domingo, 18 de agosto de 2013

Coelho Neto: "Um Sábio"

UM SÁBIO

Foi em meados de março de 1883, numa triste,  lutuosa noite de quaresma, que cheguei a S. Paulo.

As ruas estavam apinhadas de povo que esperava, com ânsia devota, a passagem de uma procissão. A espaços, dobravam sinos plangentes e mulheres,  sob negros biocos, passavam á pressa, surdamente,  como sombras que desusassem.

O carro, depois de fazer grandes voltas lentas,  deixou-me á porta do Hotel da Boa Vista, na  esquina da ladeira do Porto Geral. Os hospedes  desse casarão taciturno eram, quase todos,  estudantes e, escusado é dizer que me fizeram as  honras da casa, não como os árabes costumam  acolher nas tendas aqueles que os procuram, mas  como os galos antigos dos poleiros recebem os  frangos novos.

Não me demorei muito tempo no salão onde o  agudo Érico, de mãos para as costas, os óculos  brilhando no nariz afiado, ia e vinha criticando, com  furor, aquela “miséria moral” — toda uma população abalada pelo fanatismo, a entupir as ruas,  pondo no ar puro um fartum insuportável de suor e  de banha. Não, o Estado devia intervir energicamente opondo-se àquelas cenas ridículas e  impróprias de uma cidade civilizada. Outro acadêmico, esguio e louro, saiu em defesa da  religião e do sem ritual, demonstrando a necessidade  desse culto externo. Brico fitou o adversário e fulminou-o com um dito violento que provocou verdadeira conflagração.

Alguém, rompendo, então, o grupo, lembrou-se  de pedir a minha opinião. “Sim, concordaram todos:  que fale o calouro!..” Tremi e teria, certamente,  de sofrer a pena ridícula que me impunham se o  Érico não houvesse anunciado sisudamente:

— Lá vai a procissão, senhores. Vamos ver as  pequenas.

E o bando de hereges abalou, deixando-me  naquela sala imensa e obscura a ouvir os tristes  sons da marcha fúnebre que lá ia. Recolhi ao meu  quarto com a minha saudade.

No      dia seguinte, cedo, Érico, que era meu  vizinho, bateu á minha porta, chamando-me:

— Ó amigo, é sol nado; venha contemplar o  grande Buda ebúrneo!

Não compreendi àquelas palavras misteriosas,  mas saí e Érico, muito grave, levou-me pelo  corredor, em silencio, até á sala. Ali, fazendo-me  chegar a uma das janelas, disse, mostrando-me a  casa fronteira:

— Vê você esse pardieiro fechado? é o templo  de Buda, o grande Sabedor, o Sete Chaves, o  Homo Sapiens.          O vulgo ignaro chama-lhe Juatino, o conselheiro Justino. Celibatário e civilista, esse  homem conhece todas as leis, menos as naturais — é assim que detesta a mulher e o vinho, a musica e  as flores, a retórica e a salada de pepinos. Vive ali  com os livros como S. Jerônimo vivia em Belém. E, fitando-me com pequeninos olhos, agudos estiletes: Conheces S. Jerônimo?

Pensas, talvez, que é o marido de Santa Bárbara, porque aparecem sempre juntos nas invocações? Não, criatura  serôdia, essa aliança é iníqua — o santo nunca quis  saber desse sexo comprometedor e, se escreveu à Paula, não passou disso. Mas deixemos as  divagações. Olha, espera o Buda e, se tens  relógio, acerta-o pela sua saída; nove e meia, nem  mais, nem menos um segundo.

Efetivamente eu olhava quando vi sair da casa  indicada um homem amarelo, magro, seco e rijo,  de preto; os mesmos óculos que, de longe, lhe  escaveiravam o rosto como duas órbitas fundas e  vazias, eram escuros.

Grave, sem olhar para o nosso lado, seguiu com  um bamboleio de corvo, dobrou a esquina e lá foi.

— Viste? pois, meu amigo, se anotas a tua  vida, registra no teu diário este grande acontecimento. Esse homem sombrio, que parece um  inquisidor, é o grande, o incomparável Justino, mais  sábio que Hermes, mais virtuoso que Santo Antonio,     mais seco da alma do que um arenque defumado. É lente; um dos mais respeitados da academia pelo seu  grande saber. As suas preleções são verdadeiras  derrubadas de bibliotecas. Se um novo cataclismo  fizesse desaparecer o mundo e tudo que nele  existe, esse homem, recolhido a uma arca, quando as águas baixassem, recomporia toda a ciência  do Direito, desde as leis mais profundas até á mais  reles chicana.

Érico, o fecundo Brico, que, pela sua grande força  de generalização, não conseguira sair do curso  anexo, onde era considerado o “ancestral maior”,  deu uma volta pela sala, chuchando um dente, e  tornou ponderoso, resumindo numa expressão, já  usada por Eschines com relação a Demóstenes, toda  a sua admiração pelo civilista: “É um monstro!”  Mas, vê tu, continuou com intimidade, espalmando a  mão no meu ombro: é um rochedo, não produz uma  linha, não tem um conceito, ninguém lhe atribui uma  frase. E explicou: O homem   é  como  a  planta.    Queres  esterilizar  uma arvore? aduba-a em demasia;  cresce-lhe basta ramagem, multiplicam-se-lhe as  folhas, mas as flores rareiam e quase nunca vem fruto.

O acúmulo de ciência mata as fontes da  imaginação e da critica. Quase que estou a dizer que a  ignorância é preferível. Um homem como aquele  vale por uma congregação e, que deixa? a memória  rápida de uma vida, nada mais. Toda a gente afirma  que tem um grande talento e eu afirmo como toda a  gente, mas afirmo por afirmar, porque do talento  desse homem vejo apenas os livros, ás centenas,  muito bem arrumados nas imensas estantes. É um  carregador de idéias, um estivador de  pensamentos:  transporta-os  dos  compêndios, dos tratados, para as  memórias dos alunos. Ou melhor: é uma  alfândega, entende você? uma alfândega onde os  autores estrangeiros descarregam as suas mercadorias  e onde os jovens estudantes as vão buscar. É isso! Não, a ciência não é a esterilidade.  Sábio não é simplesmente o que estuda, o que armazena,  entesoura — é o que produz. O que é, em verdade, é  um excelente método, isto sim, um método de vida e  de estudo: honra e memória, ascetismo e rijeza.  Érico deixou-me apressado ao ouvir tinir a campainha  que anunciava o almoço, mas, a meio do caminho,  voltou dizendo-me:

— Olha, é verdade — hoje não há aula, mas o homem, para não transigir com o habito, lá vai a um  passeio de uma hora, certamente fazendo uma preleção  erudita, á meia voz, para os botões da sua sobrecasaca.  Vem almoçar, são horas.

O Justino que eu vi nessa memorável manhã de quaresma, encontrei, dez anos depois, uma tarde, á porta  de um ourives da rua Quinze de Novembro — muito  grave, de preto, óculos escuros, o cabelo muito  empastado e luzente, a tez cor de velho marfim. Vendo-o,  passou-me rapidamente pela imaginação esse tipo tão  fielmente retratado pelo incomparável Queiroz na  Correspondência de Fradique Mendes — o conselheiro  Pacheco, o do imenso talento.

Não julguem, porém, os admiradores do grande  mestre, em cujo rol me inscrevo, que eu seja capaz de  medir o seu alto valor moral pelo estalão do Pacheco da  sátira, não! O que eu analiso é o tipo físico, é aquele  vulto severo e ríspido do homem de negro,  metódico,reservado, taciturno.

O saber de Justino lampejava nas suas preleções

e, se ele não deixou, em corpo perfeito, uma obra  que leve o seu nome mais longe do que o levará a  memória ingrata dos homens, aí estão as suas  apostilas, que serviram a quase todos os que legislam  para o país, como clarões passageiros do seu espírito,  mas não sei porque, acho que o grande Pacheco devia  ser como o finado Justino e, na assembléia, espetando  o dedo para confundir com uma frase forte a  oposição rumorosa, devia ter aquela mesma grave  figura que dava, nas aulas, ao grande mestre o ar  divino e ornitóide de um Thot venerável silvando  ciência do alto de um poleiro, com o bico muito  curvado e as negras azas encolhidas e imóveis. Ninguém o respeitou mais do que eu e, quando  foi imposta a sua jubilação, provocada por um as  somo irrefletido e injusto da mocidade, a minha  pena, que sempre foi fiel aos moços, traiu-os nesse  dia aliciando-se ao mestre, porque do seu lado, sobre estar a Razão, estava também a tradição do  prestigio do velho convento.

E agora venho trazer veneradamente ao seu  tumulo o meu preito de antigo aluno e de  admirador do grande estudioso, do enérgico  disciplinador e do homem exemplar que viveu  moralmente fechado num programa rígido e seco,  só comparável á velha casa em que acabou e que, no  meio das construções modernas da cidade, parecia  um protesto forte do passado, ultimo remanescente  ferrenho do arcaísmo, achatado entre as  construções esbeltas do presente.

Como a casa era o homem, que Deus tenha.

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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto apresentam sentido obscuro ou são resultados de erros no processo de digitalização da obra. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

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