domingo, 18 de agosto de 2013

Coelho Neto: "Divagando"

DIVAGANDO
  
Entrando, de manhã, no meu escritório, vi o  velho calendário murcho, a oscilar com a aragem na  parede fronteira á minha mesa de trabalho. Só lhe  restava uma folha. Para que arrancá-la se nada mais havia atrás daquele numero que representava  apenas uma recordação! Que o misero levasse  aquela ultima folha para o lixo.

Outro calendário, novo e gordo, carregado de  folhas, como uma arvore na primavera, foi substituir  o velho bloco lentamente consumido e foi somente  essa substituição que me fez sentir o tempo, porque  não notei diferença alguma na manhã: nem mais  moça, nem mais velha. No    alto o mesmo azul, no azul o mesmo sol; voando, os mesmos corvos e as  mesmas andorinhas; na terra as mesmas arvores, as  mesmas flores, as mesmas águas, entretanto, durante  a noite, o mundo silenciosamente vencera outro  marco.

E porque só o calendário acusava a passagem  destruidora do tempo?

Indiferentemente, todas as manhãs, eu lhe arrancava  uma folha e a lançava á cesta dos papeis. E que  representava aquela folha morta?

Quem lhe escrevesse o inventario teria de encher  resmas e resmas de paginas largas registrando a campanha  dos homens “pelo ventre”, como diz Epicuro: vidas e  mortes, fomes e frios, agonias e prazeres, bodas e  enterramentos, marchas de   exércitos e convênios  pacíficos, cerimônias rituais e concílios covardes,  inventos e desilusões, sonhos desfeitos e utopias  realizadas, travessias de águas e de áreas estéreis,  ascensões arriscadas e mergulhos no seio da terra á cata  do ouro das minas, trabalhos serenos, estudos calmos,  ânsias desesperadas, ambições voracíssimas, e, superiormente, a marcha tranqüila dos astros luminosos.

Tudo isso continha a miserável folha morta que eu atirava, com desprezo, á cesta dos papeis inúteis. Cada  uma delas representava um dia.

Ai! de mim, cada uma delas era como um recibo que  eu dava de um dia que vivera e como eles são  avaramente contados, como o dinheiro de Shylock, era o  meu capital de alento que assim se esgotava. Era, pois,  de mim mesmo que eu arrancava aquelas parcelas — o  calendário era apenas um símbolo, o que eu ia destruindo  era o meu próprio ser.

E fiquei a olhar o papelão, onde estava estampado  aquele numero, que era tudo:  “A vida é como um rio que corre sobre um  leito eterno — o tempo”.

 Nós somos as águas que passam, águas, como as do  Nilo santo, de origem misteriosa. Para onde correm elas? para a eternidade, que ó um oceano sem praias. As  margens são de vario aspecto — aqui frondosas, ali  estéreis, acolá sombrias, iluminadas além.

Há gota de água que descem desde a nascente, pelo  meio claro do rio, rolando em tumulto, refletindo o sol e  as estrelas, numa alegria sem fim: são as vidas ligeiras e  inúteis; que bem fazem? que destino cumprem? correm,  engrossam apenas o caudal e passam.

Outras,  como  se  se  houvessem  petrificado  para conservar em carcérula uma centelha astral, cristalizam-se em diamantes imperecíveis e refulgem no seio das  águas — a luz é a inspiração perene, o gênio cristaliza  o esplendor em obras imorredouras. Outras remansam-se junto á raiz de uma arvore e transformam-se em seiva e,  subindo, desabrocham em flor e metamorfoseiam-se em  fruto. Outras, as mais humildes e as mais numerosas,  transbordam com as cheias, são repelidas pelo fluxo do  rio e alastram alagando as margens, formam nateiros  pingues onde reponta a messe de ouro. Essas são as gotas  generosas, são o enxurdeiro da fecundação, o tremedal da  abundância. As outras passam — o rio é alvo e feliz e  discorre cantando; o lodo é negro e parado.

Que nasce no rio? a ninfa; o centro é estéril, só  as margens tranqüilas verdejam e o nateiro é todo trigo, é  todo linho, é todo azeite. Queres tu ser a gota que vai na  derrama fertilizante? não, por certo — preferes, sem  duvida, ser a gota ligeira e despreocupada que desce na  correnteza para o oceano do eterno silencio. O ideal  é a “facilidade” — feliz é o que corre sem encontrar  tropeço, brincando nos remoinhos, saltando nos  pedrouços, revoluteando nos grotões e mais feliz  ainda é a bolha efêmera de espuma que Tive  apenas o tempo necessário para refletir o azul do  céu e o verde formoso da paisagem.

Como são desiguais os desejos! Vede como  variam nas almas os ideais. Cada qual trata com  mais empenho de iludir o tempo. O menino imagina-se um homem — é guerreiro  e, brandindo armas, que são brinquedos, afronta  inimigos imaginários, ou ó artífice e trabalha  ajustando a ferramenta: aplaina, serra, prega e pule;  ou é agricultor e cava, revolve a terra, planta e  colhe. A menina, ainda balbucia, e já pensa em ser  mãe — ei-la tartamudeando caricias à boneca e nina, e veste-a, e afaga-a. Chega-a ao colo agasalhando-a, alisa-lhe os cabelos, fecha-lhe as  pálpebras e, á noite, cabeceando de somrio, não há  convencê-la a deixar a filha: leva-a nos braços o  dorme com ela chegada ao coração. O menino julga-se capaz de realizar a conquista  do mundo e orgulha-se 'da sua força e da sua  agilidade levantando pesos, lutando ou subindo  lentamente ás arvores, como um esquilo. A menina  já se imagina sedutora e, dengosamente, ensaia a  faceirice. Um corre aos ninhos, corre a outra aos espelhos, e que fazem? sonham com o amanhã, é o instinto que os impele através do tempo ao destino  prescrito.

Para eompleníento da ilusão o menino põe-se a  repuxar o lábio, a retorcer as  guias de um bigode imaginário, engrossa a voz, pisa com firmeza e, arrastando  um bengalão, lá vai pela casa a pavonear ufano. A menina  reclama um vestido comprido, exige que lhe levantem o  cabelo, adelgaça a cintura, toma atitude lânguidas e,  quando se reúnem, continuam a sonhar e o sonho é a  família: são compadrios, crianças que nascem, projetos  de batizados, mesas de lauto festim; ou intrigas na  vizinhança, rusgas no casal e até (horresco referens!)  alusões ao divorcio por incompatibilidade entre os  cônjuges. É uma comedia da vida por marionetes  animadas. Esses querem avançar.

Agora vede mais adiante — outra face da ilusão: os  que procuram retroceder: É o homem que se  encalamistra, é a dama que se      maquilha; que fazem?  procuram reparar “des ans l’irreparable owtrage”; são  os regressivos.

Há aqui um cabelo branco indiscreto, ha ali uma ruga  denunciadora, a pele encarquilha-se, perde a frescura,  vão-se os olhos tornando ternos, os lábios já não são tão  róseos, que fazer?         pedir socorro ao artifício — e são  tintas, pomadas, pastas, lápis, ferros de feitios  complicados, toda uma farmácia, toda uma cutelaria no  toucador.

O homem recorda, então, o tempo em que era um trêfego rapaz ágil e forte. Ah! dançava toda uma  noite sem sentir fadiga, excedia-se em extravagâncias, sem jamais sofrer as conseqüências.

Uma noite em claro... que era isso! Bom tempo!  A dama relembra os seus quinze anos viçosos, o  sem primeiro namoro, os dias do seu noivado. Como  era feliz! tudo lhe sorria e os espelhos eram mais  puros. Porque não havia de tornar esse tempo  amável?

E os velhos, os que já não podem esconder as  injurias do tempo? esses tornam á infantilidade. O  próprio tempo como que os transforma — tornam-se  tartamudos, ficam desdentados, caminham á custa de  apoios, alimentam-se como os petizes e até vão  engelhando: — a velhice é a caricatura da infância.  Os extremos tocam-se.

Certos povos entendiam que era uma caridade  matar os velhos. Que ficavam eles fazendo na vida?  Pobre ruínas, antes que aluíssem o melhor era deitá-las abaixo e os velhinhos, como era de uso o  sacrifício, resignavam-se, e, arrimados aos mancebos, rindo, talvez, por entre os trigos e os  fenos, ouvindo, pela derradeira vez, as vozes alegres  dos pássaros, lá iam para o enteio, desejando a paz  aos que ficavam e abençoando os pequeninos.


Que nos importa mais um ano? Isso de idade é  grave para os velhinhos. Quando o copo está cheio  basta uma gota d'água para que transborde. Para nós  outros, porém, que ainda vamos pelo meio, que nos  importa essa gota que caiu da clepsidra?

A vida é como aquela colina encantada do conto  maravilhoso — para alcançar-lhe tranquilamente o viso é  mister seguir de fronte erguida, olhando sempre em  frente.

Ai! dos que volvem os olhos ao Passado — ficam na  melancolia e na saudade e, se não vêm rochas que clamam,  como viram os irmãos de Parisada, vêm lápides tumbais e  ilusões perdidas. Assim, pois — caminhemos de olhos no  além! e que de novo caminho nos seja suave.


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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto apresentam sentido obscuro ou são resultados de erros no processo de digitalização da obra. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

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