domingo, 18 de agosto de 2013

Coelho Neto: "O Paradoxo Contemporâneo"

O PARADOXO CONTEMPORÂNEO 

Sobre a nudez forte da Verdade o  manto diáfano da Fantasia. - EÇA DE  QUEIROZ

Não há esperança — tudo é verdura. Nunca a  terra se mostrou assim prospera: não há memória de  outra tão inclemente fecundidade. Dir-se-á que um  Deus andou semeando e abençoando a sementeira,  porque não há sol que a esturrique, não há geada que  a creste, não há lagartas que a destruam. As próprias  formigas mal aparecem nos trilhos e, por preguiça  ou porque as contenha o mesmo Deus propicio,  satisfazem-se com as folhas secas que o vento  espalha ou com as varreduras dos paióis.

O que era vajeiro pedrento e maldito onde  estalavam, fendidas, as relhas dos arados e os bois  robustos arriavam arquejantes deixando na terra  seca, estampada em suor, as marcas dos seus  corpos, é hoje campo de fertilidade. Várzeas estéreis,  onde apenas lograva viver o sapo da miséria, ostentam-se vicejantes, cobertas de verde e alta alcatifa que é o arrozal que aponta. As mesmas rochas  safaras geram prodigiosamente — a crosta que as forra  vale por um alfobre. Vêm-se penhascos floridos e, nos  sulcos dos carros que, meses atrás, passaram lentos,  rinchando, recolhendo a colheita, os grãos perdidos  proliferam: há milhos crescendo nos caminhos,  empenachando-se nos andurriais ou, flexíveis, dobrando-se graciosamente no fundo das grotas, entre os  inhames, onde a água brilha e canta.

Em todo o torrão há uma roça, em todo o canto viceja  uma horta. O colono tem necessidade de arrancar os  legumes que ameaçam invadir a casa; vergam as latadas,  pelas cercas de espinheiros em flor trepam as ramas do  feijoal, os repolhos gordos afundam na terra, a couve flor  desabrocha corno um polipeiro imenso e lá vão  braçadas de folhas tenras para os estábulos, para a  pocilga, para o aprisco, para o corveiro e ainda sobram  aterradoramente.

As canas empinam-se e curvam-se em arco,  estirando-se na terra para, adiante, levantarem-no de  novo; o milharal farfalha ao vento como a chamar os  colhedores, as vagens secas cascavelam, abóboras  abandonadas desenvolvem-se monstruosamente sob as  frescas folhagens protetoras e, quem olha os pomares,  hesita entre as duas cores que se casam — a verde das  folhas e a amarela dos pomos.

Os galhos vergam e, como não há mãos que bastem á  colheita, sob as arvores acenosas os frutos que apodrecem  vão formando um nateiro fecundante.

Não há esperança! O cafezal parece adornado de   coral — os frutos em cereja encarreiram-se, acumulam-se  nos ramos pendentes e os rios aí vão regando, o sol reluz  e cria, o vento leve encarrega-se de limpar os galhos,  levando-lhes as folhas secas, e borboletas, besouros,  libélulas e abelhas, que pousam de flor em flor,  conduzem o gérmen da fecundação, vão multiplicando a  abundância, fazem uma semeadura aérea ou melhor:  realizam as núpcias florais como sacerdotes alados que  visitam os lares verdes e juntam os casais aromalíssimos, conduzindo a alma amorosa de um a outro, em beijos.  Não há memória de tão inclemente fertilidade.

Com o frio a esperança do lavrador é a geada. Ao  crepúsculo, quando as nevoas se vão adensando, ei-los  todos de olhos alongados: Virá a geada? Com a noite  taciturna, estrela-se o céu onde não paira uma nuvem; o  frio aumenta. Noite fria e límpida é anunciadora de  geada. As crianças tiritam, os velhos abeiram-se do fogo  estendendo tremulamente ás chamas as mãos  engelhadinhas e o vento sopra ríspido.

Oh! como ó alegre a voz do vento! Corta, vento de  inverno! Corta, ceifador noturno, corta! E o homem  bendiz o vento que zune. Bem haja o bom vento! Bem  haja o bom vento!

Curioso lá vai o lavrador á janela, entreabre-a, espia  e tirita: noite estrelada e gelada. Ainda bem! Ainda bem!  exclama esfregando as mãos. Temos geada! Temos  geada! anuncia contente e todos sorriem á idéia de uma  devastação. Deitado, ouvindo  as  gambás  que vão e vem  pelas telhas, ei-lo a sorrir, pensando: É a geada bendita que está  caindo. Amanhã os campos serão outros. Eu  ficarei reduzido a um terço, outros perderão mais e a  safra de todo o Estado, com o beneficio desta noite,  ficará em menos da metade do que se espera e ainda  será muito. Felizmente o inverno aí está e há um  Deus no céu. Mais um ano de fartura como este e  seria um dia a lavoura do Brasil.

Não ha quem resista. Antigamente, com o que  dava um alqueire de terra, uma família vivia  fartamente; hoje, com a abundância, o fazendeiro  pena em miséria. O que o compromete ó o excesso:  todos plantam, todos colhem: não ha compradores.

Anuncia-se uma feira, açode gente de toda a  parte a disputar as barracas ou com as lonas e os  esteios para armar a sua tenda. Levanta-se tão densa  poeira nas estradas com a chegada dos carros, das  tropas, das recuas, das manadas, dos rebanhos e  ainda da gente que as mesmas torres das igrejas  desaparecem abrumadas.

No campo da feira amontoam-se os serões e as  cangalhas, empilham-se os jacás e os coxos, enfileiram-se as capoeiras, atravancam-se os largos cestos.   O  cercado de animais referve e,  como não há divisões,  saltam os potros, os burros escoucinham, marram os  touros, coincham os bacorinhos, grunhem os grandes  cevados acaçapados, fossando a lama, cacarejam as  galinhas, grasnam os patos, arruínam os pombos e  todas essas vozes não chegam a abafar as dos homens,  das mulheres e das crianças que apregoam  esgueladamente o que trazem das suas roças.
  
Quem entra numa feira, vendo a multidão que  vai e vem, imagina que o comércio corre animado,  engano — só lia ali vendedores, de sorte que o  sertanejo, que deixou o seu sitio longínquo, á beira  da serra, para oferecer na feira os frutos do seu  pomar e o gado novo da sua caiçara para, com o  produto, comprar novos ferros e chita e madapolão  para os seus, ali está de cócoras, macambúzio, o  cachimbo nos beiços, os olhos perdidos longe, no  céu da sua banda, lá para os lados da serra onde a  sua gente, pobre gente! o espera com as compras  tão necessárias . . . até um remédio lhe pediram e o  mísero nem para o remédio faz.

E dissolve-se a feira: lá tornam todos com os  frutos murchos, com os animais cansados,  maldizendo a abundancia porque todos têm e não  compram.

Isto acontece ao pequeno lavrador que ara,  semeia, aduba e colhe, que tosa a ovelha, que munge  a vaca, que informa o queijo e bate a manteiga  auxiliado pela família. Imaginai o desespero do  grande plantador que vê, em volta da casa, formigar  uma nova vila de colonos. È a exuberância que o  desgraça, é a fartura que lhe traz a miséria.

Lá vai vagarosamente, aparecendo,  desaparecendo por entre uns outeirinhos  aveludados, um comprido e pesado trem de carga  — café. Dos sertões feracíssimos descem  diariamente tropas numerosas; são campainhas  tinindo desde a madrugada até a noite, ás vezes  pela noite adiante e tropeiros bradando — café.  Pelos rios, em balsas, descem milhares de arrobas  que vão ter ás pequeninas estações onde embarcam para o porto. Os  horizontes são verdes — onde acaba o cafezal começa o  céu, e as arvores, sobrepujadas pelos frutos,  achaparam-se: é a maravilha da fertilidade, a praga  arruinadora do excesso.

No porto, á medida que vão chegando os vagões  entulhando os armazéns, vai o preço descendo e, como  entram sempre novos trens carregados, mais baixa o  valor da mercadoria; é quase uma miséria o que  oferecem, não vale a pena vender; o melhor é  conservar o café em casa, mas como? onde? se não há  tulhas e se o fazendeiro tem a colônia a murmurar  reclamando a paga! Que vá o café, que vá! e os campos  cada vez mais verdes. Oh! a inclemência do verde!

Como se vivia bem no tempo passado! O pouco que  a terra dava era vendido a peso de ouro e o fazendeiro  que colhesse o que hoje colhe um sitiante poderia viver  regaladamente como um rajá: o fruto tinha valor real,  as tulhas eram tesouros, os engenhos eram verdadeiras  casas de moeda. Agora as máquinas poderosas não  preparam em seis meses, trabalhando dia e noite, todo o  café da colheita, as moendas, jorrando rios doces, não  espremem toda a cana, parte perde-se nos carros ou  amontoada nas eiras, e, se a deixam na terra, apendoa; o  leite apodrece nas queijarias, a fruta encarquilha-se ou  transforma-se em lama nos pomares.  É demais! Corta,   vento   de  inverno! Corta,   ceifador noturno!

Criar! E vale a pena criar? Com a abundancia o  gado anda farto e luzidio: no chiqueiro do pobre  cevam-se varas de porcos, as vacas mal podem caminhar embaraçadas pelos ubres apojados, e assim  as cabras, as ovelhas igualmente. Por muito haver pouco  vale e, como o preço oferecido não compensa, os  homens resolvem deixar os animais no campo esperando  confiadamente o tempo da miséria, que ha de vir, Deus é  grande!

Levanta-se o lavrador, sai pé ante pé guiado pela  claridade tênue da lamparina do oratório, acesa diante  das imagens como a lembrar-lhes o pedido feito, com  fervor, por todos; lá vai. Chega á janela, corre o  ferrolho. Que frio! sorri contente, tintando e espia —  noite serena, céu estrelado e a geada!

É cedo, talvez; nem bruma — o luar galvaniza as  frondes tornando-as de prata e as vozes da natureza  cantam, sussurram dentro da noite; o aroma das flores  passa nas auras, a água rola no moinho. O lavrador ali  fica a olhar, sem sentir o frio que corta como á espera da  geada que não vem, a ouvir, sem compreender, o que lá  fora dizem as arvores alegres. Torna ao leito desanimado.  A esposa, que o viu sair, espera-o sentada, com o rosário  entre as mãos enclavinhadas:

— Gia?

— Ainda não.

— Pode ser que pela madrugada...

— Não creio. É Deus que nos abandona. Enfim, seja  feita a sua vontade. Deita-se. Queria que sentisses o  cheiro das flores.

— Que flores?

— Não sei, mas é um aroma que entontece. Essas malditas  flores estão anunciando outras cargas. Aqui só o fogo.

Cala-se e, de olhos abertos, fica a penar na   monstruosa queimada salvadora: uma eliama viva  que crescesse com o vento e que fosse arrasando os  campos de milho e cana e o cafezal e subisse á  mata e secasse as fontes deixando a terra vazia e  estéril, coberta de cinzas, durante anos. Só isso.

Faria um aceiro protegendo apenas o cafezal  novo, o mais que fosse, que o incêndio levasse e o  pouco dos anos vindouros salvaria o prejuízo dos  tempos copiosos. Só o fogo!

Mas para isso seria necessário que todos os  fazendeiros entrassem no acordo sinistro tomando,  cada qual, um archote e ateando o incêndio que,  vindo de pontos diversos, ás lufadas vermelhas,  deixasse apenas, em cada fazenda, como pequenas  ilhas, dois ou três alqueires de culturas verdes.  Escassearia o produto e cresceria o preço.

Mas o fogo estimula, o fogo arde e fecunda como  o beijo. Haveria, no primeiro tempo, um espasmo  letárgico da terra, mas, com a primeira chuva, todas  as sementeiras repontariam viçosas, com ânsia maior  de vida e a produção seria mais acabrunhadora.

Que fazer?

Um silvo atravessa o silencio. São os comboios.  Lá vão eles, caminho do porto, lá vão! É  madrugada. O gado muge, balem as ovelhas.  Atroadorarmente começam a trabalhar as máquinas  beneficiadoras e o fazendeiro, fatigado da vigília,  salta da cama, abre largamente a janela. Uma poeira  empana os ares: é a palha do café que voa e que lá  vai estrumar o alqueive e, purpúreo, imenso,  implacável, sobe no céu, vitoriosamente, o sol.

Douram-se os montes, douram-se os campos, o  orvalho rebrilha nas folhas — tudo reverdeceu com  a noite e o fazendeiro, taciturno, pensa na miséria  quando o administrador, descendo a galope do lado  do engenho, estaca a bestinha diante da varanda e
diz:

— Patrão, vou mandar colher aquele resto de café  do pedregal, porque as flores já estão vindo aos  galhos.

Ele estremece, fita o empregado e, sem  compreender bem as palavras que ouve, encolhe os  ombros indiferente. Fruto e flor... Mas é a  perdição, Deus do céu! É a perdição! Fruto e  flor . . . Terra maldita!

E o sol vai subindo no céu e abelhas zumbem  visitando as flores novas anunciadoras da   abundancia futura que será a falência, a definitiva  desgraça, Ainda frutos e já flores.

E há ainda quem gabe a terra cafeeira, a terra  roxa da cor da agonia.

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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto apresentam sentido obscuro ou são resultados de erros no processo de digitalização da obra. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

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