HISTÓRIA DE DOIS PATIFES
Toda a
manhã, Fernanda andou impaciente
pelas casas, esperando os gatinhos. Ao acordar, fora aquela a sua
primeira ideia — os dois pequeninos animais,
cheios de viveza e graça, em cujos olhos ria uma inocência travessa e doce.
Havia tempos que a
tia Consuelo lhos prometera, quando fossem crescidinhos. E a cada
visita à boa senhora,
Fernanda levava horas e horas com eles, brancos de neve, uma finura de
penugem que acariciava a pele, as duas
cabecinhas inquietas com orelhas que se fitavam petulantemente, a cada ruído do gabinete. Fernanda
tinha uma paixão por aqueles dois diabitos brancos que levavam os dias, ou sugando as
tetas da mãe, grande gata de pêlo fulvo
e pupilas glaucas, ou rebolando no tapete os corpinhos elétricos, numa embriaguez de vida que fazia prazer. O gato
era o mais leviano, com as suas patinhas
fofas e os dedos rosados na planta, de que as unhas transparentes e curvas saíam desembainhadas, nos momentos
de irritação, se lhe pisavam a cauda.
Tinha os olhos azuis, cheios de fibrilhas inquietas mais escuras,
uma ingenuidade selvagem no
encarar, fitando as
orelhas veludinosas, em que parecia residir toda a petulância dessa cabeça
infantil. O focinho cor-de-rosa, com
barbicas alvoroçadas, sorria um pouco, mesmo quando assanhado, e de gengivas, vermelhas e húmidas, os
dentinhos em serra, agudos
e pequenos, ressaíam gulosos,
desafiando a gente. A gatinha afetava mais seriedade e mais coquetterie,
uma ambição contida
de se fazer senhora, e
uma ciência complicada em se fazer amar do macho. Nunca era a
primeira no ataque, e zangava-se, mal pressentia uma ofensa. À
comida exigia os melhores pedaços, rosnando
sôfrega, com a pata eriçada de unhitas curvas, contra o primeiro que lhe
chegasse ao prato. Dormitava
muito, como a
mãe; às vezes o irmãozito chegava-se
cauteloso, estendendo as patas e movendo vagarosamente a cauda, as pupilas cheias de um clarão de patifaria.
Com um movimento destro erguia uma pata
— zás! —
no ventre da sua companheira, que entreabria preguiçosamente os olhos, imóvel, com o
focinho enterrado na penugem do ventre. Esta
indiferença benévola arrojava
o gaillard do gatinho
a maiores garotices. Chegava-se muito meigo, unhas
escondidas, o dorso alto, as orelhas chatas
e deitadas para trás. Com as duas patas da frente, cingia o pescoço da pequenina, e entrava a morder-lhe
repetidamente o]?eito, os lábios, a pontinha das orelhas, enquanto com as unhas traseiras
lhe raspava voluptuosamente o ventre e
as coxas, provocando cócegas.
Ela estremecia, toda percorrida
de um gozo íntimo e alongando o corpo para trás; e de ventre para o ar ficava imóvel,
espreitando, com a boca entreaberta e os
olhitos reluzentes de uma cáustica lascívia, de bacante nua. Abraçavam-se então, lutando, as caudas em espiras;
armavam saltos por cima
dos móveis, iam esconder-se nas
franjas espessas dos fauieuilí
muito baixos e, suspendendo-se em cacho dos pés esculpidos das consolas incrustadas de metal e madrepérola, sacudiam-se, balançando
os corpos como dois ginastas em
exercícios de destreza. A tia Consuelo impacientava-se já de semelhantes correrias.
Descobria uma nódoa no carmesim do divã da
sala e achara estripado a
unhadas o ventre de uma antiga
bergere preciosa, do tempo da senhora
infanta D. Ana. Além disso, a
estroinice dos brutinhos punha uma nota
impertinente na monotonia sonolenta
da casa, antiga casa
cheia de silêncio e conforto, onde o piano dormia meses
inteiros e os móveis do salão alinhavam,
como colegiais em revista, os seus bojos vestidos em camisas de bretanha.
A gatarrona mãe, toda insensível
às festas, muda e empertigada como a dona da
casa, era tão indolente como esta;
e ao lado de D. Consuelo, sobre
uma almofada de seda, dormia dias
inteiros, com uma coleira escarlate de fechos de ouro. Só ela, com a sua idade circunspecta e a
sua moleza freirática, dizia bem no
salão de cores austeras em que D. Consuelo recebia os padres de S. Luís e as irmãs do Coração de Maria, e levava as
tardes sepultada na voltaire, toda amortalhada
em veludo negro, touca de rendas pretas e as Meditações sobre o Divino Jesus nos joelhos. De forma que, um
domingo, determinou expulsar do
santuário os patifes ruidosos, o que alegrou Fernanda vivamente: ia enfim ser toda daqueles garotinhos gentis e ferozes.
Era domingo,
luminoso dia de primavera
germinadora e florida, sonoro de rumores
de gente festiva e cortada
de voos de andorinhas meigas, que entravam
a construir os
ninhos pelas cimalhas das águas-furtadas. Fernanda não quis almoçar sem que os bichos viessem;
conseguira dois lugares à mesa para eles;
a gatinha ficar-lhe-ia
quase no colo, o gato
mais longe, com um pratinho de porcelana provido dos
melhores bocados. E que nome lhes poriam? Foi um meditar profundo sobre o
problema.
Houvera em casa uma
gata francesa, que morrera de
velha e tinha um rabo branco
caricioso — a
Blanche. Pobre querida!
Estava sepultada no jardim entre duas roseiras de todo o ano. E Fernanda
recordava o seu modo subtil de se roçar
pelas saias à comida, com o ronrom dolente de uma beata oferecendo rezas,
e o seu comer dificultoso de desdentada,
rejeitando os ossos das perdizes e. preferindo bolos fofos, de
recheios aromáticos, que ao almoço se serviam
em pilhas, sobre cabazinhos de rosas, de velho Sèvres rococó.
E aparecera morta
uma manhã de inverno,
ao pé do lago. A gatinha
devia chamar-se Blanche
também, um nome da
cor do seu vestido cetinoso de princesa.
Mas o Artur, o garoto mais velho da
casa, era de opinião diversa. Segundo ele, deviam batizar-se os dois bebés,
na banheira de mármore do rés- do-chão, sendo ele padrinho, mais o trintanário.
Mergulhariam os moiritos na
banheira cheia de uma água perfumada, ao som de rezas que só ele sabia, e de umas
bengaladas valentes, ao primeiro berro que
soltassem os neófitos, na
banheira trasvazando. Depois do que, seria servido
vinho aos pequenos, com aplicação de
pancadaria suplementar e guizadas
ao pescoço — o que os
tornaria fortes, avisados
e aptos à compreensão da vida e à constância na luta com
as arganaças, que por acaso encontrassem
nas excursões à despensa ou às cocheiras da casa.
Fernanda magoou-se com
semelhantes opiniões, e quase chorou pelos pobres inocentes que lhe
mandava, do fundo do seu conforto beato
e egoísta, a boa
tia Consuelo. Quando eles
chegaram num cabaz de vimes, com laços ao pescoço e um pouco assustados da jornada, Fernanda não
sabia que fazer para melhor exprimir a
sua satisfação: era um coro de risos cândidos e gorjeios inocentes; ia do
pai para os joelhos da mamã
e, esquecida já das
maldades do Artur, passava-lhe os braços ao pescoço, cobrindo-lhe
a face de beijos. Quisera para os dois gatinhos todo um palácio
de seda e gulodices, com o seu
trem completo de cozinha, a longa
bateria de peças de folha reluzentes e pequenas, fogões instalados nos respetivos
poiais de madeira
pintada, um serviço
de porcelana fina,
mobília e carruagens elegantemente
forradas a pedaços de cetim de
todas as cores, lavatórios e leitos,
uma multidão de objetos microscopicamente construídos, que a paciência
da manhã adquirira durante uma semana
inteira de investigações,
pelos armazéns de quinquilharias
da cidade. E a instalação, que encantadora
e que trabalhosa!...
A gatinha saltava
desdenhosamente por cima das
otomanas e das causeuses delicadas,
atirava com lavatórios e caçarolas, fazendo com a cauda desabar os guarda-louças tão ricamente providos. Quanto
ao gato, foi impossível metê-lo no quiosque dourado, onde tantas preciosidades de mobília se
acumulavam. Ao primeiro
esforço de Fernanda para o fazer entrar, assoprou raivoso, desembainhando unhas ameaçadoras contra a doce
protetora, que tão generosamente
lhe ofertara opulência
e conforto. E, apenas o largaram no parquet,, desatou a fugir pelas salas como um
desalmado evadido. Em breve, Fernanda se
persuadiu da impossibilidade completa de fazer caseiro o ménage.
E a pomposa
e pequenina residência passou a
ser habitada por uma
família extraordinária de bonecas
de todos os tamanhos. A paixão do loiro amorzinho pelos
dois maus animais vertia
agora o fel de uma ingratidão profunda. Ela não
podia compreender realmente o desdém
soberano dos gatos
pelas magníficas provas de
amor que lhes
dera, no seu entusiasmo de pequena caprichosa. E, nos primeiros dias, os seus
afagos para os gatinhos orvalhavam-se
das lágrimas de um
ressentimento angélico e mal contido.
Eles, os dois patifes, adquiriram pouco a pouco a sua franca
e leviana liberdade; ao almoço e ao
jantar subiam pelos vestidos e pela toalha, reclamando em voz alta o seu talher de pessoas de família; atacavam sem a
menor cerimônia os pratos que apanhavam
sem guarda no aparador
e nas bancas da cozinha;
iam miar em coro por baixo das alcofas da carne crua
e dos cabazes providos de peixe fresco;
escamugiam-se sorrateiramente
para a despensa, a
encherem os bandulhos de quanto
apanhavam de suculento, e umas vezes por outras, nas noites úmidas e chuvosas, tinham o péssimo
costume de afiar as unhas nos mognos
polidos e nos estofos matizados dos gabinetes, sulcando e rasgando, sem preferência e sem atenção de preços.
Fernanda ria com eles e achava-os de uma graça cativante.
E, a todo o transe, defendia-lhes
as velhacadas, orgulhosa de sofrer pelos que amava com tamanha loucura.
Chegou o dia dos anos do Artur —
uma quinta-feira, em Maio. Determinaram ir
passar o dia à quinta, em Carriche.
Ia a boa dama Consuelo, as
pequenas Magalhães, as primas Lopes e todo o mundo
infantil da família. Na
véspera, disfarçadamente, enquanto
Artur estava no colégio, Fernanda
saíra com a mamã à compra de presentes para o dia
seguinte. Tinha um mundo de projetos na
mente: torres ideais de cartonagem com sinos dourados e portais de colunelos; jardins
de cascatas surpreendentes;
grandes exércitos de chumbo formados em ordem de ataque com baterias de latão; as arcas de Noé, em que
reside um mundo inteiro de bugigangas
coloridas; esquadras empavesadas de flâmulas com almirantes de estanho,
comandando tripulações de
madeira suíça; pequeninos
teatros com figuras
de verniz e paisagens ternas de Nuremberga; tudo
quanto a fantasia pode
realizar de pueril e caprichoso e
quanto uma criança
pode exigir, na incoerência dos seus devaneios cor-de-rosa.
A mamã aconselhava um cabazinho
de doces frescos, do Baltresqui. Era mais delicado!
Mas Fernanda tinha os
olhos numa catedral de madeira branca, elegantíssima de cúpulas e rendilhados, por
cujo pórtico profundo e alto, na sua
escadaria de balaústres góticos, uma multidão de fiéis ia subindo, colada com goma-arábica.
— Que lindo, mamã, que lindo! —
dizia ela pousando devotadamente as suas
mãozinhas toute roses no magnífico zimbório com ventanas de espelho e ornatos de cartão, representando faunas
engalfinhados. E imperiosa, empertigada
nos tacões dourados dos seus sapatinhos de verniz, declarou que escolhera, e que o Artur deveria ficar muito
encantado de um presente de tal modo
original. A catedral foi conduzida na carruagem com extremas cautelas, ao lado
de um chapéu que para a
pequenina a mamã
escolhera na Emília d'Abreu. Recolheram cedo a casa, antes de o
pequeno voltar, e à noite, num gabinete
fechado e sobre a larga mesa
coberta de tapete, os presentes da família e dos amigos do Arturinho, ostentavam,
num soberbo bazar, as suas formas
pitorescas e os seus matizes
originais. Eram os cabazes de camélias
vermelhas, bordadas de heras e
pequeninos bouquets de violetas de Parma; as bocetas de cores vivas e esmaltes garridos,
túrgidas de doçarias caras; grupos de
porcelana e terre-cuite numa infinidade de posições ingênuas ou garotas. A Laura
deixara a sua
fotografia risonha de querubim
pensativo, um rostinho doce
coroado de uma bela
cabeleira loira, em anéis. E os amigos
todos, o Alfredo,
o José e os
dois gêmeos Nogueiras,
tinham vindo trazer uma lembrança
amável, chicotes, capacetes, cavalos de molas, mágicos em caixas, o diabo! Ao centro, a catedral de Fernanda, com
as suas torres severas, de um gótico amaneirado,
e o seu zimbório de colunelos
flexuosos, erguia-se majestosamente no meio da
cidade de camélias e violetas,
e das pinturas vívidas dos
cofres, cheios de rebuçados e pastilhas e aromatizados das mais finas essências.
Por entre as corbeilles, extravasando cores e perfumes,
os gitanos de terre-cuite dançavam aos pares,
e as pastorinhas de louça com os
seus trajos coloridos e os seus rostinhos frescos, pareciam de antemão
celebrar a formosa manhã a desabrochar
no aniversário do dia seguinte.
Como o Artur ficaria contente,
quando ao outro dia abrissem à sua curiosidade
aquele profuso mundo de brinquedos e gulodices!. E Fernanda, nos bicos
dos sapatinhos e sem fazer ruído,
arrumava e dispunha tudo,
ao lado da mamã, tocando com a
pontas dos dedos as coisas, como numa capela, absorta
num êxtase profundo de
sonhos inocentes, como
se o seu espírito viajasse por um grande país de quinquilharias
ideais e maravilhosas.
Quando acabaram a tarefa,
a mamã sentou-a no colo, comovida
por aquela dedicação fraternal e
solícita, que tudo queria para presente de anos do Artur; beijaram-se ambas, por muito tempo.
— É verdade — disse Fernanda —, e o chapéu?
A mamã foi buscar o chapéu: era
um delicioso bijou de palha amachucado à banda,
com um ramilhete
de miosótis adoravelmente perdido num
tufo de gaze fina, tão fina que mal se apertava na
mão, parecendo espumar por entre os
dedos, como champanhe vertido de uma torneira.
A pequenina quis pô-lo:
ficava graciosamente, um
pouco tombado sobre os olhos.
De sob as abas,
em caprichosos rodopios,
rebentava a cabeleira
loira de querubim, que adquiria contra a luz
transparências de oiro fino, enquanto uma onda de tule branco ia cingir-lhe o pescoço,
como aragens tecidas por mãos de
princesas mouriscas, das que falam os contos do Meio-Dia.
O desejo de Fernanda era não
tirar mais esse pequenino e fresco chapéu, cuja aba tombada enchia de uma sombra úmida os seus
grandes olhos. Mas era forçoso esperar
o dia seguinte, quando fossem para a
quinta. A pequenina exigiu que
o chapéu ficasse sobre a banca,
entre os presentes de anos do Artur,
descoberto e aninhado na sua onda fofa de tule branco. Esteve ainda a olhá-lo:
os miosótis com as florinhas miúdas,
de uma contextura paciente
e nítida, dispostas num
forte cacho azul, entre folhas
verde baço, davam um encanto.
ingênuo à copa cônica, um
pouco extravagante talvez. Visto
de lado, parecia um
ninho de penugens tépidas, de que
os passarinhos houvessem partido um minuto antes. De
repente a sineta
tocou: voltava o Artur do colégio. Fecharam .a
porta do gabinete muito depressa,
não desconfiasse ele. No dia
seguinte, quando lhe mostrassem tudo, dizendo:
— Aí tens, é para
ti .. — que loucuras e que júbilos
não comoveriam esse vermelho
endiabrado, de que os velhos
criados tinham já medo!
Apenas o gabinete ficou só, a gatinha trepou para cima
da mesa, e pôs-se a mirar tudo, dando passadinhas leves, toda cautelosa pelo
meio dos presentes acumulados, cheirando
e lambendo aqui além. Nos seus
olhitos garotos, um clarão de malícia
ingênua, parecia beber enlevadamente os matizes;
farejava os cofres por todos
os lados, baixando a
cabecita, como quem reflete. Diante
da catedral o seu pasmo pareceu
crescer, porque se deteve de pescoço estendido, a medir
a altura das cúpulas,
de patas firmes nos
primeiros degraus da escadaria,
com prejuízo de dois devotos
de cartão, que esmagou com uma indiferença soberana. Deu com o chapéu de
Fernanda enroscado na faixa de tule
branco, e a passadas lentas foi para ele, com o dorso alto, espiralando a cauda,
toda contente do achado.
A tarde caía, e o gabinete carregava-se
de sombra.
Pela vidraça, a
paisagem ganhava manchas sombrias e grandes esbatimentos de um vago picado a pontinhos de gás rutilante.
Subia do bairro comercial e das grandes
ruas de trânsito um tohu-bohu de labutas que esmorecem, e carruagens
que se perdem, circulando. Um sino tocava...
No gabinete, faziam-se
deslocamentos confusos de formas e de aromas, e os olhos
da gata, fosforescentes, luziam como dois faróis em flutuação,
na penumbra alastrada em torno. A
palha do chapelito gemeu: a gata acabava de enroscar-se
no ninho da
copa, fazendo posição, para dormir.
Nunca sentira cama
mais macia e
mais doce que aquele fundo de chapéu forrado de seda branca,
onde o tule enrolado dava
uma moleza preguiçosa
de coxim, de edredon! ainda porém não tinha cerrados os
olhos, e já o irmãozito, dando um salto
ágil, caía em cheio sobre a ampla
aba do chapéu amachucando o precioso cacho de miosótis. A coquette então
ergueu a cabecinha irónica com um meneio
crioulo de amante benévola. De cima da aba curva, como de cima de um muro, pendia a patinha do gato, toda
branca e nervosa, desafiando.
Essa pata estendeu-se,
estendeu-se e, subtil como num jogo de prendas, deu uma
sapatadazinha no crânio da fêmea,
retraindo-se logo. Mas a
gatinha parecia querer dormir
e aninhou-se de novo no seu fundo de copa, onde a seda punha a alvura cariciosa de uma alcova.
A tática do gato mudou então:
rebolando-se lascivamente pelo declive da aba, o marau pôde atrair a si todo o tule da faixa
livre, que Fernanda enrolara ao pescoço,
um momento antes.
Uma vez envolto nas ondas de
espuma do tecido, entrou a arrastar o chapéu atrás de si,
pela mesa fora.
Foi o sinal: a
gatinha sacudiu rapidamente a sonolência, espreguiçou-se com uma distenção
prolongada de patas e de espinha dorsal, escancarando a
goela e distendendo vigorosamente o corpinho da fera contente, que desperta. O dorso, de
uma alvura singular de arminho, teve um
lampejo brusco de centelha, quando o crânio chato e muito curto, de maxilas ferozes, roçou com um
deleite pérfido de volúpia as
penugens impercetíveis das patas, armadas terrivelmente de alfanges
curvos. Com um pulo agachou-se na copa do chapéu, como
numa caverna, à espreita. O seu olho inquieto
fuzilava. Todo o corpo encolhido
percorria-se de pequeninos frêmitos de impaciência, que as orelhas continuavam, imprimindo à
cabeça um grande cunho de astúcia recalcada.
O gato vinha de rastos,
apagando o som dos movimentos,
garrido no seu tule como um pajenzito aventureiro. E, à medida que ele vinha, o pescoço da gata, do
outro lado da aba, alongava-se, escorregando
docemente pela seda do forro. Por fim, as patas encontraram-se, e cada qual disputou o tule, às unhadas, a
dente. A faixa, que se desenrolava do
corpo dele, acabou em frangalhos nas unhas dos dois.
Um golpe desunira porém duas
fibras de palha, da aba derrubada. O gatinho meteu a cabecita pela abertura, radiante de
maldade, e foi morder o cacho de miosótis. Do seu lado,
a gata continuou a
obra, descobrindo os dentinhos brancos.
Mas em breve o destroço se
propagou aos presentes de anos do Artur,
com uma rapidez de saque
premeditado. As corbeilles viram-se despojadas das suas cintas de hera, reluzentes
e excentricamente recortadas, e dos seus
maciços de camélias reais. Na vertigem do can-can desenfreado, que os dois
diabitos armaram por cima da banca,
todos os objetos
leves eram arrojados para a banda
num rodopio constante: os gitanos partiram braços e pernas,
as pastorinhas ficaram sem cabeça,
algumas bocetas violentadas cederam, e foi um destroço geral de natas, especiarias e recheios. Um rebuçado de ovos ficou pegado à catedral
de Fernanda, obstruindo o pórtico por
onde os devotos de cartão começavam a entrar, envernizados e festivos. E a
valsa extraordinária continuava
sempre, sem respeito e sem
cansaço. Na manhã do dia seguinte, enquanto no pátio o
cocheiro punha o landeau, e as carruagens
chegavam, trazendo os priminhos e as numerosas tias, Fernanda, com uma
deliciosa túnica azul-céu e um largo colar de marinheiro bretão, foi chamar o Artur, que acabava de vestir-se.
— Bons-dias — disse ela, beijando-o. — Tens ali
muitos bonitos, vem ver.
O
pequeno não quis saber de
mais; foi às carreiras abrir a porta,
e entrou cheio de avidez no
gabinete onde estavam dispostos os presentes.
Ao princípio, Fernanda e o irmão entreolharam-se num desolamento indescritível, vendo os dois gatinhos
abraçados, que dormiam tranquilos, no meio
das ruínas do soberbo bazar
construído na véspera. E tão
sossegados como se nada lhes
pesasse do que tinham feito!
— Olha
— balbuciou Fernanda, sentindo as lágrimas na garganta —, estragaram tudo!
— É verdade — fez atônito o Artur.
Veio-lhe um ímpeto de raiva
sanguínea contra os dois patifes, que pareciam zombar,
com os seus tranquilos olhares,
da assolação que tinham feito.
E, com o primeiro chicote que viu,
descarregou nos lombos do grupo
uma vergastada sibilante, que
arrancou um berro às duas gargantas contraídas.
Diante do esqueleto do gracioso
chapéu de palha, tão pitorescamente ornado do seu cacho de miosótis, a pequenita,
cruzando as mãozinhas pálidas, de uma escultura
fina e reticulada de veias microscópicas, chorava silenciosamente as pérolas de uma
dor serena e de um
amor espezinhado de ingratidões — porque amara com paixão os ingratos pupilos.
— Seus maus!
— dizia ela
sempre que os via na cozinha, já
crescidos, dormitando na mesma
cadeira.
Mas quase sempre a sua
mão, esquecida e
meiga, lhes ia afagar
as cabeças sonolentas e chatas,
como de dois pequeninos tigres preguiçosos.
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
Fialho de Almeida - Contos (1881)
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