UM SÁBIO
Foi em meados de março de 1883, numa triste, lutuosa noite de quaresma, que cheguei a S.
Paulo.
As ruas estavam apinhadas de povo que esperava, com ânsia
devota, a passagem de uma procissão. A espaços, dobravam sinos plangentes e
mulheres, sob negros biocos, passavam á
pressa, surdamente, como sombras que
desusassem.
O carro, depois de fazer grandes voltas lentas, deixou-me á porta do Hotel da Boa Vista,
na esquina da ladeira do Porto Geral. Os
hospedes desse casarão taciturno eram,
quase todos, estudantes e, escusado é
dizer que me fizeram as honras da casa,
não como os árabes costumam acolher nas
tendas aqueles que os procuram, mas como
os galos antigos dos poleiros recebem os
frangos novos.
Não me demorei muito tempo no salão onde o agudo Érico, de mãos para as costas, os
óculos brilhando no nariz afiado, ia e
vinha criticando, com furor, aquela “miséria
moral” — toda uma população abalada pelo fanatismo, a entupir as ruas, pondo no ar puro um fartum insuportável de
suor e de banha. Não, o Estado devia
intervir energicamente opondo-se àquelas cenas ridículas e impróprias de uma cidade civilizada. Outro
acadêmico, esguio e louro, saiu em defesa da
religião e do sem ritual, demonstrando a necessidade desse culto externo. Brico fitou o adversário
e fulminou-o com um dito violento que provocou verdadeira conflagração.
Alguém, rompendo, então, o grupo, lembrou-se de pedir a minha opinião. “Sim, concordaram
todos: que fale o calouro!..” Tremi e
teria, certamente, de sofrer a pena
ridícula que me impunham se o Érico não
houvesse anunciado sisudamente:
— Lá vai a procissão, senhores. Vamos ver as pequenas.
E o bando de hereges abalou, deixando-me naquela sala imensa e obscura a ouvir os
tristes sons da marcha fúnebre que lá
ia. Recolhi ao meu quarto com a minha
saudade.
No dia seguinte,
cedo, Érico, que era meu vizinho, bateu
á minha porta, chamando-me:
— Ó amigo, é sol nado; venha contemplar o grande Buda ebúrneo!
Não compreendi àquelas palavras misteriosas, mas saí e Érico, muito grave, levou-me
pelo corredor, em silencio, até á sala.
Ali, fazendo-me chegar a uma das
janelas, disse, mostrando-me a casa
fronteira:
— Vê você esse pardieiro fechado? é o templo de Buda, o grande Sabedor, o Sete Chaves,
o Homo Sapiens. O vulgo ignaro chama-lhe Juatino, o conselheiro Justino.
Celibatário e civilista, esse homem
conhece todas as leis, menos as naturais — é assim que detesta a mulher e o
vinho, a musica e as flores, a retórica
e a salada de pepinos. Vive ali com os
livros como S. Jerônimo vivia em Belém. E, fitando-me com pequeninos olhos,
agudos estiletes: Conheces S. Jerônimo?
Pensas, talvez, que é o marido de Santa Bárbara, porque
aparecem sempre juntos nas invocações? Não, criatura serôdia, essa aliança é iníqua — o santo
nunca quis saber desse sexo
comprometedor e, se escreveu à Paula, não passou disso. Mas deixemos as divagações. Olha, espera o Buda e, se
tens relógio, acerta-o pela sua saída;
nove e meia, nem mais, nem menos um segundo.
Efetivamente eu olhava quando vi sair da casa indicada um homem amarelo, magro, seco e
rijo, de preto; os mesmos óculos que, de
longe, lhe escaveiravam o rosto como
duas órbitas fundas e vazias, eram
escuros.
Grave, sem olhar para o nosso lado, seguiu com um bamboleio de corvo, dobrou a esquina e lá
foi.
— Viste? pois, meu amigo, se anotas a tua vida, registra no teu diário este grande
acontecimento. Esse homem sombrio, que parece um inquisidor, é o grande, o incomparável
Justino, mais sábio que Hermes, mais
virtuoso que Santo Antonio, mais seco da alma do que um arenque defumado.
É lente; um dos mais respeitados da academia pelo seu grande saber. As suas preleções são
verdadeiras derrubadas de bibliotecas.
Se um novo cataclismo fizesse
desaparecer o mundo e tudo que nele
existe, esse homem, recolhido a uma arca, quando as águas baixassem,
recomporia toda a ciência do Direito,
desde as leis mais profundas até á mais
reles chicana.
Érico, o fecundo Brico, que, pela sua grande força de generalização, não conseguira sair do
curso anexo, onde era considerado o “ancestral
maior”, deu uma volta pela sala,
chuchando um dente, e tornou ponderoso,
resumindo numa expressão, já usada por
Eschines com relação a Demóstenes, toda
a sua admiração pelo civilista: “É um monstro!” Mas, vê tu, continuou com intimidade,
espalmando a mão no meu ombro: é um
rochedo, não produz uma linha, não tem
um conceito, ninguém lhe atribui uma
frase. E explicou: O homem
é como a
planta. Queres esterilizar
uma arvore? aduba-a em demasia;
cresce-lhe basta ramagem, multiplicam-se-lhe as folhas, mas as flores rareiam e quase nunca
vem fruto.
O acúmulo de ciência mata as fontes da imaginação e da critica. Quase que estou a
dizer que a ignorância é preferível. Um
homem como aquele vale por uma
congregação e, que deixa? a memória
rápida de uma vida, nada mais. Toda a gente afirma que tem um grande talento e eu afirmo como
toda a gente, mas afirmo por afirmar,
porque do talento desse homem vejo
apenas os livros, ás centenas, muito bem
arrumados nas imensas estantes. É um
carregador de idéias, um estivador de
pensamentos: transporta-os dos
compêndios, dos tratados, para as
memórias dos alunos. Ou melhor: é uma
alfândega, entende você? uma
alfândega onde os autores estrangeiros
descarregam as suas mercadorias e onde
os jovens estudantes as vão buscar. É isso! Não, a ciência não é a
esterilidade. Sábio não é simplesmente o
que estuda, o que armazena, entesoura —
é o que produz. O que é, em verdade, é
um excelente método, isto sim, um método de vida e de estudo: honra e memória, ascetismo e
rijeza. Érico deixou-me apressado ao
ouvir tinir a campainha que anunciava o
almoço, mas, a meio do caminho, voltou
dizendo-me:
— Olha, é verdade — hoje não há aula, mas o homem, para
não transigir com o habito, lá vai a um
passeio de uma hora, certamente fazendo uma preleção erudita, á meia voz, para os botões da sua
sobrecasaca. Vem almoçar, são horas.
O Justino que eu vi nessa memorável manhã de quaresma, encontrei,
dez anos depois, uma tarde, á porta de
um ourives da rua Quinze de Novembro — muito
grave, de preto, óculos escuros, o cabelo muito empastado e luzente, a tez cor de velho
marfim. Vendo-o, passou-me rapidamente
pela imaginação esse tipo tão fielmente
retratado pelo incomparável Queiroz na
Correspondência de Fradique Mendes — o conselheiro Pacheco, o do imenso talento.
Não julguem, porém, os admiradores do grande mestre, em cujo rol me inscrevo, que eu seja
capaz de medir o seu alto valor moral
pelo estalão do Pacheco da sátira, não!
O que eu analiso é o tipo físico, é aquele
vulto severo e ríspido do homem de negro, metódico,reservado, taciturno.
O saber de Justino lampejava nas suas preleções
e, se ele não deixou, em corpo perfeito, uma obra que leve o seu nome mais longe do que o
levará a memória ingrata dos homens, aí
estão as suas apostilas, que serviram a
quase todos os que legislam para o país,
como clarões passageiros do seu espírito,
mas não sei porque, acho que o grande Pacheco devia ser como o finado Justino e, na assembléia,
espetando o dedo para confundir com uma
frase forte a oposição rumorosa, devia
ter aquela mesma grave figura que dava,
nas aulas, ao grande mestre o ar divino
e ornitóide de um Thot venerável
silvando ciência do alto de um poleiro,
com o bico muito curvado e as negras
azas encolhidas e imóveis. Ninguém o respeitou mais do que eu e, quando foi imposta a sua jubilação, provocada por um
as somo irrefletido e injusto da
mocidade, a minha pena, que sempre foi
fiel aos moços, traiu-os nesse dia
aliciando-se ao mestre, porque do seu lado, sobre estar a Razão, estava também
a tradição do prestigio do velho
convento.
E agora venho trazer veneradamente ao seu tumulo o meu preito de antigo aluno e de admirador do grande estudioso, do
enérgico disciplinador e do homem
exemplar que viveu moralmente fechado
num programa rígido e seco, só
comparável á velha casa em que acabou e que, no
meio das construções modernas da cidade, parecia um protesto forte do passado, ultimo
remanescente ferrenho do arcaísmo,
achatado entre as construções esbeltas
do presente.
Como a casa era o homem, que Deus tenha.
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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto apresentam sentido obscuro ou são resultados de erros no processo de digitalização da obra. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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