domingo, 18 de agosto de 2013

Coelho Neto: "O Amigo Urso"

O AMIGO URSO

Lorsqu'on voit deux grands peuples se faire une guerre longue et opiniâtre, Cest souvent une mauvaise politique de penser  qu'on peut demeurer spectateur tranquille; car  celui des deux peuples qui est le vainqueur  entreprend d'abord de nouvelles guerres, et  une nation de soldats va combattre contre des  peuples qui ne sont que citoyens.” MONTESQUIEU.


Mestre urso, senhor de toda a parte da montanha que  olhava para o norte, fez constar aos seus vizinhos do sul  que resolvera e jurara, á fé inquebrantável de urso, não  permitir que pisassem a montanha, senão como  hospedes, quaisquer animais de outras regiões, ainda que  lhe fosse preciso, para manter a independência daquelas  altitudes, deixar a ultima felpa nas garras do estrangeiro,  porque entendia que Deus criara aquela eminência  maravilhosa para os animais que nela haviam nascido.

Logo que foi conhecida a resolução do urso poderoso  reuniram-se todos os animais da vizinhança e, em festa  estrondosa, proclamaram a nobreza e a valentia do senhor  do norte, que ousava lançar ao mundo tão atrevido cartel.

Pouco tempo depois um dos animais, cuja toca (que  tinha a forma perfeita de um tonel e por tal lhe chamavam  — a cuba) fora descoberta por um caçador do tiltramar  que a cercara convenientemente para garantir-lhe a posse  e manter em obediência o morador, resolveu revoltar-se  contra as continuas vexações e pôs-se a roer o cercado  pondo abaixo o tapigo. Veio, porém, o caçador e o  animal, posto que fraco, não mostrou arreceiar-se do  inimigo e esperou-o de frente, com audácia tão grande  que mais parecia loucura.

Lutavam os dois quando o urso, que espiava de longe,  lambendo as patas, notou que o cansaço e as muitas  feridas, pelas quais escorria o sangue de ambos, ia-os  enfraquecendo; sorriu, então, e levantou-se descendo  vagarosamente para os lados da toca onde o caçador e o  animal brigavam com desespero.

Ficou á espreita e, em dado momento, levou sorrateiramente para o lugar do combate uma malga de leite e lá a deixou, recolhendo a pata.

Sucedeu o que era de esperar: o caçador, que não  dera pelo urso e muito menos pela sua traça, no furor da  peleja, deu com o pé na malga e lá se foi o leite.

Levantou-se a fera aos urros protestando contra a afronta.  O caçador quis ainda provar-lhe que não vira a malga, escondida, como estava, entre as ervas do campo, mas o  urso a nada atendeu e, vendo o adversário arquejante, vermelho de sangue,  com as roupas em frangalhos, achou a ocasião  excelente para cair-lhe. em cima e, assim pensando,  logo executou.

O caçador, que era brioso, apesar de reconhecer  a grande superioridade do antagonista inopinado,  não desertou a liça; travaram-se. Mas que podia  fazer o desgraçado, já esgotado e consumido por um longo combater, contra aquele que vinha, fresco  e bem nutrido, dos alcantis da montanha subjugado e teve de abandonar o campo onde o urso  logo espichou o corpo a pretexto de descansar um  bocado.

Os animais vizinhos alvoroçaram-se de alegria  vendo que o urso cumpria a promessa que fizera, só o da cuba não via com bons olhos aquele corpanzil  imenso estirado ali, logo á entrada da sua moradia,  tirando-lhe o ar e a luz. Foi então que resolveu falar,  primeiro para agradecer-lhe o socorro, depois para  pedir que lhe deixasse livre o terreno.

Ouviu o urso a reclamação lambendo vagarosamente as patas, ao fim disse:

"Amigo, se eu aqui não viesse, tu ainda estarias  a lutar com o caçador. Para livrar-te dele  sacrifiquei uma malga de leite e tu não levas em  conta o meu prejuízo. Queres que me vá embora e  se o caçador tornar ? São, deixa-me ficar por aqui, e dá-me alguma coisa, porque estou com fome". E  dizendo assim, espichou-se mais diante da cuba,  como senhor na varanda da sua casa.

Entraram, porém, os vizinhos a murmurar contra  aquela ocupação:

“Afinal, que lucrava o animal? passar de um senhor a outro; isso pouco valia e, se o urso não se  intrometesse na luta, talvez que o animal já se houvesse  libertado do caçador que o mantinha sob o seu domínio,  não porque dele tirasse proventos, que só despesas lhe  dava, mas por amor próprio e hábito”.

O urso não andava bem e, crescendo as  murmurações, resolveu a fera arredar-se da cuba, antes,  porém, de partir, chamou o animal e disse-lhe:

“Eu parto, volto á minha montanha, mas fico de lá  com os olhos em ti; não te movas, não vás longe — não  quero historias com vizinhos nem negócios sem o meu  consentimento. O mundo está cheio de perfídias e tu és  ainda inexperiente. Eu cuido de ti, descansa”. E foi-se.

Lá trepou á montanha e, deitado, tem os olhos no  animalejo que vai e vem timidamente como o ratinho que  o gato deixa em liberdade, mas que lhe sente o peso bruto  das  patas e os ferrões das presas se vai a entrar no buraco  ou se se aproxima de alguma fresta.

Um dia o guanaco, que vivia em lítio com o tapir por  causa de uma nesga de terra, estava a pensar nas suas  finanças desbaratadas, quando avistou mestre urso no  viso da montanha. O guanaco, que não é covarde, mas  que é prudente, desconfiou daquela visita e pôs-se em  guarda; o urso, porém, sorrindo, chamou-o com um  aceno da pata, pedindo que chegasse á fala, porque tinha  a dizer-lhe grandes coisas, coisas de alto interesse. O  guanaco foi indo, vagaroso e matreiro, e, corno havia um  fundo abismo na montanha, deixou-se ficar á margem,  pedindo ao urso que falasse. E o urso disse:

— Amigo guanaco, eu sei que andas muito  preocupado com essa questão de terras que o teimoso   tapir insiste em afirmar que são dele. Não sei se são, sei  que tens os olhos nelas porque te convém e como eu  simpatizo contigo, que és um, excelente guanaco,  venho dar-te um conselho. Tu não podes entrar em  contenda com o tapir que, apesar de andar entresilhado, é  ainda animal de força; há um meio, porém, e magnífico,  de arranjarmos isso. Os meus ursinhos são muito  expansivos, nem ha no mundo animais tão expansivos  como eles e, como a borracha é também expansiva, eles  andam com a mania da borracha. Pois bem, a pretexto de  expansão, eu organizo uma companhia que arrendará as  ditas terras litigiosas. Depois de arrendadas e habitadas  pelos ursos, tu lavas as patas e eu fico á espera. É natural  que o tapir invoque os seus direitos, silve, dê saltos; não  te importes — eu estou lá em cima para o que der e vier.  Se a coisa for por diante — o que não é provável, porque  eu conheço o tapir: aquilo é só parola e guincho —  descerei dos meus alcandores e procurarei acalmar a  questão, mostrando que os meus ursos empataram grossos  cabedais na empresa e que não os podem perder. Demos  que o tapir se enfune e queira reagir — contra um  guanaco um tapir é um tapir, mas que é um tapir quando  lhe surge pela frente um urso? Pensa e resolve, mas não  digas que falaste comigo. Torno para o cimo da montanha e lá fico ás tuas ordens. Adeus, respeitos á  senhora.

E bambo, lá se foi mestre urso sorrindo, muito  contente com a sua idéia. Mestre guanaco desceu para os   seus campos pensando na proposta generosa ao vizinho quando, detendo-se a margem de uma  clara fonte, ouviu uma voz que o chamava:

— Guanaco amigo.

Guanaco levantou a cabeça e deu com um grande  e alteroso condor pousado no píncaro de um penedo.

— Que queres de mim, irmão condor ?

— Ouvi toda a conversa que tiveste com o  vizinho da outra banda e venho dar-te um conselho:  Não te fies no urso. O que ele te propôs, a titulo de  beneficio, é uma traição e não queiras servir de porta  á  ganância insaciável desse animal que, por muito  jurar, já nos não merece confiança. O que ele quer é  meter uma cunha nos domínios que nos pertencem  para depois, facilmente, separá-los e absorvê-los.  Juntos poderemos resistir á sua ambição desmedida e  ai! de nós, porém, se ele conseguir colocar em  nossas terras um só urso! No dia seguinte os campos  que percorres, os alcantis, em que tenho o meu  ninho, serão fojos de feras e nós não teremos terras  nem águas, tudo será do urso que lá tem cativo,  preso por uma corrente á sua penha, o animal que  ele pretendeu libertar das mãos do caçador.

Se o tapir não tem razão vamos chamá-lo á razão, mas com calma e estou certo de que virá; não  queiras porém que, mais tarde, quando a montanha  despejar sobre os nossos vales e campos a avalanche  ambiciosa, os nossos irmãos bradem contra o traidor  que franqueou as terras livres ao invasor insaciável.

Diz o urso que a montanha ó dos montanheses ...   

Acautela-te,  guanaco! palavras   de  urso não aproveitam a guanacos. Lembra-te da fabula do  leão. Hoje será a companhia estabelecida nas terras  litigiosas, amanhã serão os teus terrenos, depois os  meus, depois os dos nossos irmãos e ele ficará  senhor da montanha e nós seremos escravos vis  dentro da pátria que pretendes trair. Eu falo como  condor: vejo longe. Lá da altura passeio os olhares  pela terra e sei o que nela se faz. Se queres o  cativeiro deixa entrar o urso.

Ouviu o guanaco e ficou a pensar mirando-se na  corrente e mirava-se quando do alto o urso, que  espreitava, rugiu:

—  Então, guanaco amigo? vai ou não vai?  E o condor, que levantava o vôo, bradou do espaço:

— Olha  o trust  do território! Olha o trust  da  montanha, amigo guanaco. Não abras a fenda á  cunha da perfídia. Cuidado!

Foi-se e o urso, lambendo as patas, ficou a olhar  o guanaco, que pensava.

— Então, amigo guanaco ?

— Espera um instante, amigo urso.

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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.

Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto apresentam sentido obscuro ou são resultados de erros no processo de digitalização da obra. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

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