domingo, 18 de agosto de 2013

Coelho Neto: "Fantasia de Inverno"

FANTASIA DE INVERNO 

Vento gelado, gélido vento amaina o teu furor, já  que traiçoeiramente conseguiste penetrar em meu  coração, que és tu que por lá andas: bem sinto o teu  Mui, bem ouço os teus gemidos. Ai! de mim... És tu  mesmo que andas a desfolhar as minhas ultimas  ilusões e a crestar as verdes folhas das minhas  ultimas esperanças.

Como se contrai um mal de morte á beira  da água azul de lagoa tranqüila, admirando um  nenúfar aberto, assim ganhei a melancolia que me  retransi olhando o límpido céu de inverno abotoado  no pálido e triste plenilúnio.

Fazia frio, um frio navalhante e eu, esquecido,  extasiado naquela serenidade, deixei-me ficar á  janela enamorado da noite e foi, então, que me  invadiste, como invades e varejas uma ruína fendida  em mil abertas e taliscas e agora, no meu coração, gemes e regelas, vento gelado, gélido vento, que andavas  errando á luz do luar.

Meu pobre coração! Quando, outrora, me falavam  em vales floridos, em colinas marchetadas de  margaridas e rosas, em campos palhetados de botões de  ouro, em vivas águas recobertas de açucenas brancas, eu  sorria superiormente como sorriria um deus a quem um  mortal narrasse aventuras mesquinhas. É que eu tinha o  meu coração mais rico em flores do que os jardins  maravilhosos de Viviana e agora ... Ai! de mim! só há  despojos e como poderiam resistir as flores meigas ao  vento de inverno que, traiçoeiramente, penetrou em meu  coração, onde sempre havia a doce, a tépida temperatura  de uma primavera ideal?!

Meus sonhos, que será feito de vós? Como andam no  ar noturno, em torvelinhos fantásticos, folhas e flores  orfanadas, assim andais nas lufadas do vento gélido.

Amanhã o sol tornará ao céu — eu mesmo o verei  seguir, rompendo as nevoas como um noivo preguiçoso  que abre vagarosamente o cortinado e, a contra-gosto,  deixa o leito nupcial; eu o verei surgir e verei a terra  revestir-se de luz e, florida e contente, louvá-lo pela boca  harmoniosa dos seus pássaros. Acompanharei, com  olhares invejosos, a corrida sonora dos límpidos regatos,  ouvirei as cantilenas dos campônios e, talvez, sinta o calor  benéfico do sol que reanima, mas... chegará o sol ao meu  coração? Sim, é natural que chegue — ele não é da raça  dos homens que só atendem aos que a Fortuna acerca. As  mesmas minas vêm-no chegar, o pântano recena-se com  ele, as cavernas recebem-no no intimo, é para todos e para tudo que a sua luz  rebrilha, mas... será também para os corações? Diz-me
a alma que não.

Ai! de mim . . . Como poderei viver com tal inverno  gelado?

Lua, lua perversa, pálido fantasma, foste tu que assim  sacrificaste a minha vida. Quiseste um companheiro que,  parecendo vivo, não fosse mais que um cadáver e  encantaste o meu coração, reduzindo todos os sonhos que  nele havia a verdadeiros e melancólicos espectros.

Foste tu, foi o teu hálito, ou melhor, foi a exalação  do teu corpo nevado, lívida e funérea lua, que  transformou um campo de flores em campo de neve.

E se vier o degelo que pranto copioso inundará meus olhos; que dilúvio transbordará de mim... Para conter  tantos sonhos e tantos amores é preciso que o meu  coração seja do tamanho do mundo.

Quem me mandou a mim contemplar luares em maio,  ao frio? Quem me mandou a mim fazer vigília a  defuntos?

Bem fazem os indiferentes que, embora apareças,  com a linda cor com que a morte irônica te enfeita,  fecham as janeiras e entregam-se aos travesseiros. Esses estão livres do assombramento, mas eu, curioso, lá me  deixei ficar a olhar-te e tu...

Daí... quem sabe! Talvez não sejas tu a culpada, lua merencória, porque, em verdade, quando eu te fitava,  meu pensamento estava em outra face, mais linda do que  a tua, mas também fria e indiferente.

Quem sabe se não foi a tristeza desse pensamento que me pôs no coração tamanha melancolia? Se foi... aqueles olhos doces, com um só  olhar, desfarão a tristeza, Desfariam, devo eu dizer,  desfariam se, um breve instante, se volvessem para o  meu rosto, mas... são tão frios, tão frios que ...

Ai! de mim... O inverno passará depressa, o  verão tornará risonho, mas no meu coração nunca  mais, nunca mais haverá sol de estio nem flores da  primavera.

Á noite, eu também ando a carregar um astro  morto: o teu, matou-o o tempo; o meu, matou-o o  amor.

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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto apresentam sentido obscuro ou são resultados de erros no processo de digitalização da obra. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

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