FANTASIA DE INVERNO
Vento gelado, gélido vento amaina o teu furor, já que traiçoeiramente conseguiste penetrar em
meu coração, que és tu que por lá andas:
bem sinto o teu Mui, bem ouço os teus
gemidos. Ai! de mim... És tu mesmo que
andas a desfolhar as minhas ultimas
ilusões e a crestar as verdes folhas das minhas ultimas esperanças.
Como se contrai um mal de morte á beira da água azul de lagoa tranqüila, admirando
um nenúfar aberto, assim ganhei a
melancolia que me retransi olhando o
límpido céu de inverno abotoado no
pálido e triste plenilúnio.
Fazia frio, um frio navalhante e eu, esquecido, extasiado naquela serenidade, deixei-me ficar
á janela enamorado da noite e foi,
então, que me invadiste, como invades e
varejas uma ruína fendida em mil abertas
e taliscas e agora, no meu coração, gemes e regelas, vento gelado, gélido
vento, que andavas errando á luz do
luar.
Meu pobre coração! Quando, outrora, me falavam em vales floridos, em colinas marchetadas
de margaridas e rosas, em campos
palhetados de botões de ouro, em vivas
águas recobertas de açucenas brancas, eu
sorria superiormente como sorriria um deus a quem um mortal narrasse aventuras mesquinhas. É que
eu tinha o meu coração mais rico em
flores do que os jardins maravilhosos de
Viviana e agora ... Ai! de mim! só há
despojos e como poderiam resistir as flores meigas ao vento de inverno que, traiçoeiramente,
penetrou em meu coração, onde sempre
havia a doce, a tépida temperatura de
uma primavera ideal?!
Meus sonhos, que será feito de vós? Como andam no ar noturno, em torvelinhos fantásticos,
folhas e flores orfanadas, assim andais
nas lufadas do vento gélido.
Amanhã o sol tornará ao céu — eu mesmo o verei seguir, rompendo as nevoas como um noivo
preguiçoso que abre vagarosamente o
cortinado e, a contra-gosto, deixa o
leito nupcial; eu o verei surgir e verei a terra revestir-se de luz e, florida e contente,
louvá-lo pela boca harmoniosa dos seus
pássaros. Acompanharei, com olhares
invejosos, a corrida sonora dos límpidos regatos, ouvirei as cantilenas dos campônios e,
talvez, sinta o calor benéfico do sol
que reanima, mas... chegará o sol ao meu
coração? Sim, é natural que chegue — ele não é da raça dos homens que só atendem aos que a Fortuna
acerca. As mesmas minas vêm-no chegar, o
pântano recena-se com ele, as cavernas
recebem-no no intimo, é para todos e para tudo que a sua luz rebrilha, mas... será também para os corações?
Diz-me
a alma que não.
Ai! de mim . . . Como poderei viver com tal inverno gelado?
Lua, lua perversa, pálido fantasma, foste tu que
assim sacrificaste a minha vida.
Quiseste um companheiro que, parecendo
vivo, não fosse mais que um cadáver e
encantaste o meu coração, reduzindo todos os sonhos que nele havia a verdadeiros e melancólicos
espectros.
Foste tu, foi o teu hálito, ou melhor, foi a exalação do teu corpo nevado, lívida e funérea lua,
que transformou um campo de flores em
campo de neve.
E se vier o degelo que pranto copioso inundará meus olhos;
que dilúvio transbordará de mim... Para conter
tantos sonhos e tantos amores é preciso que o meu coração seja do tamanho do mundo.
Quem me mandou a mim contemplar luares em maio, ao frio? Quem me mandou a mim fazer vigília
a defuntos?
Bem fazem os indiferentes que, embora apareças, com a linda cor com que a morte irônica te
enfeita, fecham as janeiras e
entregam-se aos travesseiros. Esses estão livres do assombramento, mas eu,
curioso, lá me deixei ficar a olhar-te e
tu...
Daí... quem sabe! Talvez não sejas tu a culpada, lua
merencória, porque, em verdade, quando eu te fitava, meu pensamento estava em outra face, mais
linda do que a tua, mas também fria e
indiferente.
Quem sabe se não foi a tristeza desse pensamento que me
pôs no coração tamanha melancolia? Se foi... aqueles olhos doces, com um
só olhar, desfarão a tristeza,
Desfariam, devo eu dizer, desfariam se,
um breve instante, se volvessem para o
meu rosto, mas... são tão frios, tão frios que ...
Ai! de mim... O inverno passará depressa, o verão tornará risonho, mas no meu coração
nunca mais, nunca mais haverá sol de
estio nem flores da primavera.
Á noite, eu também ando a carregar um astro morto: o teu, matou-o o tempo; o meu, matou-o
o amor.
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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto apresentam sentido obscuro ou são resultados de erros no processo de digitalização da obra. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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