domingo, 18 de agosto de 2013

Coelho Neto: "Um Simples"

UM SIMPLES

Não sei se ainda vive, no fundo das suas terras  mineiras, cuidando a horta e o pomar que tinha uma  escancarada voragem em torno da qual florejavam  laranjais, o prudente, acautelado Fraga. É natural  que viva porque, como o seguro  morreu de velho,  Fraga há de ir além do século que nasceu com ele. Não o levarão moléstias nem desastres: acabará  sossegadamente, sentado no limiar da sua casa,  olhando as arvores que plantou, sem agonia e sem  pecado, como uma lâmpada que se extingue á  mingua de óleo.

O Fraga, que me foi apresentado numa tarde  brumosa, á hora doce da Ave-Maria, anunciada  pelos sinos da velha e escavacada cidade, tão rota  nas suas terras como uma fidalga que houvesse sido  assaltada em caminho por um rol de bandidos e  ficasse sem uma moeda e sem uma jóia e crivada de golpes atirada, como morta, ao fundo de um valado,  era um homem alto, magro, ossudo que, ao  aparecer na varanda alpendrada da casa colonial,  me fez lembrar o tipo esgalgado do cavaleiro D.  Quixote.

Recebeu-nos com a bonliomia patriarcal que  caracteriza a gente hospitaleira de Minas e,  recolhendo-nos á sua sala, alva, caiada de fresco,  onde reluzia a mobília negra, de jacarandá  esculpido, ofereceu-nos café e fumo. No interior da casa senhorial crianças faziam  alegre algazarra e, no pátio, fronteiro á varanda, o  gado domestico, que chegava dos pastos, mugia  baixinho.

Veio o candeeiro, que um negro suspendeu a um ferro e, dentro do circulo de luz, em volta da mesa  redonda, sobre a qual havia um vaso cheio de cravos  frescos, entabolamos conversa e, de assunto em  assunto, falamos de viagens e foi, então, que o velho  Fraga emitiu a sua opinião de homem prudente, que  prefere ir devagar, pousando em ranchos, com a sua  tropa espalhada no campo e os camaradas estendidos  em peles, á beira de um fogo, tocando e cantando até á  chegada do sono, a meter-se num vagão de  comboio, trancado, oprimido, com a poeira a entrar- lhe pela boca e a empanar-lhe os olhos.

— Olhe, meu amigo, os homens percorreram  todos os mares sem o vapor e trilharam toda a  superfície da terra sem as locomotivas. Para levá-los  pelas águas os navios eram como grandes aves  viageiras — á hora da partida abriam as azas largas e  lá iam sem risco de explosões e, em terra, eram  os carros de bois que rodavam, eram os cavaleiros  que passavam a galope, eram os elefantes  carregando ás costas famílias inteiras, e camelos que  trotavam pelos areais abrasados. A viagem era  vagarosa, mas a gente tinha a certeza de chegar ao  seu destino.

Para civilizar o mundo o homem não precisou  dessas complicadas “máquinas”, agora que está  tudo pronto é que os tais progressistas se lembram  de estender trilhos e de aquecer caldeiras, para que?  Olhe, meu amigo, depois de jantar o meu feijão  podem vir os melhores manjares deste mundo  porque eu nem os provo — estou farto. É assim  também com as tais “máquinas”.

Agora que o mundo está conhecido de pólo a  pólo é que vêm vapores, estradas de ferro, o diabo... Porque não inventaram essas coisas antes? Com que  companhia de vapores se entendeu Moisés para  transportar os israelitas através do Mar Vermelho?  Em que comboio fugiu Nossa Senhora para o  Egito? Os primeiros efetuaram a travessia a pé e  a Virgem fez a viagem montada num jumento.

Historias! E veja o amigo: Quem viaja a cavalo ou  em carro de bois sente um ale-grão doido quando vê  na estrada, ao longe, outro cavaleiro ou quando  ouve o rincho de outro carro de bois; e no trem? Se  a gente vê vir, na mesma linha, outro comboio em  sentido contrario, só tem uma coisa a fazer: é  encomendar a alma ao Criador, porque está frito.  Não, meu amigo. Deus não quer pressas, devagar se vai ao longe. O dia continuada ter as mesmas 24  horas, nem mais, nem menos; os infantes nascem  com o mesmo tempo e, se se precipitam, não resistem. Não contrariemos  as leis divinas.

O meu amigo, para prolongar a conversa, que  nos interessava, perguntou ao excelente velho:  “Que faria se fosse forçado a mudar-se para terras  distantes?” Fraga cruzou as pernas, enclavinhou as  mãos nos joelhos e disse tranquilamente:

— Eu tenho aí uma cadeirinha ainda em estado  de servir, possuo excelentes animais de sela, bons  carros e gado de primeira ordem. Se tivesse de  mudar-me arranjava a cadeirinha para a velha,  metia a criançada em um carro coberto, metia noutro as criadas, arrumava os cacarecos em dois ou  três, fazia uma boa matalotagem e, com o rebanho  entregue aos rapazes, que são de confiança, uma  manhã, com a fresca, antes do sol, saía por aí  fora, devagar. Água não falta por essas terras de  Deus. Quando o sol apertasse, buscava a sombra das  arvores, com a tarde retomava o caminho e, á noite,  se houvesse rancho, muito bem, se não houvesse,  melhor. Havia de chegar a são e salvo, isso havia!  afirmou.

O que está dando cabo do mundo é justamente essa pressa ambiciosa. Para que havemos de correr?  Quem vai no seu passo, chega ao fim da vida  descansado e sem remorso de haver pisado muita  criaturinha inofensiva. Eu, que aqui estou, nunca  me apressei para nada — vou devagarinho e vou  vencendo, e assim parece que a velhice também vem  chegando devagar. Os senhores de agora querem ver muito, querem saber muito — que lucram com isso?  Aquela arvore que está ali fora nunca se arredou  daquele lugar — ali nasceu, ali, todos os anos, fica coberta de flor; ali dá os seus  frutos, os passarinhos já a conhecem; não é feliz?

— Não sei, disse eu.

— Garanto que é. A felicidade é a flor da  satisfação. Quem se contenta com o que tem, é mais  que venturoso, porque não conhece o desejo que  gera a inveja e a ambição. Quantos soes bastam para  aclarar o mundo? um. Tudo que Deus fez anda  devagar; depressa andam as criações do diabo,  como os ventos que destroem, e os raios que  fulminam. Vamos devagar, nada de trens, nada de  vapores. Volta e meia é um desastre... Para que? Levantou-se, acompanhamo-lo á varanda. A lua  subia lenta e branca no céu, os grilos cantavam na  erva, um aroma de flores agrestes perfumava o ar e,  no interior da casa senhorial, onde se fizera silencio,  uma voz meiga cantava a ninar crianças.

— Pois é como lhe digo: trens não me apanham. Tenho a minha bestinha viageira, dócil ao freio e de bom passo, que me leva a toda a parte, sem risco. Eu, quando penso nos túneis, fico todo arrepiado. Deus me livre! Para sepultura basta a que me espera no cemitério. E não sou tatu! concluiu.

Euskin, o grande esteta, o visionário que sonhou a Saint George's Guild, essa herdade modelo onde o homem, sem o auxilio de máquinas agrícolas, semeava e colhia, e a mulher cardava a lã, levava a maçaroca ao fuso, fiava-a cantando e depois, estendendo a trama no tear, punha-se a urdir o tecido, como a Arachné pagã; Ruskin, o adorador da natureza, não só fugia aos trens, como os combatia, não permitindo sequer que os objetos que  lhe eram dirigidos (como os livros que o seu editor lhe  enviava de Orpington para Londres, que eram transportados em carroças) fossem despachados nos armazéns das gares.

Ruskin, comparando o passado com o presente, mostra  um campônio de outrora viajando a pé, de uma cidade a  outra, através dos campos floridos, bebendo nos límpidos  regatos, repousando á sombra das verdes arvores, ouvindo  os pássaros, contemplando os largos horizontes de verdura  viçosa,   ou  de  alegres  colunas,   com  moinhos   que  bracejavam  e,   disseminadamente,   como  grandes moitas brancas, bandos de ovelhas pastando. Além do exercício  salutar, tinha ele a impressão, e que gastava       as solas dos  seus fortes sapatos ferrados.  O campônio de hoje, para  fazer uma curta viagem, compra um bilhete, mete-se em  um vagão e, inerte, lá se deixa levar aos solavancos. Fuma  para distrair-se, trava conversa com um desconhecido, que  lhe incute na alma rústica idéias subversivas;   na primeira  estação, para fazer alguma coisa, bebe; bebe adiante e lá  vai, cochilando ou viciando a alma no vagão, ou bebendo  nas gares, e chega ao seu destino bêbedo, com uns  schillings de menos e o gérmen de um crime na alma.  A estrada de ferro é como uma grande lagarta que destrói a  beleza  da natureza. Se atravessa um campo queima-o com  as fagulhas que lança; as florestas abatem-se para que ela  passe; arredam-se   os  rochedos,   deventram-se  as    colinas, desviam-se  as  águas — o  progresso  é  assim um  destruidor   da graça. E Ruskin não menciona os  desastres: os choques de comboios em rampas ou dentro do túneis negros, os descarrilamentos, os esmagamentos de criaturas, e todos os mais horrores, que formam o sinistro cortejo de tais engenhos.

Têm razão os dois homens: o velho Fraga com a sua  simplicidade, aferrando-se aos hábitos patriarcais, e o  autor dos  Modem Painters defendendo a natureza. Não há  como o burro para uma viagem pitoresca, mas  francamente, para vencer distancias, com a urgência que a  nossa vida complicada exige-o vapor parece-me insuficiente e só conseguiremos alguma coisa no dia em  que a eletricidade for aplicada á tração nas vias férreas  e os balões cindirem os ares, não um a um, mas aos  enxames, em revoadas, como grandes pombos correios.  Desastres... Que valem desastres? Rolem comboios,  estourem balões, cubra-se a terra de destroços,  escureçam-se os ares com retalhos de aeronaves, a  Humanidade irá por diante, contente, hérpica, indiferente  ás vítimas, que são as oferendas á vitória.  E os filhos do velho Fraga e os discípulos do grande  Buskin comprarão bilhetes nas gares e nas estações aéreas e irão, contentes, percorrendo centenas de  quilômetros por hora na terra ou no espaço e pensando no  tempo em que o pai viajava pelos andurriais mineiros ao  chouto de uma besta preguiçosa, o mestre subia ás  colinas para contemplar as nuvens douradas do  crepúsculo que eles verão, não mais acima das cabeças,  mas debaixo dos pés, como amplo e flamejante tapete  estendido no espaço, superior ao que Clitemnestra estendeu no  palácio de Argos para receber o átride vitorioso. E  nesse tempo maravilhoso os homens, ainda  insatisfeitos, pensarão em Progresso, mas no fundo  de uma aldeia, haverá sempre um burrinho nédio e um  velhinho que o monte dizendo, como hoje diz o  velho Fraga: “Que prefere o seu asno a todos os  comboios elétricos da terra e a todos os balões do  espaço”.

E Deus que nos conserve esses simples que são a  Poesia suave do passado no turbilhão da vida contemporânea.


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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto apresentam sentido obscuro ou são resultados de erros no processo de digitalização da obra. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

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