UM SIMPLES
Não sei se ainda vive, no fundo das suas terras mineiras, cuidando a horta e o pomar que tinha
uma escancarada voragem em torno da qual
florejavam laranjais, o prudente,
acautelado Fraga. É natural que viva
porque, como o seguro morreu de velho, Fraga há de ir além do século que nasceu com ele.
Não o levarão moléstias nem desastres: acabará sossegadamente, sentado no limiar da sua casa,
olhando as arvores que plantou, sem
agonia e sem pecado, como uma lâmpada
que se extingue á mingua de óleo.
O Fraga, que me foi apresentado numa tarde brumosa, á hora doce da Ave-Maria, anunciada pelos sinos da velha e escavacada cidade, tão
rota nas suas terras como uma fidalga
que houvesse sido assaltada em caminho
por um rol de bandidos e ficasse sem uma
moeda e sem uma jóia e crivada de golpes atirada, como morta, ao fundo de um valado,
era um homem alto, magro, ossudo que, ao
aparecer na varanda alpendrada da casa
colonial, me fez lembrar o tipo
esgalgado do cavaleiro D. Quixote.
Recebeu-nos com a bonliomia patriarcal que caracteriza a gente hospitaleira de Minas e, recolhendo-nos á sua sala, alva, caiada de
fresco, onde reluzia a mobília negra, de
jacarandá esculpido, ofereceu-nos café e
fumo. No interior da casa senhorial crianças faziam alegre algazarra e, no pátio, fronteiro á
varanda, o gado domestico, que chegava
dos pastos, mugia baixinho.
Veio o candeeiro, que um negro suspendeu a um ferro e,
dentro do circulo de luz, em volta da mesa redonda, sobre a qual havia um vaso cheio de
cravos frescos, entabolamos conversa e,
de assunto em assunto, falamos de
viagens e foi, então, que o velho Fraga
emitiu a sua opinião de homem prudente, que prefere ir devagar, pousando em ranchos, com a
sua tropa espalhada no campo e os
camaradas estendidos em peles, á beira
de um fogo, tocando e cantando até á chegada do sono, a meter-se num vagão de comboio, trancado, oprimido, com a poeira a
entrar- lhe pela boca e a empanar-lhe os olhos.
— Olhe, meu amigo, os homens percorreram todos os mares sem o vapor e trilharam toda a superfície da terra sem as locomotivas. Para
levá-los pelas águas os navios eram como
grandes aves viageiras — á hora da
partida abriam as azas largas e lá iam
sem risco de explosões e, em terra, eram os carros de bois que rodavam, eram os cavaleiros
que passavam a galope, eram os elefantes
carregando ás costas famílias inteiras,
e camelos que trotavam pelos areais
abrasados. A viagem era vagarosa, mas a
gente tinha a certeza de chegar ao seu
destino.
Para civilizar o mundo o homem não precisou dessas complicadas “máquinas”, agora que está tudo pronto é que os tais progressistas se
lembram de estender trilhos e de aquecer
caldeiras, para que? Olhe, meu amigo,
depois de jantar o meu feijão podem vir
os melhores manjares deste mundo porque
eu nem os provo — estou farto. É assim também com as tais “máquinas”.
Agora que o mundo está conhecido de pólo a pólo é que vêm vapores, estradas de ferro, o
diabo... Porque não inventaram essas coisas antes? Com que companhia de vapores se entendeu Moisés para transportar os israelitas através do Mar
Vermelho? Em que comboio fugiu Nossa
Senhora para o Egito? Os primeiros efetuaram
a travessia a pé e a Virgem fez a viagem
montada num jumento.
Historias! E veja o amigo: Quem viaja a cavalo ou em carro de bois sente um ale-grão doido
quando vê na estrada, ao longe, outro
cavaleiro ou quando ouve o rincho de
outro carro de bois; e no trem? Se a
gente vê vir, na mesma linha, outro comboio em sentido contrario, só tem uma coisa a fazer: é
encomendar a alma ao Criador, porque
está frito. Não, meu amigo. Deus não
quer pressas, devagar se vai ao longe. O dia continuada ter as mesmas 24 horas, nem mais, nem menos; os infantes nascem
com o mesmo tempo e, se se precipitam,
não resistem. Não contrariemos as leis
divinas.
O meu amigo, para prolongar a conversa, que nos interessava, perguntou ao excelente velho:
“Que faria se fosse forçado a mudar-se
para terras distantes?” Fraga cruzou as
pernas, enclavinhou as mãos nos joelhos
e disse tranquilamente:
— Eu tenho aí uma cadeirinha ainda em estado de servir, possuo excelentes animais de sela,
bons carros e gado de primeira ordem. Se
tivesse de mudar-me arranjava a
cadeirinha para a velha, metia a criançada
em um carro coberto, metia noutro as criadas, arrumava os cacarecos em dois ou três, fazia uma boa matalotagem e, com o
rebanho entregue aos rapazes, que são de
confiança, uma manhã, com a fresca, antes
do sol, saía por aí fora, devagar. Água
não falta por essas terras de Deus.
Quando o sol apertasse, buscava a sombra das arvores, com a tarde retomava o caminho e, á
noite, se houvesse rancho, muito bem, se
não houvesse, melhor. Havia de chegar a
são e salvo, isso havia! afirmou.
O que está dando cabo do mundo é justamente essa pressa
ambiciosa. Para que havemos de correr? Quem
vai no seu passo, chega ao fim da vida descansado e sem remorso de haver pisado muita
criaturinha inofensiva. Eu, que aqui
estou, nunca me apressei para nada — vou
devagarinho e vou vencendo, e assim
parece que a velhice também vem chegando
devagar. Os senhores de agora querem ver muito, querem saber muito — que lucram
com isso? Aquela arvore que está ali
fora nunca se arredou daquele lugar —
ali nasceu, ali, todos os anos, fica coberta de flor; ali dá os seus frutos, os passarinhos já a conhecem; não é
feliz?
— Não sei, disse eu.
— Garanto que é. A felicidade é a flor da satisfação. Quem se contenta com o que tem, é
mais que venturoso, porque não conhece o
desejo que gera a inveja e a ambição.
Quantos soes bastam para aclarar o
mundo? um. Tudo que Deus fez anda devagar;
depressa andam as criações do diabo, como
os ventos que destroem, e os raios que fulminam.
Vamos devagar, nada de trens, nada de vapores.
Volta e meia é um desastre... Para que? Levantou-se, acompanhamo-lo á varanda.
A lua subia lenta e branca no céu, os
grilos cantavam na erva, um aroma de
flores agrestes perfumava o ar e, no
interior da casa senhorial, onde se fizera silencio, uma voz meiga cantava a ninar crianças.
— Pois é como lhe digo: trens não me apanham. Tenho a
minha bestinha viageira, dócil ao freio e de bom passo, que me leva a toda a
parte, sem risco. Eu, quando penso nos túneis, fico todo arrepiado. Deus me
livre! Para sepultura basta a que me espera no cemitério. E não sou tatu!
concluiu.
Euskin, o grande esteta, o visionário que sonhou a Saint
George's Guild, essa herdade modelo onde o homem, sem o auxilio de máquinas agrícolas,
semeava e colhia, e a mulher cardava a lã, levava a maçaroca ao fuso, fiava-a
cantando e depois, estendendo a trama no tear, punha-se a urdir o tecido, como
a Arachné pagã; Ruskin, o adorador da natureza, não só fugia aos trens, como os
combatia, não permitindo sequer que os objetos que lhe eram dirigidos (como os livros que o seu
editor lhe enviava de Orpington para
Londres, que eram transportados em carroças) fossem despachados nos armazéns
das gares.
Ruskin, comparando o passado com o presente, mostra um campônio de outrora viajando a pé, de uma cidade
a outra, através dos campos floridos,
bebendo nos límpidos regatos, repousando
á sombra das verdes arvores, ouvindo os
pássaros, contemplando os largos horizontes de verdura viçosa,
ou de alegres
colunas, com moinhos
que bracejavam e,
disseminadamente, como grandes moitas brancas, bandos de ovelhas
pastando. Além do exercício salutar,
tinha ele a impressão, e que gastava as
solas dos seus fortes sapatos
ferrados. O campônio de hoje, para fazer uma curta viagem, compra um bilhete, mete-se
em um vagão e, inerte, lá se deixa levar
aos solavancos. Fuma para distrair-se,
trava conversa com um desconhecido, que lhe
incute na alma rústica idéias subversivas;
na primeira estação, para fazer
alguma coisa, bebe; bebe adiante e lá vai,
cochilando ou viciando a alma no vagão, ou bebendo nas gares, e chega ao seu destino bêbedo, com
uns schillings de menos e o gérmen de um
crime na alma. A estrada de ferro é como
uma grande lagarta que destrói a beleza da natureza. Se atravessa um campo queima-o
com as fagulhas que lança; as florestas
abatem-se para que ela passe;
arredam-se os rochedos,
deventram-se as colinas,
desviam-se as águas — o
progresso é assim um destruidor
da graça. E Ruskin não menciona os desastres: os choques de comboios em rampas ou
dentro do túneis negros, os descarrilamentos, os esmagamentos de criaturas, e
todos os mais horrores, que formam o sinistro cortejo de tais engenhos.
Têm razão os dois homens: o velho Fraga com a sua simplicidade, aferrando-se aos hábitos patriarcais,
e o autor dos Modem
Painters defendendo a natureza. Não há como o burro para uma viagem pitoresca, mas francamente, para vencer distancias, com a urgência
que a nossa vida complicada exige-o
vapor parece-me insuficiente e só conseguiremos alguma coisa no dia em que a eletricidade for aplicada á tração nas
vias férreas e os balões cindirem os
ares, não um a um, mas aos enxames, em
revoadas, como grandes pombos correios. Desastres...
Que valem desastres? Rolem comboios, estourem
balões, cubra-se a terra de destroços, escureçam-se
os ares com retalhos de aeronaves, a Humanidade
irá por diante, contente, hérpica, indiferente ás vítimas, que são as oferendas á vitória. E os filhos do velho Fraga e os discípulos do
grande Buskin comprarão bilhetes nas
gares e nas estações aéreas e irão,
contentes, percorrendo centenas de quilômetros
por hora na terra ou no espaço e pensando no tempo em que o pai viajava pelos andurriais
mineiros ao chouto de uma besta preguiçosa,
o mestre subia ás colinas para
contemplar as nuvens douradas do crepúsculo
que eles verão, não mais acima das cabeças, mas debaixo dos pés, como amplo e flamejante
tapete estendido no espaço, superior ao
que Clitemnestra estendeu no palácio de
Argos para receber o átride vitorioso. E nesse tempo maravilhoso os homens, ainda insatisfeitos, pensarão em Progresso, mas no
fundo de uma aldeia, haverá sempre um
burrinho nédio e um velhinho que o monte
dizendo, como hoje diz o velho Fraga: “Que
prefere o seu asno a todos os comboios elétricos
da terra e a todos os balões do espaço”.
E Deus que nos conserve esses simples que são a Poesia suave do passado no turbilhão da vida contemporânea.
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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto apresentam sentido obscuro ou são resultados de erros no processo de digitalização da obra. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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