domingo, 25 de agosto de 2013

Fialho de Almeida: "História de Dois Patifes"


HISTÓRIA DE DOIS PATIFES 

Toda  a  manhã,  Fernanda andou  impaciente  pelas casas, esperando  os  gatinhos. Ao acordar, fora aquela a sua primeira ideia — os dois pequeninos  animais, cheios de viveza e graça, em cujos olhos ria uma inocência travessa e  doce.  Havia  tempos  que a  tia  Consuelo  lhos prometera,  quando fossem  crescidinhos. E a  cada  visita  à  boa senhora,  Fernanda  levava  horas e horas  com eles, brancos de neve, uma finura de penugem que acariciava a pele, as  duas cabecinhas inquietas com orelhas que se fitavam petulantemente, a cada  ruído do gabinete.  Fernanda  tinha uma  paixão por aqueles  dois diabitos  brancos que levavam os dias, ou sugando as tetas da mãe, grande gata de pêlo  fulvo e pupilas glaucas, ou rebolando no tapete os corpinhos elétricos, numa  embriaguez de vida que fazia prazer. O gato era o mais leviano, com as suas  patinhas fofas e os dedos rosados na planta, de que as unhas transparentes e  curvas saíam desembainhadas,  nos momentos  de irritação,  se lhe pisavam a  cauda.  Tinha os  olhos azuis,  cheios de fibrilhas inquietas mais  escuras,  uma  ingenuidade selvagem  no  encarar,  fitando  as  orelhas  veludinosas,  em que  parecia residir toda a petulância dessa cabeça infantil. O focinho cor-de-rosa,  com barbicas alvoroçadas, sorria um pouco, mesmo quando assanhado, e de  gengivas, vermelhas e  húmidas, os  dentinhos  em serra,  agudos  e pequenos,  ressaíam gulosos, desafiando a gente. A gatinha afetava mais seriedade e mais  coquetterie,  uma  ambição  contida  de se  fazer senhora,  e  uma  ciência  complicada em se fazer amar do macho.  Nunca era a  primeira  no ataque, e  zangava-se, mal pressentia uma ofensa. À comida exigia os melhores pedaços,  rosnando sôfrega, com a pata eriçada de unhitas curvas, contra o primeiro que  lhe  chegasse ao  prato.  Dormitava  muito,  como  a  mãe;  às vezes o irmãozito chegava-se cauteloso, estendendo as patas e movendo vagarosamente a cauda,  as pupilas cheias de um clarão de patifaria. Com um movimento destro erguia  uma  pata  —  zás!  —  no  ventre da  sua companheira,  que entreabria  preguiçosamente os olhos, imóvel, com o focinho enterrado na penugem do  ventre.  Esta  indiferença  benévola  arrojava  o gaillard  do  gatinho  a  maiores  garotices. Chegava-se muito meigo, unhas escondidas, o dorso alto, as orelhas  chatas e deitadas para trás. Com as duas patas da frente, cingia o pescoço da  pequenina, e entrava a morder-lhe repetidamente o]?eito, os lábios, a pontinha  das orelhas, enquanto com as unhas traseiras lhe raspava voluptuosamente o  ventre e as coxas, provocando cócegas.  

Ela estremecia, toda percorrida de um gozo íntimo e alongando o corpo para  trás; e de ventre para o ar ficava imóvel, espreitando, com a boca entreaberta e  os olhitos reluzentes de uma cáustica lascívia, de bacante nua. Abraçavam-se  então, lutando, as caudas em  espiras;  armavam saltos  por  cima  dos móveis, iam esconder-se  nas franjas espessas dos fauieuilí  muito  baixos  e,  suspendendo-se  em cacho dos pés  esculpidos das  consolas incrustadas de  metal e madrepérola, sacudiam-se, balançando os corpos como dois ginastas  em exercícios de destreza. A tia Consuelo impacientava-se já de semelhantes  correrias.  Descobria  uma  nódoa no carmesim do divã  da  sala  e  achara  estripado a  unhadas o ventre  de uma  antiga  bergere  preciosa,  do tempo da  senhora  infanta  D.  Ana. Além disso,  a  estroinice  dos  brutinhos punha uma  nota  impertinente na  monotonia  sonolenta  da  casa,  antiga casa  cheia  de  silêncio e conforto, onde o piano dormia meses inteiros e os móveis do salão  alinhavam, como colegiais em revista, os seus bojos vestidos em camisas de  bretanha.
  
A gatarrona mãe, toda insensível às festas, muda e empertigada como a dona  da  casa, era  tão indolente como  esta;  e ao lado  de D. Consuelo, sobre uma  almofada de seda, dormia dias inteiros, com uma coleira escarlate de fechos de  ouro. Só ela, com a sua idade circunspecta e a sua moleza freirática, dizia bem  no salão de cores austeras em que D. Consuelo recebia os padres de S. Luís e  as irmãs do Coração de Maria, e levava as tardes sepultada na voltaire, toda  amortalhada em veludo negro, touca de rendas pretas e as Meditações sobre o  Divino Jesus nos joelhos. De forma que, um domingo, determinou expulsar  do santuário os patifes ruidosos, o que alegrou Fernanda vivamente: ia enfim  ser toda daqueles garotinhos gentis e ferozes.

Era  domingo,  luminoso  dia  de primavera  germinadora  e florida,  sonoro de  rumores  de gente  festiva  e cortada  de voos de andorinhas  meigas,  que  entravam a  construir  os  ninhos pelas cimalhas das águas-furtadas.  Fernanda  não quis almoçar sem que os bichos viessem; conseguira dois lugares à mesa  para  eles;  a  gatinha  ficar-lhe-ia  quase no colo,  o  gato  mais longe,  com um  pratinho de porcelana  provido dos  melhores  bocados.  E  que  nome lhes  poriam? Foi um meditar profundo sobre o problema.

Houvera em casa  uma  gata  francesa, que morrera de velha e tinha um  rabo  branco  caricioso  —  a  Blanche.  Pobre  querida!  Estava  sepultada  no jardim  entre duas roseiras de todo o ano. E Fernanda recordava o seu modo subtil de  se roçar pelas saias à comida, com o ronrom dolente de uma beata oferecendo  rezas,  e o seu comer dificultoso de desdentada,  rejeitando os  ossos das  perdizes e. preferindo bolos fofos, de recheios aromáticos, que ao almoço se  serviam em pilhas,  sobre  cabazinhos de rosas, de velho Sèvres rococó. E  aparecera  morta  uma  manhã  de inverno,  ao pé  do lago.  A gatinha  devia  chamar-se Blanche também,  um  nome da  cor do seu vestido cetinoso de  princesa. Mas o Artur,  o garoto mais  velho da  casa,  era  de opinião diversa.  Segundo ele, deviam batizar-se os dois bebés, na banheira de mármore do rés- do-chão, sendo ele padrinho, mais o trintanário.  

Mergulhariam os moiritos na banheira cheia de uma água perfumada, ao som  de rezas que só ele sabia, e de umas bengaladas valentes, ao primeiro berro  que soltassem os  neófitos,  na  banheira  trasvazando.  Depois do que,  seria  servido vinho aos pequenos, com aplicação de  pancadaria suplementar e  guizadas ao pescoço  —  o que os  tornaria  fortes,  avisados  e aptos  à  compreensão da vida e à constância na luta com as arganaças, que por acaso  encontrassem nas excursões à  despensa  ou às cocheiras da  casa.  Fernanda  magoou-se com semelhantes opiniões, e quase chorou pelos pobres inocentes que lhe mandava,  do fundo do seu conforto beato e egoísta,  a  boa  tia  Consuelo. Quando eles chegaram num cabaz de vimes, com laços ao pescoço  e um pouco assustados da jornada, Fernanda não sabia que fazer para melhor  exprimir a sua satisfação: era um coro de risos cândidos e gorjeios inocentes;  ia  do pai para  os joelhos da  mamã  e,  esquecida  já  das maldades  do Artur,  passava-lhe os braços ao pescoço, cobrindo-lhe a face de beijos. Quisera para  os  dois gatinhos todo um  palácio  de seda e gulodices,  com o seu trem  completo de cozinha, a longa bateria de peças de folha reluzentes e pequenas,  fogões instalados nos  respetivos  poiais  de  madeira  pintada,  um  serviço  de  porcelana  fina,  mobília  e carruagens  elegantemente  forradas a  pedaços de  cetim de  todas as cores,  lavatórios  e leitos,  uma  multidão  de objetos  microscopicamente construídos, que a paciência da manhã adquirira durante  uma  semana  inteira de investigações,  pelos  armazéns de quinquilharias da  cidade. E a instalação, que encantadora e que trabalhosa!...

A gatinha  saltava  desdenhosamente por  cima das otomanas e das causeuses  delicadas, atirava com lavatórios e caçarolas, fazendo com a cauda desabar os  guarda-louças tão ricamente providos. Quanto ao gato, foi impossível metê-lo  no  quiosque dourado,  onde tantas preciosidades de mobília  se  acumulavam.  Ao primeiro esforço  de Fernanda para  o fazer entrar,  assoprou raivoso,  desembainhando unhas ameaçadoras contra  a  doce protetora,  que tão  generosamente  lhe  ofertara  opulência  e conforto.  E,  apenas o largaram no  parquet,, desatou a fugir pelas salas como um desalmado evadido. Em breve,  Fernanda se persuadiu da impossibilidade completa de fazer caseiro o ménage.

E a  pomposa  e pequenina  residência  passou a  ser habitada  por  uma  família  extraordinária de bonecas de todos os tamanhos. A paixão do loiro amorzinho  pelos  dois  maus animais  vertia  agora  o fel de uma  ingratidão profunda.  Ela  não podia  compreender realmente o desdém soberano  dos  gatos  pelas  magníficas  provas de  amor  que  lhes  dera,  no seu entusiasmo de  pequena  caprichosa. E, nos primeiros dias, os seus afagos para os gatinhos orvalhavam-se  das  lágrimas  de  um ressentimento  angélico e mal  contido.  Eles, os  dois  patifes, adquiriram pouco a pouco a sua franca e leviana liberdade; ao almoço  e ao jantar subiam pelos vestidos e pela toalha, reclamando em voz alta o seu  talher de pessoas de família; atacavam sem a menor cerimônia os pratos que  apanhavam sem guarda  no  aparador  e nas  bancas da  cozinha;  iam miar em  coro  por baixo das alcofas da  carne crua  e dos  cabazes  providos de peixe  fresco;  escamugiam-se sorrateiramente  para  a  despensa, a  encherem os  bandulhos de quanto apanhavam de suculento, e umas vezes por outras, nas  noites úmidas e chuvosas, tinham o péssimo costume de afiar as unhas nos  mognos polidos e nos estofos matizados dos gabinetes, sulcando e rasgando,  sem preferência e sem atenção de preços. Fernanda ria com eles e achava-os de uma graça cativante.

E, a todo o transe, defendia-lhes as velhacadas, orgulhosa de sofrer pelos que  amava com tamanha loucura.

Chegou o dia dos anos do Artur — uma quinta-feira, em Maio. Determinaram  ir passar o dia à quinta, em Carriche.

Ia a boa dama Consuelo, as pequenas Magalhães, as primas Lopes e todo o  mundo  infantil da  família.  Na  véspera,  disfarçadamente,  enquanto  Artur  estava no colégio, Fernanda saíra com a mamã à compra de presentes para o  dia  seguinte.  Tinha um  mundo de projetos  na  mente:  torres  ideais de  cartonagem com sinos dourados  e portais de colunelos;  jardins  de cascatas  surpreendentes; grandes exércitos de chumbo formados em ordem de ataque  com baterias de latão; as arcas de Noé, em que reside um mundo inteiro de  bugigangas coloridas; esquadras empavesadas de flâmulas com almirantes de  estanho,  comandando  tripulações de madeira  suíça;  pequeninos  teatros  com  figuras  de verniz e  paisagens  ternas de Nuremberga;  tudo  quanto a  fantasia  pode  realizar de pueril  e caprichoso e quanto  uma  criança  pode exigir,  na  incoerência dos seus devaneios cor-de-rosa.

A mamã aconselhava um cabazinho de doces frescos, do Baltresqui. Era mais  delicado!  Mas Fernanda  tinha  os  olhos  numa catedral de madeira  branca,  elegantíssima de cúpulas e rendilhados, por cujo pórtico profundo e alto, na  sua escadaria de balaústres góticos, uma multidão de fiéis ia subindo, colada  com goma-arábica.

— Que lindo, mamã, que lindo! — dizia ela pousando devotadamente as  suas mãozinhas toute roses no magnífico zimbório com ventanas de espelho e  ornatos de cartão, representando faunas engalfinhados. E imperiosa,  empertigada nos tacões dourados dos seus sapatinhos de verniz, declarou que  escolhera, e que o Artur deveria ficar muito encantado de um presente de tal  modo original. A catedral foi conduzida na carruagem com extremas cautelas,  ao lado  de um  chapéu que para  a  pequenina  a  mamã  escolhera  na Emília  d'Abreu. Recolheram cedo a casa, antes de o pequeno voltar, e à noite, num  gabinete fechado e sobre a  larga  mesa  coberta  de tapete,  os presentes da  família e dos amigos do Arturinho, ostentavam, num soberbo bazar, as suas  formas pitorescas e os seus matizes  originais.  Eram os cabazes de camélias  vermelhas, bordadas de heras e pequeninos bouquets de violetas de Parma; as  bocetas de cores vivas e esmaltes garridos, túrgidas de doçarias caras; grupos  de porcelana e terre-cuite numa infinidade de posições ingênuas ou garotas. A  Laura  deixara  a  sua  fotografia  risonha de querubim pensativo,  um  rostinho  doce  coroado de  uma  bela  cabeleira  loira,  em anéis. E os  amigos  todos,  o  Alfredo,  o  José  e  os dois  gêmeos  Nogueiras,  tinham vindo  trazer  uma  lembrança amável, chicotes, capacetes, cavalos de molas, mágicos em caixas, o  diabo! Ao centro, a catedral de Fernanda, com as suas torres severas, de um  gótico  amaneirado,  e o seu zimbório de colunelos  flexuosos,  erguia-se  majestosamente no meio  da  cidade de camélias e violetas,  e  das pinturas  vívidas dos  cofres,  cheios de rebuçados  e pastilhas e aromatizados  das mais  finas essências.

Por entre  as corbeilles,  extravasando cores  e perfumes,  os  gitanos  de terre-cuite dançavam aos  pares,  e as pastorinhas  de louça  com os  seus trajos coloridos e os seus rostinhos frescos, pareciam de antemão celebrar a formosa  manhã a desabrochar no aniversário do dia seguinte.

Como o Artur ficaria  contente,  quando  ao  outro dia abrissem à  sua  curiosidade aquele profuso mundo de brinquedos e gulodices!. E Fernanda,  nos bicos  dos sapatinhos e sem fazer ruído,  arrumava  e dispunha  tudo,  ao  lado da mamã, tocando com a pontas dos dedos as coisas, como numa capela,  absorta  num êxtase profundo  de sonhos  inocentes,  como  se  o  seu espírito  viajasse por um grande país de quinquilharias ideais e maravilhosas.  

Quando acabaram a  tarefa,  a  mamã sentou-a  no  colo,  comovida  por aquela  dedicação fraternal e solícita, que tudo queria para presente de anos do Artur;  beijaram-se ambas, por muito tempo.

—  É verdade — disse Fernanda —, e o chapéu?  

A mamã foi buscar o chapéu: era um delicioso bijou de palha amachucado à  banda,  com  um  ramilhete  de miosótis adoravelmente  perdido  num  tufo  de  gaze fina, tão fina que mal se apertava na mão, parecendo espumar por entre  os dedos, como champanhe vertido de uma torneira.

A pequenina  quis pô-lo:  ficava graciosamente,  um pouco  tombado sobre os  olhos. 

De sob  as abas,  em  caprichosos  rodopios,  rebentava  a  cabeleira  loira  de  querubim, que adquiria contra a luz transparências de oiro fino, enquanto uma  onda de tule branco ia cingir-lhe o pescoço, como aragens tecidas por mãos  de princesas mouriscas, das que falam os contos do Meio-Dia.  

O desejo de Fernanda era não tirar mais esse pequenino e fresco chapéu, cuja  aba tombada enchia de uma sombra úmida os seus grandes olhos. Mas era  forçoso esperar o  dia seguinte,  quando fossem para  a  quinta.  A  pequenina  exigiu que  o chapéu ficasse  sobre a  banca,  entre os presentes de anos do  Artur, descoberto e aninhado na sua onda fofa de tule branco. Esteve ainda a  olhá-lo:  os miosótis com as florinhas miúdas,  de uma  contextura  paciente  e  nítida,  dispostas num  forte cacho  azul, entre folhas verde baço,  davam um  encanto.  ingênuo à  copa cônica,  um  pouco extravagante talvez.  Visto de lado,  parecia  um  ninho de penugens tépidas,  de que os  passarinhos  houvessem partido um minuto antes.  De  repente  a  sineta  tocou: voltava  o  Artur do colégio.  Fecharam .a  porta  do gabinete muito  depressa,  não  desconfiasse ele. No dia seguinte, quando lhe mostrassem tudo, dizendo:  —  Aí tens,  é para  ti ..   —  que loucuras e  que júbilos  não comoveriam esse  vermelho endiabrado, de que os  velhos criados  tinham já  medo!  Apenas  o  gabinete ficou só, a gatinha trepou para cima da mesa, e pôs-se a mirar tudo, dando passadinhas leves, toda cautelosa pelo meio dos presentes acumulados,  cheirando e lambendo aqui além.  Nos seus olhitos  garotos,  um clarão de  malícia  ingênua,  parecia  beber enlevadamente  os matizes;  farejava  os cofres  por todos  os  lados,  baixando a  cabecita,  como quem reflete.  Diante  da  catedral o seu pasmo pareceu crescer, porque se deteve de pescoço estendido,  a  medir a  altura das  cúpulas,  de patas firmes nos  primeiros  degraus da  escadaria,  com prejuízo  de dois  devotos  de cartão, que esmagou com  uma  indiferença soberana. Deu com o chapéu de Fernanda enroscado na faixa de  tule branco, e a passadas lentas foi para ele, com o dorso alto, espiralando a  cauda,  toda  contente  do achado.  A tarde caía, e o gabinete carregava-se  de  sombra.

Pela  vidraça, a  paisagem ganhava  manchas  sombrias e grandes esbatimentos  de um vago picado a pontinhos de gás rutilante. Subia do bairro comercial e  das grandes ruas  de trânsito um  tohu-bohu de labutas que esmorecem,  e  carruagens que se perdem, circulando. Um sino tocava...

No gabinete, faziam-se deslocamentos confusos de formas e de aromas, e os  olhos  da  gata,  fosforescentes,  luziam como dois faróis  em flutuação,  na  penumbra alastrada em torno. A palha do chapelito gemeu: a gata acabava de  enroscar-se  no  ninho  da  copa, fazendo posição,  para  dormir.  Nunca  sentira  cama  mais  macia  e  mais  doce que aquele fundo  de chapéu forrado de seda  branca,  onde o tule  enrolado  dava  uma  moleza  preguiçosa  de coxim,  de  edredon! ainda porém não tinha cerrados os olhos, e já o irmãozito, dando um  salto ágil,  caía  em cheio sobre a  ampla  aba  do chapéu amachucando o  precioso cacho de miosótis. A coquette então ergueu a cabecinha irónica com  um meneio crioulo de amante benévola. De cima da aba curva, como de cima  de um muro, pendia a patinha do gato, toda branca e nervosa, desafiando.  

Essa pata estendeu-se, estendeu-se e, subtil como num jogo de prendas, deu  uma  sapatadazinha no crânio  da  fêmea,  retraindo-se  logo.  Mas a  gatinha  parecia  querer dormir  e aninhou-se  de novo no  seu fundo de copa,  onde a  seda punha a alvura cariciosa de uma alcova.

A tática do gato mudou então: rebolando-se lascivamente pelo declive da aba,  o marau pôde atrair a si todo o tule da faixa livre, que Fernanda enrolara ao  pescoço, um momento antes.

Uma vez envolto nas ondas de espuma do tecido, entrou a arrastar o chapéu  atrás de si,  pela  mesa  fora.  Foi  o sinal:  a  gatinha sacudiu rapidamente  a  sonolência, espreguiçou-se com uma  distenção  prolongada  de  patas e de espinha dorsal, escancarando a goela e distendendo vigorosamente o corpinho  da fera contente, que desperta. O dorso, de uma alvura singular de arminho,  teve um lampejo brusco de centelha, quando o crânio chato e muito curto, de  maxilas ferozes,  roçou com um  deleite pérfido de volúpia  as penugens impercetíveis das patas,  armadas terrivelmente  de alfanges  curvos.  Com um  pulo agachou-se na copa do chapéu,  como  numa caverna, à  espreita.  O  seu  olho inquieto  fuzilava.  Todo o corpo encolhido percorria-se de pequeninos  frêmitos  de impaciência,  que as orelhas continuavam,  imprimindo à  cabeça  um  grande cunho de astúcia  recalcada.  O  gato vinha  de rastos,  apagando o  som dos movimentos, garrido no seu tule como um pajenzito aventureiro. E,  à medida que ele vinha, o pescoço da gata, do outro lado da aba, alongava-se,  escorregando docemente pela seda do forro. Por fim, as patas encontraram-se,  e cada qual disputou o tule, às unhadas, a dente. A faixa, que se desenrolava  do corpo dele, acabou em frangalhos nas unhas dos dois.

Um golpe desunira porém duas fibras de palha, da aba derrubada. O gatinho  meteu a cabecita pela abertura, radiante de maldade, e foi morder o cacho de  miosótis.  Do seu lado,  a  gata  continuou a  obra,  descobrindo os dentinhos  brancos.  Mas em breve o destroço  se propagou aos  presentes de anos do  Artur,  com uma  rapidez de saque premeditado.  As corbeilles  viram-se  despojadas das suas cintas de hera, reluzentes e excentricamente recortadas, e  dos seus maciços de camélias reais. Na vertigem do can-can desenfreado, que  os  dois diabitos armaram por cima  da  banca,  todos  os  objetos  leves eram  arrojados para a banda num rodopio constante: os gitanos partiram braços e  pernas,  as pastorinhas ficaram sem cabeça,  algumas bocetas  violentadas  cederam, e foi um  destroço geral de natas,  especiarias e recheios.  Um rebuçado de ovos ficou pegado à catedral de Fernanda, obstruindo o pórtico  por onde os devotos de cartão começavam a entrar, envernizados e festivos. E  a  valsa  extraordinária  continuava  sempre,  sem respeito e  sem  cansaço.  Na  manhã do dia seguinte, enquanto no pátio o cocheiro punha o landeau, e as  carruagens chegavam, trazendo os priminhos e as numerosas tias, Fernanda, com uma deliciosa túnica azul-céu e um largo colar de marinheiro bretão, foi  chamar o Artur, que acabava de vestir-se.

—  Bons-dias — disse ela, beijando-o. — Tens ali muitos bonitos, vem ver.  

O  pequeno não quis  saber de mais;  foi às carreiras abrir a  porta,  e entrou  cheio de avidez no gabinete onde estavam dispostos os presentes.  

Ao princípio, Fernanda e  o irmão entreolharam-se  num desolamento  indescritível, vendo os dois gatinhos abraçados,  que  dormiam tranquilos, no  meio  das ruínas do soberbo  bazar construído na  véspera.  E tão  sossegados  como se nada lhes pesasse do que tinham feito!

—  Olha  —  balbuciou Fernanda,  sentindo as lágrimas na  garganta —, estragaram tudo!  

—  É verdade — fez atônito o Artur.  

Veio-lhe um ímpeto de raiva sanguínea contra os dois patifes, que pareciam  zombar,  com os seus  tranquilos  olhares,  da  assolação que tinham  feito.  E,  com o primeiro chicote  que viu,  descarregou nos lombos  do  grupo  uma  vergastada sibilante, que arrancou um berro às duas gargantas contraídas.  

Diante do esqueleto do gracioso chapéu de palha, tão pitorescamente ornado  do seu cacho de miosótis, a pequenita, cruzando as mãozinhas pálidas, de uma  escultura fina e reticulada de veias microscópicas, chorava silenciosamente as  pérolas de uma  dor  serena  e de um  amor espezinhado de ingratidões —  porque amara com paixão os ingratos pupilos.

—  Seus maus!  —  dizia  ela  sempre que os via  na  cozinha, já  crescidos,  dormitando na mesma cadeira.  

Mas quase sempre a  sua  mão,  esquecida  e  meiga,  lhes ia  afagar  as cabeças  sonolentas e chatas, como de dois pequeninos tigres preguiçosos. 


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Fialho de Almeida - Contos (1881)

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