, sim senhor —
resmungava o Manuel do Cabo.
— Aí pela Quaresma, faz-se
procissão até à vila, missa cantada, o costume, sermão... E você verá que se despovoam
aí as aldeias todas para a
romaria. Selmes não falta.
—
Olha quem, Selmes! Aquilo são brutos como jumentos.
— A Vidigueira, a Cuba, Vila de
Frades.. Você entende.
— Essas não comem, parece-me cá.
— Qual! Qual! O povo tem muita
religião ainda. Veja você, quando levam a Senhora das Relíquias, pelas secas,
ali na Vidigueira. Veja! É um choro, que
nem que as moessem de pancadaria. Que nome tem aquilo senão fé? — E aprumando a estatura desajeitosa, de uma
obesidade glutona, invetivava;
— Sim, que nome tem? E não é tudo. Você verá
que as mais romarias hão de morrer por cauda da nossa. Homem, sempre é um choro
de Senhor dos Passos. E depois, os
sermões. O que se pode dizer da imagem... você entende. E o dinheirão nas festas... Vendem-se
estampas, bentinhos, medidas —
um chuveiro! Isso fica prós
alfinetes da Escolástica. E as fogaças e tudo!...
— É uma rica ideia. Mas se entram
a falar, se o vigário percebe...
— Ora deixe. A eles também lhes
faz conta. Em Beja fazem o mesmo, os tais letrados.
— Bem. Eu cá, pronto! Pode chorar
em querendo.
— E aproveita-se uma bela ocasião
agora. Você sabe que a mãe do fidalgo vem passar um mês para a horta. Grande
devota, segundo me contaram. Em Lisboa,
diz que
leva a vida
pelas igrejas a
comungar, a confessar-se,
a encomendar relíquias
e bentinhos. Excelente senhora!
e para mais, oitenta
anos! Veja você. .
— Está na conta.
— Como anda adoentada, vem a
mudar de ares. O sítio é belo, um ar na própria, verdura. .
Faz-se o milagre: se melhora,
corre logo uma fama de seiscentos
demônios.
— Não melhorando... tumba!
—
É capaz de legar rendas para o culto. E você entende.
—
Entendo. Em ambos os casos, lucro. E quando chega?
—
Mesmo depois de amanhã.
—
É preciso então mandar assear a igreja, que parece um chiqueiro, não ofendendo quem está.
—
Claro que é preciso! Amanhã trata-se disso.
No dia seguinte ia grande faina
no convento.
O hortelão varria do laranjal as
folhas caídas, os moços aparavam o buxo das estreitas ruas do jardim, as mulheres caiavam
os muros da cerca. Ao mesmo tempo, Manuel
do Cabo mais a filha, empoleirados
pelos altares da
igreja, destruíam com os varejões
enormes, que serviam pela azeitona,
as pontas suspensas e negras que
alguns milhares de aranhas tinham fabricado, em pelo menos vinte anos de secreção. Os santos tinham
sido apeados dos nichos e cuidadosamente
lavados numas poucas de águas. A cada passo, a Escolástica, passando o rodilhão molhado pelas barbaças de
um mártir, dizia compungida:
—
O santo me perdoe,
mas estava que metia
nojo! — E em cóleras de cristã fervorosa: — Estas bilhardeiras da
horta, nem ao menos água têm, pra lavar
os santinhos! Velhacas!...
—
Oh, rapariga.. — dizia o
sacristão repreensivo.
Foi impossível arrancar ao seu
nicho o Senhor dos Passos. Era uma imagem maciça e tosca, talhada quase a machado, e a
quem faltavam dois dedos. Tinha a cabeça
quadrada de um ídolo pelágio, marfim amarelo salpicado de feridas negras,
cabeleira comida de traça
e encimada de um resplendor de lata, dentado
e torto. A túnica caía
aos pedaços numa miséria
mendiga, donde saíam tornozelos gigantescos e pés
formidolosos.
—
Mete respeito! — dizia a Escolástica, molhando o esfregão no alguidar.
Os cuidados de Manuel do Cabo
convergiam especialmente sobre a capela do Senhor, soturna
e alta, com colunelos de talha
e esculturas selvagens representando
serafins e emblemas da
Paixão. Do fecho do arco, uma lâmpada de chumbo caía por três cadeiras de
ferro; o púlpito ficava em frente com a
balaustrada negra e azulejos no portal; e, traçando caminho de capela para capela, uma linha de sepulturas rasas
arremendava de pedras alvacentas e tortuosos
epitáfios o ladrilho esboroado do pavimento.
Era espaçoso o camarim da imagem,
posta ao través para ser vista em toda a sua
dimensão. A parede do fundo, pintada
de judeus colossais ornados de chifres
e dentes de javali, que os maraus arreganhavam por modo insólito, ensombrava-se de manchas limosas, fazendo
claros na quadrilha de algozes de
Nazareno.
—
Eh, malditos do diabo! — fazia a Escolástica esgrimindo figas sobre a cáfila, enquanto gravemente o sacrista dava
reviravoltas à cabeçorra do ídolo, a ver
se a desaparafusava do tronco. E quando viu a filha descer para renovar a água das lavagens, Manuel do Cabo
destroncando a cabeça santa pôs-se-lhe a estudar cuidadosamente a
anatomia. Terminava ela
numa espécie de parafuso tubular, tapado por uma rolha. Manuel
do Cabo puxou a rolha para si e deu com
uma concavidade que se escavava na cabeça, fazendo nela como um esconderijo.
—
Cá está a marosca!
— resmungou, torcendo a venta
de um modo pujante.
Deitou água no bojo e vascolejou.
A água tingiu-se de vermelho.
—
Percebo! — disse ele. — Não precisa mais. — disse a meter a rolha no tubo de
parafuso, lavou a cara
do santo, cuidadosamente restituiu
a cabeça cheia
de água ao seu lugar.
Alcançara de velhas devotas
uma túnica de paninho
roxo, e com esmolas fizera consertar a enorme cruz de pinho que de longos anos caía a
um canto, aliviando o
semita do seu peso infamante.
Quando a Escolástica
voltou, já o Senhor dos Passos estava vestido
e paramentado de novo, cruz às costas, a disforme cabeça lívida pendente
sobre os
seios, cabeleira esguedelhada
nos ombros e o resplendor por
cima, com uma mão fatídica impondo condenações. Com
ramos de ciprestes juncaram o chão da
capela. Através das ramarias esbugalhavam-se os olhos dos fariseus, com ar de troça que incendia as iras da
Escolástica, vindo porém, a achar eco no
coração do sacrista. Enfim, a mulher do hortelão trouxe flores e verduras, que foram postas em simetria
no altar, dentro
de canecas de barro e bilhas vermelhas, de Estremoz. Acendeu-se a lâmpada
da capela, e diante da gente da horta
que viera recolhidamente ver os preparos da igreja, a Escolástica leu em voz
alta, no seu livro de missa, a
ladainha — que era muito bom para ganhar indulgências.
Ao cair da noite os preparativos
de receção da senhora fidalga estavam feitos; a
residência esfregada e as louças brilhando nos grandes armários do refeitório; enormes camas de pau-santo cobertas
do colchas de damascos crespos,
rescendendo à alfazema das gavetas e ao linho de Guimarães; painéis de santas risonhas com mantos cor de
laranja e maxilas
de carnívoro; os tamboretes em linha mostrando a
pregaria luzente; e um velho sofá
de medalhões de coiro ao fundo da
sala, de cujas paredes pendiam, em molduras castanhas, litografias representando a vida de
Dona Inês. Na horta o mesmo aspeto
cuidado e festivo — moitas de hortênsias à entrada, ruas de loureiros e chorões, caracoleiros e heras vestindo os
muros, os tanques limpos, aparada a relva
do laranjal, dálias' escarlates ressaindo dos tufos verdes da contramina, abóboras e melões de guarda em linha no
telhado do chiqueiro, espantalhos novos
pelas figueiras...
—
Tudo que nem um brinco!
— dizia a
Escolástica à vizinhança, descrevendo as canseiras que tivera.
À noitinha apareceu padre Nazaré,
chapéu para a
nuca, todo encalmado de subir as escadas do balcão. Vinha mal do
estômago, cheio de securas, a face macilenta,
ventre alto, os intestinos trovejando.
—
É dos pimentos — dizia —, é dos pimentos de conserva.
Tinha levado
o dia metido em casa, em mangas de
camisa e chinelos, com calma.
Fizera suão; com as queimadas os ares andavam turvos e as bestas sem força para o trabalho.
Demais um desavergonhado de
Selmes recusava-se a pagar a meia moeda que lhe pedira aí pela esborralha. Corja de
ladrões!
Manuel do Cabo filosofou então:
—
Que hoje em dia o mundo ia cada vez pior.
Todos cuidando de atafulhar o
bandulho, e o diabo que levasse o nosso amigo e compadre.
Deleitava-se intimamente o sacrista, em sabendo
que alguém caloteava o padre
Nazaré, um fona incapaz de deitar osso a um cão.
O padre passeava de uma banda para
outra, mãos atrás das costas, um livor bilioso
na pele. E disse sem levantar a cabeça:
—
Sabe que a velha chega amanhã?
—
Assim ouvi dizer.
—
Fez aquilo?
—
Todo o santo dia andei a rapariga a tirar estrume da igreja. Aquilo não
é dizermos que estava porca, senhores,
mas tenho já visto malhadas de cabras mais
limpas. Teias d'aranha então, capazes de cobrir o mar. Enfim, ao menos asseada,
ficou. Tudo varrido,
muito flor nos altares, azeite nas lâmpadas, túnica
nova no Senhor dos Passos.
É imagem pra um
bocado de respeito. Sempre lhe
digo que Padre Eterno era homem do tamanho da torre de Beja, se tinha parecenças com o seu filho. Alentado,
palavra.
—
Mais respeito com essas coisas, senhor Manuel do Cabo, mais respeito com essas coisas — advertiu padre Nazaré, que
tinha lobrigado a Escolástica entre
portas, à escuta.
E com um formidável arroto abriu
a velha homilia sobre o temor de Deus e os
mistérios da Trindade — Padre, Filho e Espírito Santo.
—
Malditos pimentos — dizia —, malditos pimentos! Deus era o espírito criador,
dotado de todas as virtudes e omnipotências. Era o
infinitamente bom, o infinitamente grande e o infinitamente piedoso.
Para impor-se à limitada compreensão humana, fizera-se homem no
seu filho, que padeceu e morreu...
—
Tudo para nos remir e salvar! —
ajudou de dentro a Escolástica, que sabia as prosas do Novo Catecismo de Doutrina.
—
É tal e qual — fez
padre Nazaré. E vendo a rapariga
de braços arregaçados pediu água,
para lhos ver de
perto. Quando a Escolástica
se afastou para encher o copo, o padre voltando-se
disse: —
É preciso dar exemplos, homem!
—
Pois que dúvida que é — objetou o outro, puxando fogo ao cachimbo.
Os olhares dos
dois encontraram-se luzindo com a
mesma expressão de patifaria.
Traduzindo então os
pensamentos do padre, Manuel
do Cabo ia dizendo a meia
voz:
—
A fidalga chega à tardinha ao convento, com as criadas. Traz homens?
—
Não traz.
—
Melhor. Chega e janta. Depois visita a casa, os lagares, um bocado da cerca. E salta na igreja sol-posto. Escuridão
no altar-mor, nas capelas laterais, lâmpadas acesas, um
sossego de morte... Faz a
sua oração ao Senhor dos Passos,
hem? E um de nós então, repara que...
Padre Nazaré tossiu, para
abafar as palavras que ia vomitar
o sacrista. E Manuel
do Cabo desatou a rir. Com um jeito brusco o padre estendeu-lhe a mão.
—
Até amanhã. Vou-me deitar, que me estou a sentir pior.
Desceu as escadas do balcão, enquanto
de pé no portal o sacrista
ficava olhando com o seu risinho
de marau inteligente.
Ao entardecer do outro dia, a
caleça entrou com grande estrépito na portada da cerca. De chapéu na mão, os moços de
lavoura, o hortelão, padre Nazaré mais o
sacrista adiantaram-se para cumprimentar a velha dama recém-chegada. Esta desceu amparada ao braço do padre e sem baixar a cabeça
a ninguém. Era quase octogenária
e devia ter sido alta. E toda corcovada, com um vestido de veludo preto e um capote debruado de peles,
subiu a escada que levava ao andar de
cima.
—
Isto aqui é triste, pois não é, senhor padre?
—
Não, minha rica senhora,
não é. Em campo é do
melhor que tenho
visto. Muita verdura, boas águas,
rica vista, enfim, um regalo de propriedade.
E depois, a vizinhança da casa do
Senhor...
—
Sim, sim — disse a fidalga. E com inflexão piedosa: — É o que mais consola.
A mesa estava posta. Pelas
janelas abertas do refeitório, via-se morrer a tarde e esmaecerem nas cristas as últimas tintas
inefáveis do dia. Ao lado, as noras chiavam fazendo descer e subir sobre a água das nascentes a trança
dos alcatruzes de barro. Sob
cúpulas verdes de nogueiras,
amoreiras brancas e plátanos, a água jorrava nos tanques
quadrados; os moços da horta faziam a rega
do laranjal, leiras de
pimentos e carrapatos;
no extenso pomar os pêssegos, as
maçãs e as romeiras rubras picavam a verdura de pontos vívidos, de um tom sadio. O ar cristalizava numa
serenidade contemplativa e corriam brisas
impregnadas do cheiro dos fenos.
A senhora fidalga tinha-se
sentado à mesa, mais a governanta e padre Nazaré, que a instâncias consentira tomar um caldo.
—
E tem rendas, a igreja?
—
Não, minha rica senhora, não tem. Os foros de trigo apenas dão para as despesas do
culto; e ainda por
cima mal pagos...
Os paramentos são uma miséria
e o templo faz-se em ruínas. Uma
desgraça, minha rica senhora! Desejando estávamos todos que a vossa
Excelência chegasse. Temente a Deus e boa
cristã como é, a
senhora fidalga pode bem acudir
com esmolas à pobreza
dos santos e ao
desmantelamento da igreja.
Podia-se até fazer uma festa,
a modos um arraial, todos os anos. Mas eram precisos certos arranjos que traziam despesa. Ora não havendo fundos...
Vossa Excelência entende.
—
Far-se-á o que for da vontade de Deus — disse a velha, abrindo o seu grande leque da China, preto,
com lantejoulas e pássaros exóticos.
Tinha tirado o chapéu, bandós
postiços desciam aos lados da marrafa, tapando-lhe as orelhas.
Um pente de tartaruga posto ao alto dava-lhe à cabeça
um ar ridículo. A testa, abaulada e saliente, punha
como um abat-jour nos seus olhos profundos,
mortiços no fundo das órbitas. Recordava-se pouco do convento, da disposição dos altares e do número de
imagens. Se havia trono?
—
Um pequenino e dourado, todo velho.
—
E santos, senhor padre, e santinhos?
—
Isso muitos, minha rica senhora, muitos. Santa Rita, logo à entrada; S. Pedro, à esquerda; a Senhora do Rosário...
—
Minha madrinha... — fez notar a governanta, dona papuda, de bigode. Padre Nazaré cumprimentou, e foi continuando a
enumerar:
—
O Senhor dos Passos, imagem de muita virtude e milagres; Santa Isabel, rainha..
A velha espirrou, e todos
correram a fechar as janelas, temendo constipações. Veio
a pêlo falar-se de doenças
produzidas por simples golpes de ar. Na opinião
da governanta, toda
a enfermidade nascia de uma
constipação. Quando tivera o
antraz...
—
Vossa Excelência é que me dizem de saúde muito delicada — disse o padre para a fidalga, oferecendo-lhe um
pêssego descascado.
Ela contou então os seus
achaques, consultara tudo, a homeopatia, a alopatia, os
seus diretores espirituais —
que, juntou, sendo os médicos
do espírito podem também ser os médicos do corpo, como
emissários de Deus — que são.
—
Muito bem — disse untuosamente padre Nazaré —, muitíssimo bem.
—
Mas poucos alívios,
infelizmente. — Tinham feito a peregrinação
a Lourdes no Verão passado, por
conselho do padre Grainha. Muito
bonito tudo, as águas de muita virtude,
a Senhora rodeada de oferendas dos romeiros, e algumas ricas... Citava
os presentes da princesa Amélia de Brandemburgo, tocheiras de oiro maciço, coroas de rubis, cálices esmaltados e custódias góticas...
Tudo valendo milhões, não faz
ideia. Em certos dias da
semana, Nossa Senhora aparecia
aos enfermos na gruta, puxando-se um cordelinho... Mesmo
assim, passava mais aliviada
de Verão; mas
pouco! Tinham-lhe aconselhado a estação no convento, e viera.
Ai! Que Deus lhe perdoasse tão grande
ofensa... mas tinha
pouca fé. A
idade era já grande
obstáculo a uma cura
completa.
—
Todavia — acudiu servilmente a governanta —, sendo da vontade do Senhor. . Ela bem lhe pedia!
—
E todos do coração
imploramos — disse
com austeridade o padre, enchendo
o cálice de porto. — E levantando-se dava boas esperanças, dizendo a sua grande fé nos ares, nas águas,
que as havia férreas, muito perto. Sempre
era outra coisa a vida no campo, outros hábitos, muito sossego... — Assim concluiu ele com um sorriso, passando o
guardanapo pela boca oleosa dos molhos
—, permita Vossa Excelência que eu beba antecipadamente a um próximo e jucundo restabelecimento.
—
Muito agradecida, senhor padre, muito agradecida e que Deus o oiça — dizia a velha, molhando os beiços nos dois
dedos de Lacrima Christi, que a governanta lhe
lançara no copo.
E mostrou desejos de conhecer as
terras próximas — a aldeia, como
ela dizia. Se
havia fé, gente de
certa ordem, fortunas..
Padre Nazaré dava pormenores. Nos campos a fé não abundava já, como no tempo dos frades. Tudo se ia
inficionando da lepra das cidades, não havendo
barbeirola que não lesse os jornais e não pregasse heresias por essas vendas. Jogo,
má vontade ao trabalho além disso.
Não compareciam à confissão, não iam à missa. . — E fazendo um
gesto beato:
—
Pervertidos — dizia —, pervertidos! Nas mulheres, mesmo assim, não era tanto. O coração da mulher é mais
entranhável à religião e à fé. De resto, nas escolas não ensinavam orações. Conhecia
rapazes que nem o padre-nosso diziam de
cor.
—
Santo nome de Jesus! — clamava a governanta, com um fervor intenso nos olhos..
vinho do Porto e devoção. A senhora
fidalga lembrou prédicas aos
domingos, depois da
missa, sabatinas de doutrina para
os rapazes, com um
fato novo por mês ao que melhor soubesse as rezas.
Punha as mãos engelhadas como
implorando clemência, de olhos em alvo ia resmungando:
—
Não sei onde
isto há de
chegar, meu Deus, não sei onde
isto há de chegar!
A governanta atribuía as secas,
as guerras, as fomes e as epidemias ao estado impiedoso das almas. Que isto de não comungar era medonho...
Diz que apareciam as alminhas
negras, com chavelhos, aos berros.
—
Credo, mulher, que até faz arrepiar — increpara a fidalgona, fazendo a cruz nos seios chuchados.
E ergueu-se, tomando o braço do
padre Nazaré.
—
Dê-se ao incômodo de mostrar a
cerca, senhor padre. — Vagarosamente
desceram a escadaria de pedra, toda coberta de caracoleiros e heras, que vinha abrir em leque ao alto de uma
rua de loureiros e eloendros.
Manuel do Cabo albardava o
Ginaia, depois de jantar brutalmente na cozinha, mais o hortelão. Quando o padre passou rente,
o sacrista perguntou-lhe:
—
Então?
—
Dentro de um mês está pago em dia — disse o outro, e foi andando.
A velha simpatizara de vez com o
padre Nazaré, achando-lhe a compostura grave
e a palavra cristã. Somente lhe via um defeito — era talvez um pouco campónio,
mãos grossas e sem anéis, uma
rugosidade de pele que dava contactos irritantes.
—
Enfim — dizia a governanta —, na falta de outro...
Padre Nazaré, pelo seu turno,
andava regalado e contente.
Vinha almoçar e jantar todos os
dias, grandes cuidados com as
camisas, e barbeava-se
a miúdo. Nos primeiros dias tivera
contrariedades. Aos seus instintos
de agricultor brutal repugnavam as
branduras da catequese, os melífluos conselhos
ditos entre citações de Santo Agostinho, João Crisóstomo,
Carlos Barromeu e Basílio, autores
porque, valha a
verdade, passara a correr, havia
bons anos, no seminário. Afizera-se, desde que residia na
vila, a uma
vida de episódios rudes,
vindimas, ceifas e agiotagem sistemática. O
seu gênio violento dava-lhe intermitências de cólera biliosa, durante as quais rogava pragas e dizia
obscenidade. Sabia o valor do dinheiro, e
conforme usava dizer — poucos o enganavam. Adorava
o doce. Em pândegas de amigos,
porém, gozava fama
de gracioso e sabia beber. Como pregador
era falado nas terras próximas — boa voz, fazendo chorar na Paixão, gesto dramático e uma ênfase
pouco seguida em geral nos
púlpitos da província.
Chico Praça,
poeta da vila e
o que mandava correspondências ao Bejense, costumava dizer na loja do Burjaca, aos
proprietários que ali iam palestrar, às noites:
—
Para coro o padre José Pereira, mas no púlpito o Nazaré.
E todos:
—
É pena que se não dedique!
Eram suculentos e escolhidos os
almoços e jantares da senhora fidalga, vinhos de feição,
loiças, um ar de festa,
natas e doçarias de Lisboa. Padre Nazaré gostava, e vinha dizer para a loja, aos
proprietários:
—
Bela pastelaria hoje!...
Ou então, arrotando com pompa:
—
Diabo! Pois fizeram-me mal as perdizes trufadas.
Aquelas bazófias excitaram ciúmes
na terra; muitos diziam
com um riso pérfido:
—
O mariola achou a ama ao seu gosto!
E alguns, cuspindo:
—
Ora o estupor!. .
Pouco a pouco,
padre Nazaré foi-se afazendo ao
novo estado, lia o Fios Sanctorum
em casa para alardear de
instruído, limava as unhas
e andava gordo. Na
Feira de Évora, trocou a
mula por uma égua castanha,
comprou arreios vistosos e
estribos de ferro. Ia todas as manhãs
dizer missa ao convento e ouvir a
velha de confissão. À medida que ascendia no espírito da fidalga,
tratava de complicar os regulamentos da devoção,
dificultando a entrada no reino
dos Céus e pintando Deus como
um rábula exigente,
que embirra com as comidas dos
seus fiéis, e com as palavras e vestidos das mulheres. Segundo ele tudo era pecado;
Deus vigiava das nuvens a humanidade;
a vida era simplesmente a antecâmara
do grande reino da luz, onde cada
mortal mal tinha tempo para
se lavar das pústulas malignas originadas da carne, e transmitidas de Adão. E
recomendava à velha as ásperas penitências
que alquebram, horas e horas de joelhos ante os altares, desfiando rosários bentos e lendo com voz lamentosa
as biografias dos mártires e doutores
da Igreja.
Este regímen alterou a saúde da
velha e ligou-a pelo terror cada vez mais ao padre.
—
Só me sinto bem, ouvindo aquele santo! — dizia ela com um escarro na goela.
— E com inflexão de grande medo:
—
Oh! não me desampare com os seus conselhos, não me desampare com os seus conselhos!
De vez em quando, Manuel do Cabo
interrogava padre Nazaré:
—
Então o homem chora ou não chora?
—
Mais tarde. Você entende.
—
Pois até hoje, meu rico, nem lágrima.
—
Com água quente, é que é. Você entende.
—
Só se for isso. A fria não dá resultado.
Depois com ares profundos:
—
Que as lágrimas são mornas. Sendo suor, já era outra coisa. Há suores frios! Andava mais alegre, recebera três meses
de ordenado e um presente de pêssegos, dos melhores.
E ao entrar na vila, sobre o Ginaia, cantarolava brejeiramente
lançando chufas às lavadeira
— suas maganas,
com quem tinham dormido a noite
passada? Que lavassem as
pernas, grandessíssimas porcas!
As noites eram abrasadas e eternas. Não bulia
folha na horta,
os moços do campo dormiam ao relento sobre as mantas, e tendo por
travesseiro as albardas dos jumentos. Nos aposentos da fidalga somente, as
janelas permaneciam fechadas, não
apanhasse Sua Excelência alguma constipação. As casas de cima, de baixos tetos abobadados e sobrados carunchentos,
antigas celas de frades modificadas para residência
profana, constituíam verdadeiras estufas no Verão.
Nos corredores
circulava um bafo morno,
impregnado de bafio, alfazema velha e incenso — o que recrudescia de um modo
terrível a asma da beata. Toda a noite a
governanta levava a abaná-la com ventarolas do tamanho de sombrinhas e a enrolar-lhe em papéis de seda
enormes cigarros de figueira-do-inferno, ao som de intermináveis rezas e
custosas promessas ao Senhor dos Passos. Porque era
agora cega a fé da
velhona, na sacrossanta
imagem do Redentor. Contara-lhe o padre a história
do convento, sua antiguidade e virtudes.
Em tempos antigos,
os frades vendiam uma
espécie de licor, que curava da
peste e punha saradas as úlceras
mais daninhas. Rezavam as crónicas do convento, de um
almirante do mar das índias,
da casa dos senhores da
Vidigueira, que, voltando de longínquos países
coberto de um vergonhoso mal, se
curara de pronto, tomando o benéfico elixir. E junto ao tanque de pedra tinha aparecido ao venerável
padre frei Vicente das Sagradas Angústias,
ancião que rasgava suas carnes a golpes de azorrague — a figura de Jesus Cristo,
feito homem e cheio de
Espírito Santo, vertendo sacratíssimo sangue das suas feridas, coroado de espinhos e
clamando:
—
Faz penitência, Vicente, faz penitência, que serás comigo no reino dos Céus ..
Ainda agora se mostrava
na terceira lájea do
tanque, ao pé do cipreste, o vestígio
da pegada do Salvador do Mundo.
A velha derretia-se em choro
ouvindo tais prodígios, batia nos peitos cheia de uma convicção fanática, e bradando em guinchos
de possessa:
—
Oh misericordioso Jesus, que eu não sou digna!
Oh misericordioso Jesus, que eu não sou digna! —
enquanto pelos esconderijos
a governanta manducava sofregamente, aos ladrilhos,
covilhetes e covilhetes de marmelada. O
episódio do choro de sangue deu, como nenhum outro, insônias e delíquios à pobre mulher.
—
Há coisas — aventurou ela de olhos baixos, quando certa manhã ouviu narrar o milagre —, há coisas que só vistas.
Padre Nazaré não deu resposta,
mas à tarde trouxe nos alforges a Crônica dos Capuchos, com um sinal na passagem lida pelo
sacristão.
—
Eu não duvidei, senhor padre
— dizia
a velha. —
Ora Deus nos perdoe! Assim minha alma se salve, em como
eu...
E no dia seguinte,
a título de remissão dos seus pecados, entregou quatro libras ao padre Nazaré, para
esmolas e missas. Em Setembro
os males da velha agravaram-se mais, os ataques de asma
repetiam-se, a tosse era profunda e
entrecortada de pieira estridulosa,
que lhe resfolegava nas cavernas
dos pulmões. Uma
noite vieram chamar o padre à
vila a toda
a pressa. A velha estava pior, lançara cóleras, falava em
confessar-se...
Padre Nazaré mandou acordar o
sacristão e disse-lhe:
—
Venha comigo.
Cavalgaram as alimárias caminho
do convento, e ao verem branquejar à lua as paredes da
cerca, pelos claros da
folhagem, o confessor da senhora
fidalga disse ao seu acólito
estas cinco palavras:
—
Água quente para esta noite.
Era um ataque dos maiores, com
silvos e espasmos prolongados. No quarto abafava-se na exalação das mostarda e do
estramônio.
Em saia branca e chinelos, a
governanta fazia cigarros e preparava banhos.
E ante cada
retábulo de santa
ou asceta ardiam velas e lamparinas. Padre Nazaré conhecia um
pouco a moléstia; tivera
uma irmã que sofrera dela longos
anos. O seu primeiro cuidado foi mandar
abrir as janelas. para restabelecer a corrente de ar. A velha jazia
numa poltrona ao pé da cama, o escarrador ao lado,
tronco um pouco inclinado para a
frente, o hausto arquejante.
—
Então como se acha a nossa doente? — perguntou carinhosamente o padre, curvando-se para ela.
A velha mal podia falar e fez um
gesto vago.
—
Ouça — disse o padre à governanta —, deite-lhe sinapismos no peito e nas costas.
—
Já lá os tem — disse a outra, fazendo-se doutora.
—
Bem. Um vomitório então. Água
morna aos copos;
façam-lhe depois cócegas com uma
pena, nas campainhas.
E em voz alta, para que a fidalga
ouvisse:
—
Mandaram acender a lâmpada do Senhor dos Passos?
—
Há que tempos! — disse a governanta.
A esse tempo aquecia
Manuel do Cabo a cafeteirinha de água na cozinha, disfarçadamente. E,
quando a viu ferver em
cachões, desceu à igreja, pela escada do coro. Havia um silêncio lúgubre,
trevas densíssimas no santuário e piar de corujas nas ventanas da torre.
Junto de uma fresta
gradeada, à esquerda, abrindo para
a horta, a
folhagem de um chorão
gigantesco fazia marulhos confusos,
de maré que sobe. Fora, nos
plátanos da ribeira,
os rouxinóis conspiravam, e
réstias de lua, brancas e vagas, entravam pelas janelas do coro, pondo luzernas no lajedo das
sepulturas rasas.
Manuel do Cabo desceu de mansinho a escada
de tijolo carcomido,
que caracolando vinha
abrir-se por baixo do púlpito. Os arcos
das capelas cortavam nos
muros alvacentos da igreja
enormes bocas escancaradas, em cuja goela
as linhas das imagens se
esboçavam, sem relevo. Ouvia-se
o roer das ratazanas nos madeiramentos
carunchosos, e o rumorejo do chorão nas gradarias
da fresta. Manuel do
Cabo parou diante da
capela do Senhor
dos Passos, à
escuta. Nalgum corredor distante batia uma
porta. Havia conversinhas aos cantos,
que ora se afastavam, ora renasciam.
A boca do camarim enramado de cipreste, o clarão
noctâmbulo da lâmpada deixava ver um
pedaço de cruz negra, e mais na penumbra a lívida cabeça desgrenhada, que pendia no peito com um desalento de morte.
Tudo o mais era confuso, acumulado e
movediço, aparecendo nas trevas com projeções colossais, cheias de pavor. O vento vinha a espaços, como se
fora um hálito, fazer bruxulear a luz — e
despregavam-se então dos ângulos formidáveis, desde a abóbada até ao pavimento, massas de espectros, que ante o
sacrário deserto vinham dançar sabbats alucinados.
Para falar franco, Manuel do Cabo
não estava muito à sua vontade, não. Medo não era bem, realmente. E relanceando a vista,
com a cafeteira a escaldar-lhe nas mãos,
disse para dentro de si:
—
Olhem que belo sítio para a gente apanhar um tiro...
Veio-lhe à lembrança
o Estragado, que, por
duas vezes, contra ele
pusera à cara a espingarda, e lhe prometera muito cedo
notícias frescas.. E o Chico da Aroeira, que andava fugido de soldado e lhe
provara do cacete, de uma vez em que
fora apanhado mais a Escolástica, no palheiro.
—
Além disso — pensava ele — isto cheira a patifaria que tresanda.
Olhou à roda, esteve quase a
voltar para trás. Mas que diabo!.. . Era uma vez. Se a coisa pegasse, ninguém perdia com isso,
aumentava-se a fé no povo — que era
pouca, com seiscentos diabos. Não pegando, era como se nada tivesse havido. E os proventos a gozar, o asseio da
igreja, as procissões.. Até era bom para a religião, bem pensado. Andaria pago à
hora, boas gorjetas, ali estimado como
um rei. E tudo por uma gotinha de água quente. Ora adeus!
Subiu as escadas de mansinho, com
a cafeteira.
Logo à entrada do camarim, deu de
cara com um vulto. O Estragado. Santo Deus!
Entornou a água a ferver pelas mãos. O
vulto olhava-o imóvel, todo barbado. Era
um judeu da quadrilha, pintado na parede. Manuel do Cabo resfolegou com força, e foi sempre apalpando —
um judeu, não havia dúvida. Diabo de
peça! A gente às vezes até está parvo, senhores.
E entrou a desaparafusar a cabeça
do santo. O sino deu três horas — às três e meia, no Verão,
é quase dia. Nas
lájeas, a luzerna do luar ia-se pouco a
pouco apagando. Os cães da horta
soltavam uivos.
—
Cheira a defuntos que nem diabo! — resmungou Manuel do Cabo. E na escavação interior da cabeçorra chagada ia
deitando água quente.
—
Assim também eu faço milagre, senhor padre! — trauteava o mariola, já tranquilo.
Às quatro horas, padre Nazaré
veio ter com ele.
—
Já?
—
Poucochinho, mas promete.
—
Bem. Vamos dizer missa mesmo no quarto da velha.
—
Então o estafermo morre ou não morre?
—
Mais respeito, homem! Podem ouvir.
—
Vamos a saber?
—
Está mais aliviada. Dormita.
—
Temos dinheiro por um sarilho, compadre.
—
Venha daí.
Sentindo-se mal, a fidalga
quisera confessar-se, resolução que em coisa alguma transtornava os planos do padre Nazaré. Umas
poucas de vezes a governanta, aflita
pelo carácter grave que a coisa parecia ir tomando, chamara o confessor de parte.
—
Que se havia perigo, seria bom chamar o médico, mandar um telegrama para Lisboa ao menino Tristão, falar à senhora
em testamento. Ela tinha um medo... não
queria responsabilidades; era uma serva antiga, mais de trinta anos de casa, quase uma pessoa de família. E com
insistência voltava ao tabelião, dizendo
casos de pessoas que se tinham ido sem testamento. A D. Mônica, tia dos Palhas, havia de conhecer; o doutor
Mendonça, dos Próprios Nacionais, sem
herdeiros e podre de rico, que ela servira
dez anos, ficando por fim a chuchar
no dedo... Que não dizia aquilo por
interesse, mas, enfim,
era um descargo de consciência. Na
penumbra do corredor,
os seus olhos luziam cobiçosos e a sua voz saía baixa, breve, quase
sibilante.
—
Havia muita prata,
roupas, três baús de loiças
do Tapão. Casa antiga. Lembrava-se de três governadores da índia, e uma
quantidade de arcebispos na família. Ah,
lá isso... Nobreza da melhor. E, pondo a mão febril no braço do padre, voltava à carga:
—
Se havia perigo... Nada, nada de responsabilidades!
Por seu lado, padre Nazaré certificava que não havia
motivos para espalhafatos.
Um ataque mais cruel, eis
tudo. Que ele sabia
proceder como homem e como
sacerdote. E punha a mão aberta no peito, na atitude austera de um iluminado.
—
Como homem e como sacerdote, D.
Doroteia! — dizia com força, espaçando as palavras. Passara
muito na vida, para
estar precavido contra eventualidades
de qualquer ordem. De resto, afirmava com intenção, não lhe tinha
vindo a ideia
do testamento, servia as pessoas desinteressadamente, como lho ditava o seu coração, porque sabia
ser amigo.
E enfático:
—
Amicus certus in re incerta
.. D. Doroteia!
—
Ah, em desinteresse não está o senhor padre mais rico do que eu, há de perdoar. Credo! Os modos de dizer as coisas! É
perguntar à senhora fidalga, ao menino
Tristão e a todos de casa, quem eu sou e de quanto por esta gente tenho sido capaz. Olhe que conheço a família
há muitos anos. Não é o senhor que me dá
lições a mim.
E, numa vertigem de narrativas
para que não tinha loquela avonde,
punha em relevo a sua
dedicação, o que aturava
pelas doenças dos senhores, o que
merecera de confiança e estima em toda
uma vida de serviços sem preço, o seu
amor pelas coisas da casa, e o trabalho com os gatos e cães da senhora fidalga, que lá por animaizinhos era cega — não
faz ideia!
E protestando, contando, tentando
fazer-se valer, andava à roda febrilmente, com uma
gula planturosa de avara,
as mãos espalmadas à altura
dos olhos, onde luziam anéis chinfrins de meia libra.
Padre Nazaré nem escutava, mas
dizia de vez em quando, para acalmá-la:
—
Eu bem conheço isso, D. Doroteia,
bem conheço isso! De resto,
a senhora fidalga fizera-o ciente
de tudo. Quantas vezes lhe tinha ouvido — que a Doroteia com ser sua governanta não perdia
os foros de boa amiga! — Ah, era tida em
alta conta, creia isto. E por toda a gente, palavra de honra! — que o não dizia por ela estar presente.
—
Demais — acrescentava, embaindo-a, com a voz ejaculada e surda, de uma
discrição culposa, com que
no confessionário arrancava revelações picantes
às boas moças do campo apavoradas do inferno —, demais,
quem lhe diz à senhora que no
testamento da fidalga não há um legadozito..
E vendo-a suspensa, o riso parvo
de quem apanhou a sorte, sublinhava umas poucas de vezes o alvitre proposto, repetindo:
—
Sim, quem lhe diz à senhora?..
—
Quê? — disse a Doroteia quase a abraçá-lo, com um bocado de rolo a despregar-se-lhe da cuia. — O senhor padre
sabe?
—
Perdão — atalhou logo padre Nazaré —, eu não disse...
E, enquanto a
outra ficava no
corredor deslumbrada, entrou no quarto da velha com ares de levita vergado à imposição
de um jumento, ombros altos, um jeito
vago de mãos e dizendo com um riso ambíguo:
—
Segredos da confissão, D. Doroteia, segredos da confissão!
Ficara satisfeito com o manejo
político que tinha posto em prática. Apre! que estivera quase a acarretar o ódio da
governanta — uma zorra que a sabia toda! E devia ter sido bem boa! Mas estava velha,
quando não.. E, mais tranquilo, dizia para consigo:
—
Deixá-la do nosso lado. Não se
perde nada. Tinham já acabado de armar o quarto da velha, para a cerimônia da
comunhão. em frente do leito e na mesa
improvisada em altar, um crucifixo enorme, velho marfim de lividez polida, enchia a parede do fundo, que uma
colcha de damasco azul, grandes relevos fulvos,
vestia de tons doces, ouro e céu, à
luz dos castiçais e entre tufos de renda,
dos grandes cortinados
pendentes. À cabeceira
da cama e numa
baixa poltrona, ampla como um
divã, arquejava a
doente, entre almofadas de todos os
tamanhos, o escapulário branco de
Santa Clara na cabeça, destacando
num fundo de estampas devotas e rosários tocados
em mantos de várias autoridades celestes.
Quando o padre entrou, a velha
tinha os olhos fechados e as mãos errantes nos braços da poltrona. O escavado da face
denotava intensa fadiga, e haustos fundos, arrastados,
difíceis e terminando em silvo, davam-lhe um
jogo angustiado ao cavername do
peito opresso. Ele andava nos bicos dos pés para não fazer ruído; mesmo assim,
porém, as suas botas
novas rangiam, com ruídos impertinentes de janotinha de província. E,
sentando-se junto à poltrona da velha, tocou-lhe na mão com os
seus dois dedos suados. Cortara o cabelo
de fresco, à escovinha, e aos cantos da testa alongavam-se para trás, lustrosos de excreção gordurenta
e destacando no luzidio dos
cabelos, dois crescentes de calva precoce,
onde ressaltavam relevos complicados
de veias. Visto de perfil era
um pouco adunco, sobrancelha
cerrada e tons azuis de barba espessa pondo-lhe no focinho como que as
linhas de um açaimo. Tinha olhos grandes
e bem fendidos, globo um
pouco injetado, estourando para diante,
e um raio sagaz de pupila que se
lubrificava todo ante as nudezas trigueiras e túrgidas das raparigas da monda.
Procurando fazer adocicada a rude voz de que dispunha, disse para a
fidalga, de olhos baixos:
—
E agora? Melhorzinha?
A velha ergueu a mão para fazer
um gesto. E quase em segredo disse:
—
Assim...
—
Pois visto que se sente mais aliviada vamos à confissão, para rezarmos depois a oração do Cireneu, que é infalível,
infalível!
Dava explicações
sobre a oração do Cireneu. Tinha
lido na Crônica dos Capuchos, de curas miraculosas obtidas pela reza em
triplicado de certa oração mandada ao convento por S. Simão
Cireneu, residente não se sabia em que
parte, e a instâncias
do nosso venerável prior
frei António da
nossa Senhora, para
uso de grande cópia
de enfermos dos arredores.
Para que da recitação da
prece pudessem tirar-se
seguros resultados, urgia
fazê-la recitar em voz alta e ainda de manhã, por três pessoas
ao mesmo tempo, sendo duas fêmeas e um
macho, todas de crucifixo alçado e prostradas em joelhos ante a hóstia consagrada.
A doente por cuja intenção se
fizesse a reza seguraria o sudário, enquanto a espaços um padre lhe iria chegando aos lábios
a esponja embebida em vinagre, arremedo
do que fora praticado com Jesus Cristo, durante a agonia.
Ouvindo a última
palavra, a velha
tremia sem responder. Mesmo assim macerada de rezas e práticas devotas, sentia
no íntimo o terror invencível da morte.
Era verdade
que as almas, escapando-se
dos corpos como perfumes de ânforas, em ondulações suaves iam subindo aos domínios
da luz, a cristalizarem-se na
eterna graça, sob a unção dos
trenos e no revérbero da imortal pureza. Mas o corpo que ela podia
palpar e sentir, o que tinha dores, anseios, cansaços,
apetites e suores fétidos, esse que ela
facultara nos seus tempos de dama
do paço às excitações de
récua, do senhor D. Miguel
e os seus companheiros, e nos minuetes langorosos
se tinha requebrado com meneios de afetada galantaria,
na tenebrosa algidez do sepulcro
buliria todo negro, nessa viscosidade da podridão sinistra,
que é a última infâmia da carne!
Vendo-a inerte e muda, padre
Nazaré tratava de aclarar-lhe bem as origens da oração proposta, no intento de lhe extinguir
os terrores e as sombras funestas. Simão
Cireneu fora o fiel amigo que nas ruas da amargura consentira tomar sobre os
seus ombros robustos a cruz, sob que o Cristo vergava,
no trajeto para o suplício. Ele
conhecera passo a passo os transes da Paixão, tinha falado com o Salvador, participado da sua angústia e
chorado das suas lágrimas. Era o grande
confidente do Filho de Deus, e
tinha sido ele o autor da
benéfica oração, que até grandes
já tinha ressuscitado. Era forçoso pois experimentar, para bem cumprir os preceitos do Senhor.
—
Pois sim, sim — dizia a velha afinal.
E, pondo as mãos, balbuciava a
confissão.
Havia já sol quando a oração do
Cireneu acabou. Fatigada por toda uma noite de sofrimentos, e sob o predomínio moral da
complicada reza, a velha tinha conseguido
repousar um pouco. Abafara-se-lhe mais
a pieira, e a
respiração readquiria-lhe um
ritmo plácido. A Escolástica, avisada por Manuel do Cabo, tinha vindo logo de manhã com o seu xale de
ramos e lenço de seda escarlate, o livro
de missa na algibeira
da saia. Em ação
de graças pelas melhoras da senhora, padre Nazaré celebrou missa desse
dia na capela
do Senhor dos Passos, a que vieram assistir todos os homens
e mulheres do convento.
Terminado o sacrifício,
enquanto Manuel do Cabo
ia buscar a um
canto o apagador, o padre, erguendo a
voz, pediu uma Estação pelo inteiro restabelecimento da
fidalga, de quem fez o panegírico em grandíloquas palavras
— mãe de raras virtudes, boa protetora
dos interesses de Deus e benemérita da graça divina.
E todos rezaram a meia voz a
Estação pedida, enquanto, abrasada em fervores místicos, a governanta unia a face às lájeas
da capela, desatando em prantos e suspiros,
toda de preto e mordeduras de pulgas no pescoço tísico.
Aquela exaltação comovera a
Escolástica, que disse para a mulher do caseiro:
—
Se não há de ter amor à fidalga, vivendo há uma quantia d'anos na sua companhia!
E a outra, arrebatando nas unhas
um piolho que lobrigara na trunfa do filho, durante a reza:
—
Com uma certeza — apoiava —, com uma certeza!
Mal o padre saiu da
igreja, a Escolástica ergueu-se para ir fazer a
oração ao camarim do
Senhor dos Passos, a depor-lhe no sacratíssimo pé o beijo convencional.
Subiu a escada com o livro de
missa nas mãos, de olhos baixos, as mulheres da
horta atrás de si. E,
ajoelhando todas à roda
da imagem, entoaram a ladainha, porque a Escolástica tinha grande
paixão.
Era a
filha do sacrista quem entoava
os louvores ou vozes; todas as outras mulheres respondiam atabalhoadamente.
—
Ora, á pornobis!
E ao Agnus Dei, como as burras se enganassem, a Escolástica
repreendeu-as com a sua voz birrenta, de
sabichona. Então o filho do caseiro, que andava à roda bulindo, erguendo a túnica da imagem e
dando-lhe puxões na guedelha, gritou de
repente com dedo estendido para a face do ídolo:
—
Mãe, sangue!
A caseira, que estava de lado,
alongou um pouco a cabeça na direção em que o rapaz apontava, e pôde ver uma lagrimazinha
vermelha, que, caída da pálpebra do
Senhor, vinha pela face lívida fazendo um traço de sangue miraculoso.
A pobre mulher nem pôde dar
palavra, levou as mãos à barriga abaulada por uma
prenchez medonha, revirou os
olhos e caiu para trás barafustando. Ao mesmo
tempo, a Escolástica, que da pálpebra do seu lado vira cair também a sua gotinha de sangue, abalou pelas escadas,
largando o livro e fazendo cair a rapariga
do caseiro. E, possessa, berrava igreja abaixo em direitura à horta — que acudissem, aqui-del-rei, não era coisa
boa, ia acabar-se o mundo! Foi o sacrista
quem primeiro acudiu à
berreira, e picando o
charuto para a cigarrada de ripanço:
—
Qual acabar-se o mundo, nem qual diabo! O
mundo não dá fim, enquanto
houver santos que façam milagres
e desavergonhadas que creiam neles.
E numa expressão de riso cruel,
tomando assento na borda do tanque:
—
Malandros e bêbedas! É o que há.
Ao meio-dia divulgava-se em Vila
Alva o milagre, e a população em chusma, num burburinho de cortiço, abandonava
a terreola caminho do convento, toda inflamada
em fanatismos e salmejando orações
e ladainhas. À medida que se adiantavam na estrada, os magotes
reproduziam-se e aumentavam, pelo concurso
da gente que iam encontrando a trabalhar nas fazendas. As beatas ricas tinham aproveitado a ocasião para fazer
toldar os seus carros alentejanos, puxados a
mulas e cobertos de um
toldo primitivo, de lona
e caniçados. Algumas em jumentos, de cadeirinha, chouteavam adornadas de
cordões de oiro, mitenes de retrós nas mãos ósseas, e leques hereditários pintados de escudeiros
e reis. As do Silva, um ricaço da terra, levavam mantas de lã azul, de borlinhas,
pregadas em escapulário, com
ganchos representando malmequeres. E
semelhante luxo fazia sensação na romana.
Chico Praça, com risos céticos de
homem que lê, fora também no machinho do
pai inspirar-se e gozar um bocado daquela saloiada ignorante. E, espetado num charuto de vinte e cinco, fumo de merino enorme no coco dos domingos,
manta verde com perinhas bordadas, calça curta arregaçando sobre os
elásticos das botorras e o atilho da
ceroula à mostra,
cumprimentava fidalgamente os
ranchos, procurando informar-se do modo de ver geral acerca do prodígio.
As raparigas voltavam-lhe a
cara ouvindo-o escarnecer dos santos.
—
Judeus! — diziam.
E umas para as outras, como se falassem de uma universidade:
—
É o que eles vão aprender a Beja!
Atrás da chusma
arrastava-se cacarejando a gente pobre,
mendigas velhas e descalças,
fisionomias de cera abrasadas por esses olhos chamejantes do meio-dia, em que se
repinta em clarões a efervescência das índoles cálidas
e insofridas; velhos pastores inválidos, cobertos
de peles safadas, polainas de feltro, cajados nodosos, e um anguloso seco de
múmias, e rapariguitas rotas, vivendo do
rolão córneo das esmolas e que a
lama cobria de costas pardacentas.
E todos, numa passividade receosa, eternos vergados à penúria que envilece, lá iam
custosamente, parando nos cotovelos da
estrada para retalharem os comentários sugeridos pelo caso, ou recomeçar com voz quebrada o terço lúgubre da penitência. Muitas
mulheres levavam azeite para as lâmpadas
do convento, ofertas de pão cozido, fogaças de
galinhas e borregos novos. E corria em
segredo que as Silvas tencionavam
oferecer ramos de penas comprados em
Setúbal, nos banhos do ano passado.
Porque no grosso beatério da vila
a surpresa do milagre vinha de feição, com os seus embevecimentos místicos e esse brumoso
da legenda que dá febre às imaginações
sobreexcitadas. Havia duas semanas que escasseava tema para as parlendas de soalheiro. O último caso de
aborto tivera lugar havia já um mês —
velharia em que mal se falava já. E em casa das Silvas e na loja do Burjaca, às noites, arrotando sobre a azia do ensopado
das ceias, a boa gente lamentava num
fundo de saudade e desespero:
—
Maldita terra! Nem há em que se converse...
O mulherio acreditava
fanaticamente no sangue do Senhor do convento, uma lição a esses hereges que vinham do estudo
falando mal dos santos e rindo da confissão
e da missa. Deus não era pois
uma palavra vã! Vivia,
amando sempre a humanidade e chorando pelas suas loucuras e
crimes, no fundo melancólico de um
templo, que a guerra
civil profanara e derruíra,
nas suas contorções de bacante. Iam
começar os bons tempos
de fé absorvente e sincera, em que as almas vestem a
gaze da inocência para
os esponsais da bem-aventurança. Então, por esses campos verdejantes,
no fundo desses olivais
contemplativos ou sobre as colinas e charnecas em que ora esbravejavam, selváticas, piorneiros
e tojais, erguer-se-iam de novo
os eremitérios alvinitentes, cruz
erguida nas fachadas, um cordão de tílias no adro e a porta aberta como refúgio aos vergastados
pela miséria, ou pelo desalento. Viria o bom tempo das procissões do campo e
das festas a órgãos, em que as vozes dos
frades entoariam a missa num êxtase seráfico, do fundo dos seus capuzes benditos. E essa azinhaga lúgubre que
conduzia às ruínas, o claustro transfeito
em lagar de azeite e as celas aproveitadas para residência de gente mundana regurgitariam novamente
de fradinhos gordos, olho doce e
dentes gulosos, que em tardes de
primavera, das grades do coro, lançassem cantigas brejeiras às roliças lavradoras
ingurgitadas de desejo e devoção erótica — como
noutro tempo. Muitas velhas ainda eram do tempo dos frades; algumas mesmo
tinham dado guarida a
guardiões varrascos, por noites chuvosas, enquanto
os maridos na
adega ressonavam espapaçados no
vinho dessas bebedeiras do
Alentejo que chegam a durar semanas. E,
voltadas para o passado em que se reviam frescalhonas e vivas,
as pobres davam suspiros de mágoa,
lamentando a falta de crenças de hoje, e batendo com as cabeças nos toldos do carroção, a cada solavanco do eixo.
Nos homens era menos sincera a crença
do milagre. Iam poucos na
romaria, e esses mesmos seguiam o femeaço para namoriscarem a torto e a direito.
Padre Nazaré contara
discretamente o prodígio
na loja do Burjaca,
palavras simples, sem
paixão e sem comentários. Não lhe
convinha muito tornar-se herói do caso.
Velhaco como era, tinha fé em que os ânimos se acenderiam por versões mais escandecidas e pelos exageros
e mentirolas que na boca da gentalha
usam acompanhar os episódios de força como aquele. Efetivamente corria já na vila que a Escolástica caíra de
cama, faniquitos a cada instante, um esbracejar
de endemoninhada debatendo-se nos pulsos de dois sapateiros vorazes, que a tinham de olho havia muito.
Ao mesmo tempo, o sacrista
referira na venda do Salta-Pocinhas, à malta que ali
se juntava para beber fiado,
a história circunstanciada da
velha, as suas peregrinações
a Lourdes, a
sua grande fé e a
sua caridade, uma
carinha de santa, muitas esmolas. E,
transfigurado, tinha descrito a
imagem do Senhor dos Passos, chagado e de olhos abertos, de
cujas pupilas fixas parecia sair a claridade
de além-túmulo, o quer
que era dava terror e fazia
arrebentar de paixão. E as
opiniões começaram a desfilar através das conversas, fuzilando, lutando, fazendo contraste. Uns
criam no milagre, impondo condições. Outros andavam perplexos. Alguns riam.
—
Pode lá ser!
Já se contava que o choro do
ídolo não era de hoje. Até ali ninguém reparara. ainda se o santo desse berros!. . Mas, calado
como era, não atraíra as atenções de
ninguém.
—
Quem havia de dizer!..
— ponderava a D.
Maria do Juiz. — Um Senhor de pau, como outro qualquer! E havia
quem tivesse já desconfiado.
Algumas velhas até sonhavam
todos os dias com a imagem,
resplendor na cabeça, cruz às costas e a fazer-lhes sinais.
E as outras, escutando, ganiam, de olhinhos
piscos:
—
Também a mim! Também a mim!
Mas o carreiro das Silvas, que
ouvira tudo muito calado, largou esta de chofre:
—
Ponho as mãos numas Horas em como é pouca-vergonha dos padres!
Ameaçaram-no logo. Pedaço de
bêbedo, grandíssimo traste que já queria ter opinião
nas conversas das suas amas, o malcriado!
E, enquanto elas ralhavam da petulância
do moço, a mais
gente, nos seus carros
e nos seus jumentos, ria
maganamente, pondo uma nota
rutilante na prática escura de sacristia das senhoras
devotas imbecilizadas e secas.
Assente pois que a
lágrima de sangue segregada
diretamente por Deus, e escorrida
da pálpebra óssea do ídolo, mantinha partículas divinas, gêmeas das que ficavam no cálice, durante a
missa e à invocação do celebrante, toda a
gente estranhou que o prior da vila não
mandasse repicar os sinos, marchando logo
com a irmandade sob o pálio rico, a buscar em procissão solene o Senhor dos Passos.
Ao subir para o carro,
paramentada de seda roxa e toda de véu pela cara, a D. Maria do Juiz, dando com o pároco a passear na
praça, ainda lhe perguntou o que
tencionava fazer.
O velho olhou-a por um bocado muito sério, e
disse:
—
E a senhora?
—
Ora essa, senhor padre!
Cumprir com o meu dever de cristã.
Vou penitenciar-me diante do nosso Senhor. E seraficamente: — Que
estão chegados grandes dias!
—
Pois, felicidades.
E sem mais améns, o
velho continuara a passear, batendo
na caixa de rapé. Era homem de
cinquenta e tantos, calado e grave, com a bondade rude que nasce da misantropia aldeã em perpétua
contemplação do mesmo horizonte e das
mesmas árvores. Velho leitor da Revolução, e liberal de têmpera, viam-no sempre
pronto a bramir contra os escândalos que manchavam o sacerdócio, violências,
seduções, roubos, toda
a casta de vícios.
Intimamente rosnava contra a penitência, a confissão e essa
idolatria das imagens, que torna mais alvar
ainda o povo das freguesias.
Em geral vivia recolhido, longe
dos focos de opinião da terra, dizendo missa na matriz ao romper do sol, percorrendo à
tarde as fazendas entre um cajado e
um cão amarelo, e passando as noites em caso do médico, no seu interminável voltarete.
Quando lhe falaram no
milagre, o prior bateu na mesa
iracundo e trêmulo, exclamando
rudemente:
—
Nunca se viu pouca-vergonha maior!
E logo todo pálido, receoso de
ter concorrido para o
descrédito da batina, agitava o lenço vermelho trovejando:
—
Homem, é melhor que não me façam falar!
Aquela violência
alastrou-se de boca em boca, espicaçada
por comentários mordentes e velhacas interpretações. Era
opinião que o prior detestava padre Nazaré
e sentia atrozes ciúmes do seu talento oratório e da sua fama de rico. Havia anos que os dois se não falavam por
caturrices de eleição. Além disso, as preferências da fidalga pelo outro tinham
sido consideradas na terra como humilhantes
para o pároco — um rústico! como se dizia em casa das Silvas. Durante
toda essa manhã, muita
gente fora consultá-lo sobre
se deveria acreditar no
milagre. E, no
intuito mesmo de sondar a opinião da sua
Reverência sobre o ponto melindroso,
vários pediam uma interrogação lógica para
a terrível lágrima do deus.
O velho todo se torcia a cada
ataque, e de mil cores derivava na palestra para episódios pueris, colheitas,
calores da quadra
e preços do vinho. Mas as devotas voltavam à carga de pronto, insistindo
se seria verdade, se não seria verdade,
se o santinho chorara e seria sangue do legítimo...
Ao mesmo tempo os
finórios da terra, proprietários
ociosos farejando escândalos em
que entreter tempo, egoístas prontos a gozar, pela expectativa dos contratempos alheios, espicaçavam-no cruelmente e de
caso pensado, vontadinha de apanhá-lo
bem na rede, para lhe porem em evidência alguma lúgubre contradição de
crenças profissionais. Mas o
prior permanecia sombrio, suando nas
fontes sem dar palavra, um frémito de impaciência nos ombros.
—
Isto de crer ou não crer, é da consciência de cada um — observava ele, apertado.
E pitadeando:
—
Cada qual que se consulte e proceda como melhor lhe convier.
Mal a romaria chegou à ladeira
que afrontava o convento, os carros fizeram alto por conselho de D. Maria do Juiz, que era
autoridade entre as devotas. As Silvas
lançaram-se logo de joelhos. Algumas
velhas tinham-se descalçado e, magoando os pés nas asperezas da vereda
abrasada de sol, seguiam desfiando rosários,
as oferendas em taleigas de ramagens, xales pela cabeça.
Ao mesmo tempo, o povoléu, pressuroso,
faminto de assombros e sem paciência para
esperar que os carros passassem na
azinhaga, extravasara da estreiteza do
caminho, espraiando-se pelas terras ceifadas, aos pulos por
valados
e alvercas. Uma febre podre de
superstições e pavores dilatava
os olhares e enlividecia as epidermes brônzeas, alagadas em suor. De todos
os lados choviam promessas, alqueires
de azeite, sacos de trigo, milagres de cera, cabelos,
mortalhas, uma infinidade de coisas. Uns prometiam para que o Senhor lhes livrasse os filhos de soldados, outros
querendo triplicada seara, enquanto
vários, desalentados pela doença,
sezonáticos e tristes, vinham simplesmente solicitar a cura imediata,
mediante o valor de uma fogaça. Era pensamento
de todos engodar o ídolo com dádivas chinfrins, como fariam a um selvagem por meio de missangas e
estamparias. E, no intuito de um bom negócio
premeditado, vinham chancelar ao convento o contrato, mentalmente sem escrúpulos. À
entrada do templo, foi uma berraria
infernal, prantos, latinórios, desmaios. . À frente as
velhas descalças, mãos postas
e olhos no céu,
faziam um clamor de ladainhas e
preces, com vozes esganiçadas
e lamentosas. A D. Maria do Juiz,
que gostava de figurar nas festas e era aia de Santa Catarina, levara de casa um Santo Lenho
de prata, que ergueu à frente da
multidão.
Desgrenhadas e cheias de espinhas
carnais, as Silvas vinham-se arrastando nos joelhos, de braços abertos, e a cada passo
pendiam de canseira com delírios de virgens
flatulentas. A D. Maria do Juiz chegava-se então, e solenemente, como vira fazer em Beja ao bispo, dava o relicário
a beijar, bolçando esquírolas de oração.
Por detrás delas acumulava-se a
gente esfrangalhada, obtusa num pasmo irracional.
E batendo nos peitos, muitos
diziam numa espécie de uivo sonolento,
entre caudais de pranto:
—
Misericórdia! Misericórdia!
Eram trindades quando padre
Nazaré apareceu em casa do
sacrista. Desde manhã
que não saía de casa. O
calor trazia-o morto, suores, salvo
seja, de jumentinho podre, uma secura diabólica. Que ia
pela cidade?
Manuel do Cabo pôs-se a dizer — o
prior tinha zurrado: Pouca-vergonha! Na loja do Burjaca
não tinham comido a pantominice,
o mulherio fora em chusma
ao convento, havia três mil e tanto de esmolas, afora azeites e pães alvos. Padre Nazaré sacudia o pó das mangas,
num frémito júbilo de narinas e o olho
nadando em fluidos de vitória. E comovido exclamou:
—
Grande povo este!
Depois, muito confidencial:
—
Despejou a cabeça?
—
Logo. Por esse lado não há perigo.
O
seu receio era Beja,
porém. Que o vigário não
era para graças,
segundo ouvia dizer.
Pelos modos suspendia
padres com sem-cerimônia
excecional. Pequenino como era,
voz aflautada, e gestos de alcoviteira, tornava-se,
nos lances sérios, de uma rapidez
temerosa. Não lhe conheciam empenhos, nem amigos,
nem actos de benevolência no julgamento de qualquer melindrosa questão.
—
Espirra-canivetes! — resumia o sacrista.
Aquela ponderação fez porém
sorrir padre Nazaré, que, esboçando atitudes de poderoso, de trunfo político, exclamou:
—
Ora adeus! Todos os grandes têm uma perna de pau.
E distraidamente, em ar de
comentário:
—
Pois senhores, estão as eleições à porta!
Sorria-se com finura
velhaca, mirando o outro pelos
cantos dos olhos, contente de fazer presumir a sua importância
oculta e inabalável.
Enfim, prosseguiu a meia voz,
a primeira cunha está
metida. E bem metida que está!
O resto, com vagar e jeito.
Domingo, rica festa no convento, ali a missinha cantada, sermão de endoidecer
os peixes...
—
Eia, o que aí vai!
—
Você verá — tornava envaidecido o padre. E batendo na testa:
—
Tendo aqui o sermão todo. É de um efeito!...
—
Ah! pregador como
primeiro! Que não se apanha
segundo por estas redondezas.
Padre Nazaré exultava de
lisonjeado.
E oleoso de glória, o fácies ridente das consciências
repousadas, ia aventurando ao
sacrista pequenas
confidências, que espumavam de humor como
um bom champanhe crepitando num copo.
Pouco a pouco, a voz, que se lhe
abafara cautelosa, desenrolando segredinhos,
foi subindo. E ouviu-se distintamente o padre dizer:
—
Daqui a cônego, meu amigo, é um trote.
—
Sendo a besta boa... — ponderou o outro, sem o encarar.
Um ano depois, estavam realizadas
todas as esperanças do senhor capelão do convento. A fidalga morrera com fumos de
santa, legando rendosos bens ao templo e
ao padre, ao mesmo tempo que
a fama dos prodígios da imagem rebentava para
lá da pequena
área das povoações circunvizinhas, e nos domínios da lenda
corria a província
toda, avassalando crentes e
colhendo esmolas avultadas.
Todos os dias agora passavam por
Via Alva ranchos de romeiros, que, bem providos
de oferendas, ante a imagem do convento vinham fazer penitência.
O tosco madeiro, que
primitivamente só chorava sangue, fazia agora, no dizer das gentes rudes, toda
a casta de maravilhas. Os cegos
recuperavam a vista limpado à
fímbria das túnicas bentas a ramela
dos olhos assolapados. Paralíticos, que em cadeirinhas e macas
abalavam dos seus lugarejos natais aos ombros
de carregadores, desandavam a passear sem detenças, mal punham os olhos
na igreja. Para expelir o demo dos esqueletos
da pobre gente,
que, exibindo carantonhas e
soltando berros, era trazida em coletes de força até ao santuário, bastava muitas vezes um sopapo teso
de padre Nazaré, algum latim quando
muito.
Contava-se de lavradeiras estéreis que se punham fecundas como marrãs, mediante alguns dias
de residência na horta, dietas místicas e certas rezas adequadas. E era infinito o número de rapagões
do campo roubados à recruta, panelas de
dinheiro descobertas em rochedos lendários, e jumentinhos alegres que,
depois de roubados, vinham
dar às portas dos donos, fazendo sinais maçônicos com o orelha-me. Desde que,
no Alentejo, a qualquer família se afigurava insuperável
um problema econômico,
um caso patológico
mais grave, ou um casamento menos
lícito de realizar, as opiniões voltavam-se logo para o Senhor do Convento, na certeza de um
êxito próspero e imediato — o que punha em bancarrota os
curandeiros, as mulheres de virtude,
os procuradores, os
aveitares e os médicos. Desta
cegueira absorvente de crenças, foi-se
pouco a pouco originando toda uma engrenagem de pequeninas indústrias, devotas e a vila, tão
pobre e tão reles, tomou de súbito a
importância de um centro ativo e florente, em que se falava com respeito. junta
geral votou estradas que ligassem Vila Alva com os mais sertões, a câmara, pelo seu
turno, fez abrir poços
públicos e arborizar
os largos. Ao mesmo tempo;
enquanto duas lojas abriam com estantes de vidraça, e um latoeiro
de Beja vinha fixar residência na
artéria principal do
povoado, as senhoras
começaram a ir à
missa de chapelinho e luvas dando-se pelintramente dom e fazendo os pés pequeninos.
Vila Alva, como se dizia nos serões das
Silvas, estava dando sota e ás às terras próximas. Construiu-se um chafariz com botaréus e tanques, onde
até bípedes vinham
mitigar-se das calmas alentejanas. A Escolástica
assumiu a direção de uma
oficina de bentinhos,
medidas e retábulos mais
ou menos garridamente compostos, onde,
em litografia e em pintura, o Senhor
dos Passos ostentava as fisionomias
mais estranhas, barba toda ou simplesmente bigode, de coroa ou sem coroa,
marchando pela rua da amargura ou quedando-se simplesmente imóvel,
na posição carrancuda de um fotografado.
Dando largas à sua
veia elegíaca, Chico Praça, até ali
incrédulo, desandou a vender pelas festas hinos bentos da sua composição, cantatas em pomposas
estâncias, no fim das quais se repetiam
estribilhos plangentes:
E os judeus jogando os dados
Viam-lhes os cravos pregados...
Por seu lado, a D. Maria do Juiz,
que tivera um tio médico, inventou a Untura Santa, que vendia em latas de pinto com uma
carta de padre Nazaré, atestando que não
havia segunda esfregação para borbulhagens.
E, como o comércio prosperava,
as rivalidades desencadearam-se entre os
vendilhões, o que determinou a
falsificação nos produtos e
a intriga nas famílias.
As Silvas fizeram aparecer um
licor para fatos; o Bujarca opôs a
sua Fomentação do Horto ao unguento da D.
Maria; outra família determinou suplantar as estampas da Escolástica, confecionando
pequeninos Senhores dos Passos em barro,
trapo, cortiça ou faia, com resplendor ou sem resplendor, conforme os preços. A esse tempo, inaugurava padre Nazaré
uns belos óculos de oiro para se dar
ares de homem importante. Construíra, além disso, uma bela casa com terraço
e adegas de luxo,
alargando ao mesmo tempo a cifra
dos seus milheiros de vinha e
deitando carros de parelhas nédias. Estava cada vez mais fona, lia Vieira e Mont'Alverne para vernaculizar
os sermões, usava corrente de berloques
e deitara criada roliça. A sua ideia era a conezia, o poderio, muita glória.
Desde que o viu rico, Vila Alva
entrou a respeitá-lo, a servi-lo, a lamber-lhe a poeira
das botas. Era ele quem
fazia as eleições na terra, quem
orientava a opinião, quem fomentava a intriga. Ia
frequentes vezes a Beja.
—
Falar com os trunfos! — cochichava-se às noites na loja do Burjaca.
E com veneração referia-se aos
quatro ventos a sua
aliança com as notabilidades políticas, deputados
que lhe ofereciam jantares, lhe
mandavam cartas de amostras, Diários da
Câmara com discursos e as minutas de preços do vinho, nos mercados de Lisboa.
Aquela preponderância fazia-o
temido, e andava nas palminhas, dificultando a sua intimidade aos menos favorecidos.
No intuito de
surpreender alguma informação relativa
ao negócio, os proprietários procediam com ele por pequenas
sabujices, grande interesse pela azia da
sua Reverência, um
esmero de palavras e rodeios
servis, como se falassem a
um senhor. Vila
Alva queria em ele querendo, ria em ele rindo, bazofiava
em ele bazofiando. E a
conezia não chegava
nunca! Enfim, uma tarde correu que o velho cura ia ser
transferido a exigências da política, para Sant'Ana,
lugarejo de algumas casas,
sem recursos, sem agricultura e sem rendas, torpemente esquecido na aridez da
serra. Em casa das Silvas,
padre Nazaré mostrou-se penalizado do
pobre homem, que ficava a
morrer de fome. Mas intimamente dava-se os parabéns.
Conseguira afastar finalmente o pulha que se atrevia a
humilhar com sessenta anos de
honrada labuta a sua florente carreira de homem sagaz, em tirocínio
para cônego.
Sobre o caso, Manuel do Cabo
arquitetou logo o seu tratado prático de moral característica, por este modo formulada,
sempre que um mendigo se arrastava para
lhe pedir esmola:
—
Grande cavalgadura!
—
Porquê, meu benfeitor?
—
Inda o pergunta! Aposto que é homem de bem!
—
Saiba o meu benfeitor que sim.
—
Pois, amigo, se
você tem feito canalhice enquanto
era forte, estava agora rico. Pedaço d'alarve! E,
exemplificando, estendia o braço para o fundo da praça, onde de um lado sorria a casa nova
do capelão, ampla, clara e toda alegre
das tintas frescas,
e a miserável vivenda empardecida e
deserta, que pertencia ao pároco velho, e desde a sua
partida se não abrira mais!
1877
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
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