A IDEIA DA COMADRE MÔNICA
Logo nos fins de Setembro, quando
tinham caído as primeiras gotas de chuva, o Canelas tratou de encetar a sua vindima. Não
era cedo já, a falar sério. Havia duas semanas que o Garrocho começara, e que muitos lavradores tinham aberto os
seus lagares. A novidade
prometia. O Verão ia temperado,
no Inverno não chovera de mais, e
desta moderação de clima provinha a riqueza dos cachos e a
vigorosa maturação dos
frutos. Feitas as contas,
o Canelas devia
seis moedas ao todo. O da
Vanga emprestara-lhe três
libras para comprar o
jumento na feira
da Vidigueira; devia
quatro meias coroas ao boticário,
da doença da mulher; devia ao médico; devia uns fiados na loja; oito mil réis,
das casitas. Se fosse feliz
na colheita da uva, pagava tudo e
ainda guardava a sua
tarefazita de vinho.
Deus ia ajudando um
homem, dizia ele para a 'mulher, e quando o pequeno fosse
crescido melhor passariam. Assim, uma bela
manhã, o Canelas com a mulher e o filho deitaram caminho das vinhas,
mais o burro. Pela
estrada iam encontrando os ranchos de vindimadores;
os rapazes trigueiros e
musculosos da freguesia, ceifões
e polainas, os chapéus,
de grosseiro feltro, derrubados
para diante; grupos de raparigas, de sangue vivo, grandes olhos
ardentes de meridionais, os cestos ao quadril;
velhos trabalhadores corcovados, de barrete, alforge ao ombro, atrás dos seus jumentos vagarosos, felpudos e pacíficos; pesados
carros de duas. rodas calçadas em
chapas de ferro, luzentes do atrito no saibro das estradas e pejados de enormes cestões de verga, para o
carrego das uvas. A cada volta do caminho
convergiam veredas por onde os magotes derivavam, dando «Boa fortuna!» aos que se
dirigiam para outro sítio.
O campo naquele
tempo começava a
perder o viço. Entre
vinhedos de um verde carregado, emaranhado e pitorescamente confuso, alastravam-se
a perder de vista
os ferragiais amarelos, secos
de raízes do trigo ceifado, onde
as ovelhas mansíssimas, sonoras
de chocalhos, pasciam destroços, as ervagens finas dos barrancos,
os fenos fibrosos dos córregos e as gramíneas deixadas nos valados.
A região, sem grandes depressões
atrevidas, sem cordilheiras de arestas a
prumo, oferecia à
contemplação um aspeto sereno de
ondulações graduais, moldadas quase na mesma
curva regularíssima; toda
a zona abrangida
num olhar, sofria
o cultivo solícito e amigo da aldeia
próxima, branca aglomeração de
casinholas de taipa, sem estrutura regular, desenhada no
fundo cinzento, metálico e
um pouco triste das grandes oliveiras
de troncos fendidos. A leste, no
esfumado anil da massa de ar, linhas quebradas de vales distantes esboçavam-se risonhamente
na luz da manhã. Nos limites da freguesia,
a herdade assinalava-se com
azinheiras gigantes e sombrias, grandes braços peludos de musgo, contorcidos
como numa desesperação sem remédio,
contra o risonho céu transparente, bordado pelo algodão das nuvens em farrapinhos ténues, como um capricho de
criança. O Canelas dirigiu-se à sua
vinha, que ficava distante.
— Olha se
nós recolhemos este ano um
potinho de vinho!... Vendido, dava
bem para um porco de quatro arrobas.
— O vinho há de estar barato —
disse a Luísa, a esposa.
— E eu hei de ter uns sapatos —
gritou o garoto, saltando com os seus rijos
pés imundos, na poeira da vereda. O burro, de orelha pendente, o passo refletido,
o olhar tristonho e lírico, ia caminhando,
todo coberto de moscardos.
À frente de todos, o cão Bedelho corria e ladrava às perdizes. O ar aquecia, o Sol rebentava no céu a cascata da
sua luz crua e candente, enquanto nos
silvados e nas faias do próximo ribeiro os garotos dos melros, na frescura úmida das folhas espalmadas, faziam troça da
companhia.
A vindima durou-lhes quatro dias, e a
novidade fundira-lhes bem. Foi um
tempo
alegre, o que passaram.
Enquanto a Luísa, toda arregaçada, de chapeirão
nos olhos, colhia os frutos mais o filho, cantando, o Canelas, com uma vara de marmeleiro, dirigia o burro
carregado com dois cestões cheios, da vinha
para a aldeia, e com outros dois vazios, da aldeia para a vinha. Quando acabaram o tráfego, houve jantar de carne,
para que foi convidada a vizinha Mônica,
madrinha do rapaz. E à noite, na banca da casa de fora, jogaram-se cartas, a Padre-Nossos.
— Quando for tempo — disse a
Luísa à comadre —
há de provar um copinho do nosso. — A Mônica arrebitou a
penca, um riso guloso.
— Agora para o Inverno, que é para aquecer. — E
vieram as confidências, os orgulhos do
bom governo de casa, a feliz plenitude de não deverem nada a ninguém, senão obrigações. Tinham pago ao
médico, tinham pago à botica, ao da
Vanga os oito mil réis das casas... E ainda, na despensa, ao canto, fervia a talhita de mosto, objeto das mais caras
esperanças e base de uma abundância de
chouriços em casa pobre, no Inverno que ia entrar.
A Mônica, seca figura de viúva
pobre, seios chatos e estéreis, um grande lenço de chita preta no pescoço, as contas de louça
desfiadas a Glórias e a Salve-Rainhas durante a monotonia dos serões,
roía-se de inveja, um riso amarelo de comilona
e de desamparada. E
formulando bons desejos que não
sentia, ia pedindo a
Deus desse aos compadres
tanta fortuna como
desejava para si própria.
O casal agradecia. O Canelas, a espaços, esfregando as grossas mãos de cavador, observava:
— Esternos pagos e satisfeitos! Cinco senhoras!
— Esternos pagos e satisfeitos! — E, em coro,
todos formulavam planos de futura
propriedade: a compra de uma courela à Barrada, a aquisição de uma adega e a postura de bacelo, nas terras da
Pichaleira. A Luísa tinha precisão de um capote
de pano para ir à
missa; indagava da
comadre qual era o preço, queria
do bom!
— O meu — dizia a Mônica — custou-me quatro
sobranos. Ainda foi no tempo do meu homem, que Deus
tenha. Que hoje!. .
. Quero um
trapo de uma saia e tenho de o
ganhar.
Desde aquela festança,
a Mônica cresceu de desvelos para o afilhado,
vinha todas as manhãs saber como
tinha passado a comadre, e como estava o pote do vinho.
—Nada para sustância como dois
dedos de sumo. Logo pela manhãzinha, que
regalo!...
E armavam grandes palestras a
respeito do tempo, das lavouras,
dos casamentos e dos
escândalos. A filha
do Cardoso estava maluca
pelo Francisco da Balsa.
Contavam-se coisas bonitas. O mundo ia por água abaixo. E, por transições subtis, aludiam ao
pote da despensa. Um domingo provaram. Era todo vermelho, transparente e
fluido, de um aroma delicado de roupeiro e moscatel.
«Boa gota, comadre! Sim
senhoras. Boa gota!» dizia
a Mônica, beberricando.
E com um estalo de língua: «É de rachar pedras, caramba!» —
De tarde sentiram a cabeça pesada
e foram-se deitar muito vermelhas.
No outro dia, outra. Cada vez sabia melhor. O rapazito estava na escola, a
tratos com o Monteverde. À noite, depois da ceia, o Canelas ia logo para
a cama, cansado de cavar desde o romper do sol nas fazendas
dos senhores proprietários da terra,
e não dava
pela falta. Elas, as duas, em se apanhando
sós, era aos quartilhos. E dilatadas em narrativas eróticas de frades, de estudantes e mulheres infiéis â honra
conjugal, passavam as tardes juntas e os
serões, com grandes risadas,
uma profusão de gestos e de
palavras, certa licença de epítetos, reparável.
Finalmente, pelo
Natal, o Canelas foi emechar o
seu vinho, segundo o uso. Destapou o
potito: Que diabo!. . . Estava quase meio. Chamou a Luísa, todo desconsolado.
— Ó mulher,
não sabes? Temos o pote em
meio. Quem tirou daqui o vinho?
A Luísa debruçou-se, muito
admirada.
— Santo nome de Deus! — exclamou. E com um
acento choroso: — Ora vejam a nossa
desgraça!
— Tu bebeste-lo, mulher! — afirmou o Canelas.
Ela encarou-o duramente, sem resposta. O
Canelas aprumou-se, colérico.
— Tu vendeste-lo, mulher! — A Luísa voltou-lhe
as costas, desdenhosa. À tardinha,
depois de uma cena violenta, o Canelas saiu. A mulher foi a casa da comadre contar tudo, pedir conselho. A Mônica
depôs a meia, tirou os óculos gravemente.
— Ai, não tenha receio. Esta noite, arranja-se.
— Mas como, comadre, como? Se ele sabe de tudo,
ai espinhela! — Foi para
casa cheia de
medo. O Canelas voltou à noite para
cear, taciturno, abatido,
sem dar palavra. Bateu no
pequeno mal achou pretexto, atirou
o chapéu com mau modo ao entrar
no quarto da cama, resmungava:
— Estas bêbedas, senhores!.. — Não dormiu toda a noite, a pensar no seu vinho e a amaldiçoar a hora em que casara. Mas
não vira nunca a Luísa alegre, não tinha
motivos de suspeita. Havia bons anos que não guardava vinho. O pote, de barro, estava talvez seco, era
poroso, tinha seis gatos no bojo, podia ser
que absorvesse, ou deixasse sair o mosto. Mas tanto!. . Deram dez, deram onze,
deu meia-noite, e ele às voltas
na cama.
De repente sentiu correr no telhado. Pôs o ouvido à escuta. Ouviu rir. Uma
voz gritou: «Canelas! Canelas!» Riam, aos
pulos, nas telhas.
«Canelas!» Santo nome de Jesus!
Era o diabo! Chamou a Luísa: — Ó mulher! Não ouves?
«Canelas! Canelas!» — Começou a rezar o
Credo, enganava-se no meio, começava outra vez, não sabia concluir. Diziam:
— Vamos ao vinho! — E a correria continuava. —
Vamos ao vinho! — O pobre estava em apuros, varado de medo.
No outro dia, mal
luziu o buraco, saltou fora da
cama, vestiu-se às apalpadelas, pôs a manta ao ombro, agarrou nos
alforges, desprendeu o burro e partiu
para o trabalho. Tinha a cabeça em água, não se lhe tiravam da mente os
gritos e as risadas.
Canelas! Canelas! Então, as
bruxas andavam com ele? Vamos ao
vinho! Vamos ao vinho!
E senti-las-ia correr no telhado todas as noites,
aos berros e às gargalhadas, distribuindo os seus pobres almudes pela comunidade, e ainda em cima escarnecendo.
Durante o dia viram-no metido consigo, acabrunhado, carrancudo, dando enxadadas na
terra desesperadamente, a suar como um
cavalo.
Ao cair da noite entrou em casa;
a Luísa estava ao canto da chaminé, diante do lume de azinho, o xale pela cabeça, ' aspeto
adoentado e beato, o rosário entre os
dois dedos. Demais, grávida de cinco meses. .
— Ora santas noites!
— Santas noites!
Reparou na postura da mulher, tão
finadinha como um carapau.
— Que é isso? Estás doente?
— Deixa-me,
ando morrendo, mesmo
morrendo. Todo o santíssimo dia com febre, calafrios, dores. Ai!.. e nas cruzes.
— Mas o que é?
Ela disse choramingando:
— Não vivo muito, não!
O Canelas comoveu-se:
— Estás doida! — E solicitamente, achegando-se:
— E a respeito de vontadinha de comer, há?
— Nem nada, marido. Ainda hoje me não entrou
migalha nesta boquinha de Deus. Tudo me
sabe mal.
— Mas não apeteces nada? Chá e fatias; mata-se o
galo.
— Ai, não! Só apetecia uma coisa. Mas não, é
melhor não.
— Diz o que é, anda. Se for caro, compra-se
ora!...
Ela ficou calada, rezando
automaticamente.
— Então, que dizes? Que apeteces? Vamos.
— Olha, o
que eu comia bem agora eram uns peixinhos da ribeira
das Sormarias. Tenho mesmo
vontade, mesmo de dentro. — O Canelas foi logo albardar
o burro, agarrou num cesto e pôs-se
a caminho, sem
querer ouvir mais.
— Não tenha algum desmancho — ia ele dizendo.
Apenas lhe não sentiu os passos,
a Luísa correu a
chamar a comadre. Entraram
ambas na despensa. Tinham metido
o resto do vinho num odre; uma agarrou por um lado, outra por outro, e
arrastaram o couro túrgido até à porta.
Era noite fechada e ninguém passava na rua. Das chaminés evolava-se o fumo dos
lares, ouvia-se rir nas habitações das famílias, e um
cão latia no campo, sem eco,
enquanto, acalentadas no berço, as crianças choravam. Dali a pouco as duas viram chegar o Coxo, taberneiro,
pesada figura de velhaco, apoplético,
gorro sebento, um
riso desdentado de patife, ironias bestiais, navalha.
— Venha o bago! — disse a Mônica. — O Coxo quis
roubar-lhe um beijo. A Luísa ocultara-se
atrás da porta.
Podia ter vindo mais cedo —
disse a velha.
Estendia as mãos ao preço do odre, dizendo:
— São três
almudes, tinto; a
quartinho, três mil e seiscentos.
Sete meias coroas e mais
um tostão. Barato como
pouco. — O Coxo
de o dinheiro, pegou no odre, e foi-se depois de ter cingido
amorosamente o estafermo.
— Agora
— disse a Mônica —
venha a minha comissão
e aqui tem o dinheiro.
A Luísa deu-lhe seis tostões.
— Vamos à
ribeira — disse ainda
a velha. Embrulharam-se nos
xales, fecharam a porta;
à socapa, saíram para
o campo, e apenas na
estrada, deitaram a correr.
Era quem mais podia, por
aquelas ladeiras, acima, em direitura
à ribeira.
Ai que arrebento! — dizia a
viúva, arquejante, a espaços. Afinal chegaram' ao sítio. Pararam, em conferência.
— Tu vais para o outeirinho de lá. Eu fico,
mesmo em frente, agachada na rocha. —
Assim foi. Não viam nada à roda. O céu pesava de grossas nuvens caliginosas e trágicas. Esbarravam com as
azinheiras seculares, caíam sobre carrascais e tojeiros. Nas trevas, as ramas
torcidas pelo nordeste tinham gestos agressivos,
de réprobas. Por todo o campo, quando passava a rajada, sentiam-se risos
abafados, segredos de feiticeiras, a sombra mexia-se, ondulava, tinha transmutações sinistras. O Canelas, no
entanto, estava metido à água, com o cesto
no braço puxando a linha da isca. ainda não conseguira apanhar peixe; o medo agoniava-o. Se as bruxas soubessem que
estava ali! .. De repente, caiu uma
pedra na ribeira,
e esboroamentos de terra foram
descendo, como deslocados por pé em falso.
— Mau! — E o anzol não prendia. — Diabo!...
Pareceu-lhe que diziam
segredinhos nas barranceiras, acima da
sua cabeça. Andava gente em cima, viu um vulto
acocorar-se.
— Ó camarada!
— gritou ele, em tremuras. Tudo calado. Puxou a linha; nada! De repente, uma voz moribunda chamou:
— Berrabás!
Outra respondeu:
— Satanás!
— O Canelas não sabia de que terra
era! O que faria
à sua vida?
Ali acabava naquela
noite. Benzeu-se. Iam dar
cabo dele, espetar-lhe agulhas
nos rins, meter-lhe à força um sapo nos dentes... Tornou a voz:
— Vamos afogar o que está na ribeira?
— Não, que a mulher está rezando o rosário à
Virgem.
— Olhem se a Luísa não tem ficado rezando ao
lume, hem? Santa mulher!
— Como ele estava agradecido às
suas orações!..
— Berrabás!
— Satanás. — Um cão uivava funebremente, no
casal do Peles. O Canelas batia os dentes,
deixara cair o cesto. O
vento dava risadas de escárnio, dançavam as azinheiras e o céu fazia ouvidos
de mercador. A voz insistiu:
— Vamos afogar o que está na ribeira?
— Não, que a mulher está rezando à Virgem.
Dali a nada:
— Berrabás! ..
Satanás!
— Vamos a beber-lhe o vinho? — O Canelas pulou:
— Com mil raios!
— Vamos.
— Vamos a partir-lhe o pote?
— Vamos.
O desgraçado ergueu as mãos
desesperado e murmurou chorosamente:
— Ai a minha desgraça! Ai o meu rico vinho
tinto!
Alta noite, a
Luísa, enrolada sempre no
seu xale, rezando sempre as suas contas ao canto do lar, viu romper pela casa
dentro o Canelas esbaforido, sem peixes, sem anzóis,
sem sapatos, sem chapéu, sem
manta, alagado em suor, trêmulo de medo e morto de cansaço. Contou
tudo à Luísa:
— E vai, ouvi dizer: «Vamos a beber-lhe o vinho?
Vamos. Partimos-lhe o pote? Partimos.»
Tu sentiste alguma coisa, mulher? — A Luísa persignava-se, com os olhos em alvo.
— Eu nada — disse ela. — Não senti nada: uma
coisa assim!...
Foram ver à despensa. Tinham
bebido o vinho e o pote estava em pedaços. Entraram a chorar. Veio a comadre.
— Que é lá isso de prantos nesta casa? — disse
ela, aflita. Contaram-lhe.
— Pois eu lhes juro que as bruxas nunca mais os
perseguem. Sei as orações
de as afugentar.
De fato, nunca mais tornaram, nem
bruxas nem boas vindimas, nem potes de
vinho.
Tal foi a ideia da comadre Mônica.
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
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