DOIS PRIMOS
Quando Jorge bateu, a
Albertina acabava de se levantar da mesa. Era
uma rapariga alta e fina, com um
tipo miudinho e arrebitado, que dá à mulher o ar canaille da ribalta. A sua elegância formulava
a última novidade dos armazéns de modas, tinha o chique do dia, a cor e
a graça
da última revista de Paris. Vestida
com uma simples saia, um
reles xale e um cuia
torta, teria passado indiferente até à polícia civil, que é quem
na. capital rói nos últimos detritos da fêmea,
que o amor escalavrou por essas alcovas e restaurantes noturnos. Sem o espartilho curasse que lhe dava o ritmo
postiço e flexuoso do busto, sem as meias
escarlates luzentes de abelhas de oiro e esticadas acima do joelho, sem os
sapatos de decote largo onde uma
roseta de cetim se enroscava
com volutas de serpe negra, sem o
nanquim das pestanas, a veloutine da garganta, o carmim da boca e a unha crescida dos fados
eletrizantes, essa boneca, que tinha o ar de parir o útero
à força de comprimir as ancas, daria
a simples fêmea
linfática, com folies
de coeur e histerismos alambicados,
ninho de tubérculos no peito e uma genuína
incapacidade para os misteres da
sua condição e da sua classe.
Seria uma
preguiçosa, uma gulosa, uma
estúpida, incapaz da maternidade, incapaz da abnegação, incapaz da luta pelos
que amasse, da permanência no dever como
um tabernáculo inviolável,
e da resignação, tão heroica
e tão santa, de certas mulheres
pobríssimas, na sua labuta tormentosa e quotidiana.
Aquela vida do palco era a única
que ela teria podido seguir sem contrariar os seus instintos e satisfazendo
todas as suas vaidades.
Em criança tivera uma educação apurada
e. completa —
diziam os pais. Falava as línguas, cantava, tocava, e
implantara no pequenino crânio a paixão do
luxo e a paixão do namoro — duas lanternas que ao longe pareciam iluminar-lhe as fantasias do futuro. de uma
vez que a trouxeram a Lisboa e a levaram
ao teatro, um subitâneo clarão se lhe fez dentro — tornara nítida a aspiração vaga
em que ardia nas suas insônias
de virgem provinciana, descobrira
a vereda que, havia muito, as suas tendências tateavam, como um cego em busca
de uma porta para tomar
fôlego. Tinha sido na Trindade, numa noite de
première. As decorações da cena
com os seus cambiantes tenros,
as suas florescências singulares,
as cascatas de pérolas caídas na limpidez
ideal dos lagos cortados a palmouras de cisnes, as transmutações, os adereços, os vestuários dos príncipes e das
princesas, dos pajens imberbes e das
bailarinas aladas, surgindo em atitudes lascivas das cascas de ostra gigantes esquecidas
na gruta marinha
da penedia, galvanizaram-lhe os nervos e
o coração, arrebatando-a
do seu ninho de senhora nubente para
a fantástica alucinação das libérrimas existências onde se
vive em azul, se cingem as carnes em
fotosferas de pedras, e se faz roçagar no mosaico hilariante das alcatifas as longas caudas dos vestidos
de quarenta libras, amarrotados hoje e amanhã benevolamente esquecidos a Fanchette, nossa
confidente e a nossa criada de quarto. Ah!
como seria bom cantar ali, quase
nua, com os pequenos
pés inquietos calçados na
chinelinha de Cendrillon ou nas botas altas do príncipe Jasmim, os cabelos polvilhados de oiro, as
mãos cobertas de rubis e a garganta titilante
no frêmito de um trilo
ou na petulância de uma
ária, escarlate de provocações!.
. E
as paixões desencadeadas com o
ímpeto das procelas andinas,
as súplicas virginais dos
adolescentes loiros que lhe
devessem o primeiro grito do sexo espicaçado, as
apoplexias dos banqueiros e as surdas invejas
das mulheres mordidas pela estranha auréola
do seu império!... Não dormiu nessa
noite. Era cerrar os olhos e encher-se-lhe logo a
cabeça de bailados, coros, transformações e esplendores,
cuidando estar diante da multidão,
frenética ante a nudez dos bustos e abrasada pelo calor do ambiente. O expluir das ovações como a embalava
numa embriaguez funesta, que lhe fazia
latejar as fontes; e em círculos
de diabólicas valsas vinham-lhe
as reminiscências da vida de
terra pequena, tão insípida de episódios e tão árida de comoções,
em que a sua mocidade
deslizara até ali, como
em calmaria podre. Operou-se nela então uma
brusca metamorfose, uma
rebelião feroz contra a pequena
roda em que vivia. A tranquila casa burguesa dos pais, cheia de um
conforto simples e de um
aconchego honrado,
fez-se-lhe odiosa e triste.
Entrou a embirrar com os móveis, com os velhos criados, com o jardim de canteiros oblongos e cheios de magníficas
roseiras que o papá cultivava, e tinham
a reputação das mais belas da terra. As suas maneiras eram agora secas, as suas respostas sacudidas e imperiosas. Sofria
distrações profundas, e respirava a
espaços por grandes suspiros de
cansaço. Aquela tristeza sem explicação
inquietou os pais e as tias. Que era? Que não era? Depois, a fase de explosão chegou, período singular de
contrastes, ora alegre, ora colérico, ora sarcástico, em que nada
parava, as músicas, o.
guarda-roupa, os criados,
a reputação e a
toilette das ricas e pretensiosas
herdeiras suas vizinhas. Tudo achava banal e indigno da sua atenção.
Uma crueza
de palavras entrou a
expluir-lhe na boca;
achava os homens pelintras e as mulheres idiotas,
e reclamou um dia asperamente do primo Jorge as cartas que lhe escrevera, dizia, para
gozar com ele. E,
como estranharam, ela bateu o pé,
trémula de raiva, gritando que nunca seria esposa de um homem com tamanho nó de goela.
Um dia despareceu de casa para
não voltar lá mais — e dali a
um mês os cartazes anunciavam o seu debute.
Seis meses que se não viam. Como
o tempo passa, bom Deus! Havia três que ela
debutara, e tinham-se passado tantas coisas, tantas!.. Quando ele entrou, Albertina
sentiu um frémito pela espinha dorsal ao encará-lo. Estava mais vigoroso
e mais bonito, correto no seu veston de grandes botões, sapatos de bicos curvos e a calça azul-ferrete caindo
amplamente sobre as polainas cor de pérola.
Era alto, nunca lhe parecera
tão alto, realmente.
E o vermelho dos beiços dava-lhe um ar sadio, que a frescura
dos dentes justificava. A vida de Lisboa
refundira completamente aquele provinciano tímido, pacato e sincero, apaixonado pela caça, leitor dos maus romances
e cheio de uns acanhamentos que,
realmente..
Ela soubera da nova residência de
Jorge, e, uma tarde, quando subia o. Chiado vestida na sua peliça e baixando a cabeça às
barretadas dos folhetinistas que por ali
se davam ares principescos, tinha dado com ele, cara a cara.
Fingiu não o ver. Tinham-se-lhe
esgarçado já as primeiras ilusões faiscantes da vida nova
em que entrara; sem querer
até, experimentava às vezes,
naquela solidão em que se via,
mesmo no calor da celebridade que se arrogara, o quer que era de remorso, tristeza impregnada de
torpor, um secreto medo da morte e
a ternura para
os tristes velhos que quase aniquilara
com os desvarios daquela vida
desonesta. Ria-se destas pieguices depois. Realmente,
uma rapariga como ela era, a pensar em coisas de tão ridícula
sentimentalidade!...
Um dia escreveu-lhe; queria ser
perdoada, amada outra vez com aquele amor tão sincero e tão simples, de homem forte e
cheio de mansidão benévola dos sãos. O
egoísmo da gente com quem tratava fizera-lhe sentir a necessidade de ter como defesa um
amigo leal. Estimá-lo-ia
simplesmente, vertendo-lhe no seio as pequenas amarguras da sua vida
caprichosa. Amá-lo não, talvez não. Além
de que, Jorge podia lá amar uma mulher de teatro, que ia cear ao José Augusto com atores e jornalistas, dava
beijos nas faces oleosas dos empresários,
e era forçada a pagar
generosidades de joias com generosidade de'
alcova.. amá-lo não, ai
não! Conhecia-lhe bem a linha de carácter, escrupulosa e séria.
Sentira a adoração daquele homem, ardente e balbuciante, com uma espécie de misticismo estranho. Que
dedicação e que lealdade! Ah! tivesse
ela conservado a sua linha casta de filha única, reclusa na paz da casa paterna, e seria agora a esposa daquele rapaz
de ombros redondos e epiderme fina, sob que
um sangue generoso em
retículos circulava. Que vida teriam feito
juntos às noites, de serão, sob
a luz do mesmo globo e em torno da mesma
banca de trabalho, os
pequenitos adormecidos num canto
do sofá, caídos os reposteiros e uma
paz celeste abrindo as asas sobre o
dulcíssimo grupo das duas cabeças
sonhadoras! Que de asneiras se fazem na vida, bom Deus! ainda se ele a quisesse como
amante.. Àquela ideia, uns restos de
pudor afogueavam-na, erguia-se frenética
amarrotando as bordaduras da robe, uma vontade
amarga de morrer.
Encararam-se por um
instante, ela com
um sorriso contraído, ele de imperturbável seriedade e muito pálido. Quando
Albertina lhe tocou na mão sentiu-a
abandonada, como a que se dá aos indiferentes. Seis meses antes, que diferença!..
— Senta-te aqui — disse ela.
E passado um instante:
— E o meu pai, e a mamã?
Jorge encolheu os ombros.
— Que tens tu com essa gente?
— E verdade, esquecia-me
—tornou ela baixinho, com um estrangulamento
de lágrimas. Eram sete horas, e não havia espetáculo nessa noite.
O gabinete tinha uma claridade velada, que, esbatida do globo fosco do candeeiro,
amaciava os aspetos
num penumbra vaga de entrevista. Comas janelas
cerradas — era no Inverno
— os perfumes dos enormes
bouquets sufocavam,
tépidos e langorosos. Nas jardineiras, em pinhas
de pequeninos vasos
branco e oiro, as begônias
espalmavam as suas folhas decorativas — Tordas, bronze raiado de escarlate e cobertas de um
delicio crochet. Caíam pesadamente
das galerias os reposteiros amarelos, destacando no fundo claro das paredes.
Pelos fauteuils, na otomana
e sobre as étageres douradas
esqueciam-se as partituras em voga e os papéis, trasladados pela grossa letra enfadonha dos copistas. Num ângulo de mármore,
jazia a cinza do charuto de um outro,
que estivera antes e se fora.
Jorge pôs-se a mirar em
torno. Era luxuoso aquilo, cheirando a
fêmea. em frente da
otomana e por uma porta aberta,
via-se um canto de toilette na
penumbra; formas albas de cortinados de
rendas, uma luzerna de espelho e ao canto a psyché
de mármore branco, em forma de concha.
Quem pagava aquilo tudo? dizia Jorge para si.
— Mas fala, pelo
amor de Deus! — disse
ela puxando-lhe o braço e forçando-o
a sentar-se. E febrilmente, com a voz um pouco trêmula:
— Foi uma desgraça, bem sei. Tinha porém de ser, não há remédio
já. É o destino, que queres? Fui bem má
contigo. Uma mulher como eu era indigna de
um homem como tu. Sabia lá fazer-me do teu tamanho!... — Atirou-lhe os braços ao pescoço: — Mas fala, fala!. .. —
dizia entre beijos.
Jorge repeliu-a devagar,
com esforço. Pensava,
nem sabia em que estava a pensar. Estava magnífica, a priminha — era
tudo.
— Há seis meses não usarias dessa frieza
comigo — murmurou ela, deixando-lhe a cabeça no ombro.
— Eras honesta.
— És cruel, também.
— Ouve — exclamou Jorge
violentamente, tomando-a pelos pulsos
—, para que te pintas? Para quê?
— Eu?
— Tu. Nos olhos, na boca, nos ombros. E esta casa, quem paga? E
este luxo? Não respondas. Paga quem
entra, bem se vê.
— Oh, Jorge! —
gritou ela em soluços.
E um pouco dobrada deixava escancarar com abandono provocante a fenêtre
do roupão de veludo, orlada de
rendazinhas sobrepostas.
— É claro, bem claro — dizia ele com uma cintila de cão cioso na
vista. E mais baixo, num tom de
repreensão amiga:
— Foi para isto que deixaste Leiria, a nossa casa, o tio Arsénio
e as famílias das nossas relações, não?
Pensas que poderás viver sempre cantando,
tendo celebridade e reclames nos
jornais?
— E porque não? — dizia ela ingenuamente.
— Olha que é uma vida de encher olho, não tem dúvida. Foi então
para enriquecer uma cocotte que o teu
pai trabalhou quarenta anos sem descanso, não vendo outra coisa senão a filha, e não se
importando com outra coisa que não fosse
um teu capricho? Educaram-te nas virtudes
burguesas, que na mulher
preparam a mãe,
simplesmente para que um
belo dia fugisses roubando a casa dos teus?
— Estás doido?
— Seria melhor que o estivesse. E agora? Em que ponto ficam as
nossas relações, não me dirás?
Ela quis atraí-lo a si:
— No ponto em que as interrompemos em Leiria. Porque não?
O primo Jorge riu com uma
casquinada brutal.
— Tudo estás tola, priminha. Eu namorar-te? Tem graça, palavra.
E com ares de cínico:
— As mulheres do teatro não se namoram.
Albertina estava atônita do que
ouvia.
— Então? — disse ela sem saber, ao acaso.
— É simples — ia dizendo Jorge. — Primeiro cercam-se como as
cidades sem víveres. Depois compram-se.
Entendeste?
Ela ergueu-se com os lábios
brancos e as mãos crispadas.
Estendeu-lhe secamente a mão.
— Adeus.
Voltou-lhe as costas com um ar de
rainha e entrou na alcova.
Jorge não se perturbou lá
muito com aquela despedida
formal, e deixou-se ficar sossegadamente ao canto do
sofá, fumando o seu charuto. Só
quando ouviu os soluços da prima se
resolveu a entrar devagarinho na alcova. Havia um cheiro de Ylang-Ylang e pó-de-arroz de
Lubin; formas brancas caíam na penumbra, de
cassas apanhadas efauteuils
muito baixos, de casimira
pérola. Os pés afogavam-se numa
pele de urso, macia e branca, com garras douradas. Primo Jorge respirava alto, caminhando às
escuras, entontecido de perfumes, um
baque nas fontes. E muito baixo:
— Albertina! — disse ele. Voejavam-lhe diante dos olhos abelhas
de oiro, em círculos febris. Os seus
dedos tocavam nuns cabelos, depois um bocado de pele cetinosa. Ergueu-lhe carinhosamente a
cabeça pelo queixo, ajoelhara-lhe aos pés, apoiando-lhe os braços nos joelhos.
E, num tom de voz em que havia o uivo do
desejo refreado, dizia-lhe:
— Pateta! ouve.
E aos beijos, com palavras
entrecortadas:
— Como dantes, minha filha, como dantes...
Retesados, os seus braços
enlaçavam-na pelo busto, com uma ânsia que fazia medo.
Dali a nada, Albertina terminava
com voz plangente o romance do último semestre
da sua vida.
Era pura como
outrora, apesar de tudo,
jurava ela, expondo pelo quebramento da postura na otomana
o onduloso desenho dos quadris e a linha elástica do colo todo abotoado nas costas, cingido num corpete de veludo bronze e aberto no
seio em femêtre, donde espumava
a gargantilha, numa alvura de
ninfeia.
Se ele soubesse!.. No teatro e na cidade
sentia-se flutuar num abandono glacial.
A adulação e os bouquets com que lhe atapetavam o caminho causavam-lhe a
nostalgia da sua
pequena cidade natal.
Quem se interessava agora
por ela, quem? Às vezes, olhando
a gente que passava nas ruas, acotovelando-se com pressa
de chegar cedo, e não querendo saber dos
que paravam no caminho,
sentia um medo fúnebre invadi-la toda.
Se morresse, quem lhe fecharia
piedosamente os olhos e acompanharia ao cemitério? Que olhasse pelas janelas daquele segundo andar a
cidade, viva em baixo e à roda — transeuntes caquéticos e ruas tenebrosas,
mesmo à claridade do gás. Que triste era
tudo! O primo Jorge deixava-a à vontade, aninhado junto dela, como sob a tepidez de uma asa de cisne, e tendo uma
das mãos em viagem touriste pelas
colinas, de que o decote triangular patenteava o sopé, de uma amenidade inteiramente grega.
— E que mais, que mais? — dizia ele, gaguejando.
Albertina mirava-o com esses
olhos velados de réptil que exercem em certas organizações
nervosas invencível
fascinação. A curva do queixo
era redondinha e branca, e subia num
espraiamento suave até ao lóbulo escarlate da orelha, onde um diamante faiscava como
pupila ciumenta. Parecia bonita sob aquela
excitação, com os olhos fendidos
a nanquim, as olheiras ensombradas a bistre, e verniz labial do mais
caro. Todo debruçado, o primo Jorge
inalava os perfumes tépidos da sua carne, olhando-lhe, nas penugens da face encarada
de perfil, os corpúsculos suspensos da
veloutine que a alabastrizava.
Aquela absorção letárgica e a
excitabilidade excessiva que lhe viera
deram-lhe um quebramento dorsal, numa lassidão de músculos e o desejo incoerente de se
abandonar, num espreguiçamento eterno, sobre a flacidez ebúrnea das espáduas. Sentia um peso
de pálpebras langoroso e febril, que não
era o sono.
— Que horas são?
— Oito.
Eram dez e meia dadas. Albertina
falava baixinho, como receando acordar um baby, e
a sua
voz de estranha doçura vinha, filtrada por
um secreto medo, anestesiá-lo como esse insidioso gás
hilariante que traz a morte entre risos.
— Amava-o, tinha-o
sempre amado como em criança. Por nenhum homem mais sentia aquela atração, aquela
confiança e a íntima alegria de lhe falar
sem receio. Porque fugira ela de casa, e se afastara da profunda ventura de ser
dele, mediante os
latins de um padre?
Mas não se separariam nunca mais, não era verdade? Nunca mais! Seriam como
um irmão com uma irmã, ela dizendo-lhe a
sua vida sem omitir o episódio mais vulgar, ele contando-lhe também au
jour, le jour, as suas esperanças e os seus desalentos. E seria ela quem lhe faria
tudo, quem o trataria se estivesse
doente, quem lhe daria conselhos e lhe engomaria as camisas,
obscuramente, sinceramente, sem o menor resquício de
pecado entre os dois. Os perfumes que pelo decote vinham do seio dela embriagavam-no; sentia-se
penetrado por aqueles olhos de
salamandra, como velados por uma nictitante subtil. Havia dois meses que tinha
entrado na chamada grande vida,
vida realmente bem pequena, que consiste num
sujeito estragar o estômago nos hotéis, dizer asneiras numa tabacaria, num café ou no camarim de um ator e
arranjar, pelo atrito das solas duras e
das convivências safadas, ao mesmo tempo uma coleção de calos e um museu de vícios pelintras.
Estava no primeiro
andar do Alliance, quarto e
saleta com porta independente, frequentava os teatros e batia
em tipoia pelo Chiado às quatro da tarde,
mostrando no assento
dianteiro os bicos
dos enormes sapatos de polimento
e a seda cor de pérola das meias esticadas. De resto, fazia um gasto decente no elemento espanhol,
sem indagar se lhe vinha
diretamente das Caldas ou da agência de criadas. E à noite,
descendo o Chiado com a gola do carrick
levantada, sentia-se
apetecido pelas senhoras pálidas que iam pelo braço dos maridos caquéticos ou
condescendentes, com o adultério nos olhos. O seu ar de campônio de bom sangue fazia
impressão: era desejado. E como tinha
dinheiro...
Extinta a fase nevrótica com que
é uso iniciar-se um bourgeois
gentil-homem na roda
galante da juventude oiro e azul,
o primo Jorge entrou a ver um pouco
nesse como encandeamento
em que se deslumbrara. Mesmo entre vadios
é forçoso ter posição. Já hoje se começa a penetrar um pouco pela vida íntima de cada qual. A Jorge bastaria o ser
rico ou parecê-lo — uma amante sempre
dá outro ar, outro tom e outra consideração.
Foi quando recebeu a carta de
Albertina. Que diabo! Já lhe tinha feito a corte, demais a mais. Eram três da manhã quando se despediram.
Ela, envolta num grande penteador
de cauda, tremia de frio, oferecendo-lhe a testa ao último beijo, pés nus sobre a felpa
cariciosa e fofa do tapete. Falavam muito
baixo, com singulares fulgores na pupila e uma meiguice de termos que lhes vinha do orgasmo nervoso em que estavam.
— Mas és lindíssima assim
— dizia-lhe Jorge cingindo-a pela cinta e beijando-a
na boca.
Albertina tinha um
riso delicioso, gulosamente recortado pela dentadura,
de gata irascível. E mordaz:
— E aquela tua tirada de há pouco.. — disse ela surpreendendo-o vencido e batendo-lhe na face com o ar petulante que
tantos aplausos lhe rendia no palco.
— Moralista! — dizia zombeteira. — Todos o mesmo.
Cantavam galos pela cidade,
quando ele saiu. Desenhados em negro, ora no clarão baço dos lampiões batidos pela ventania
do Inverno, ora alongados na penumbra
das ruas e lembrando arganaças estropeadas, os varredores desciam de vassoura
ao ombro, batendo
galegamente os tamancos.
Primo Jorge ia contente, cérebro lúcido, um bom charuto na boca.
Ao entrar no quarto do Alliance,
não se conteve que não dissesse:
— O que ela sabe, senhores, o que ela sabe! — Despia o carrick de pêlo fulvo. — Esplêndida! E que artista...
Viu sobre a mesa uma carta. Era
da mãe de Albertina, dizendo ao sobrinho que estava viúva, e suplicando-lhe instasse
com a filha para ela abandonar a vida má
que empreendera. Encontrá-la-ia de braços abertos, cheia de perdão no seu luto, e pronta a adorá-la como outrora.
O primo Jorge riu-se. Estava um pouco
bêbedo, e passara sempre por isto que se chama — um bom rapaz.
— Está tola, a velhota — disse ele.
E queimando a carta:
— Afinal, se não for eu, é outro. Ao menos fica tudo em família.
E dali por diante acompanhou a
prima todas as noites ao teatro, e ficou com ela por amante.
Acrescentando com ares devassos:
— Até aparecer coisa melhor.
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
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