O PARADOXO
CONTEMPORÂNEO
Sobre a nudez forte
da Verdade o manto diáfano da Fantasia. -
EÇA DE QUEIROZ
Não há esperança — tudo é verdura. Nunca a terra se mostrou assim prospera: não há
memória de outra tão inclemente
fecundidade. Dir-se-á que um Deus andou
semeando e abençoando a sementeira,
porque não há sol que a esturrique, não há geada que a creste, não há lagartas que a destruam. As
próprias formigas mal aparecem nos
trilhos e, por preguiça ou porque as
contenha o mesmo Deus propicio, satisfazem-se
com as folhas secas que o vento espalha
ou com as varreduras dos paióis.
O que era vajeiro pedrento e maldito onde estalavam, fendidas, as relhas dos arados e
os bois robustos arriavam arquejantes
deixando na terra seca, estampada em
suor, as marcas dos seus corpos, é hoje
campo de fertilidade. Várzeas estéreis,
onde apenas lograva viver o sapo da miséria, ostentam-se vicejantes,
cobertas de verde e alta alcatifa que é o arrozal que aponta. As mesmas rochas safaras geram prodigiosamente — a crosta que
as forra vale por um alfobre. Vêm-se
penhascos floridos e, nos sulcos dos
carros que, meses atrás, passaram lentos,
rinchando, recolhendo a colheita, os grãos perdidos proliferam: há milhos crescendo nos
caminhos, empenachando-se nos andurriais
ou, flexíveis, dobrando-se graciosamente no fundo das grotas, entre os inhames, onde a água brilha e canta.
Em todo o torrão há uma roça, em todo o canto viceja uma horta. O colono tem necessidade de
arrancar os legumes que ameaçam invadir
a casa; vergam as latadas, pelas cercas
de espinheiros em flor trepam as ramas do
feijoal, os repolhos gordos afundam na terra, a couve flor desabrocha corno um polipeiro imenso e lá vão braçadas de folhas tenras para os estábulos,
para a pocilga, para o aprisco, para o
corveiro e ainda sobram aterradoramente.
As canas empinam-se e curvam-se em arco, estirando-se na terra para, adiante,
levantarem-no de novo; o milharal
farfalha ao vento como a chamar os
colhedores, as vagens secas cascavelam, abóboras abandonadas desenvolvem-se monstruosamente
sob as frescas folhagens protetoras e,
quem olha os pomares, hesita entre as
duas cores que se casam — a verde das folhas
e a amarela dos pomos.
Os galhos vergam e, como não há mãos que bastem á colheita, sob as arvores acenosas os frutos
que apodrecem vão formando um nateiro
fecundante.
Não há esperança! O cafezal parece adornado de coral — os frutos em cereja encarreiram-se,
acumulam-se nos ramos pendentes e os
rios aí vão regando, o sol reluz e cria,
o vento leve encarrega-se de limpar os galhos,
levando-lhes as folhas secas, e borboletas, besouros, libélulas e abelhas, que pousam de flor em
flor, conduzem o gérmen da fecundação,
vão multiplicando a abundância, fazem
uma semeadura aérea ou melhor: realizam
as núpcias florais como sacerdotes alados que
visitam os lares verdes e juntam os casais aromalíssimos, conduzindo a
alma amorosa de um a outro, em beijos.
Não há memória de tão inclemente fertilidade.
Com o frio a esperança do lavrador é a geada. Ao crepúsculo, quando as nevoas se vão
adensando, ei-los todos de olhos
alongados: Virá a geada? Com a noite
taciturna, estrela-se o céu onde não paira uma nuvem; o frio aumenta. Noite fria e límpida é
anunciadora de geada. As crianças
tiritam, os velhos abeiram-se do fogo
estendendo tremulamente ás chamas as mãos engelhadinhas e o vento sopra ríspido.
Oh! como ó alegre a voz do vento! Corta, vento de inverno! Corta, ceifador noturno, corta! E o
homem bendiz o vento que zune. Bem haja
o bom vento! Bem haja o bom vento!
Curioso lá vai o lavrador á janela, entreabre-a,
espia e tirita: noite estrelada e
gelada. Ainda bem! Ainda bem! exclama
esfregando as mãos. Temos geada! Temos
geada! anuncia contente e todos sorriem á idéia de uma devastação. Deitado, ouvindo as
gambás que vão e vem pelas telhas, ei-lo a sorrir, pensando: É a
geada bendita que está caindo. Amanhã os
campos serão outros. Eu ficarei reduzido
a um terço, outros perderão mais e a
safra de todo o Estado, com o beneficio desta noite, ficará em menos da metade do que se espera e
ainda será muito. Felizmente o inverno
aí está e há um Deus no céu. Mais um ano
de fartura como este e seria um dia a
lavoura do Brasil.
Não ha quem resista. Antigamente, com o que dava um alqueire de terra, uma família
vivia fartamente; hoje, com a
abundância, o fazendeiro pena em
miséria. O que o compromete ó o excesso:
todos plantam, todos colhem: não ha compradores.
Anuncia-se uma feira, açode gente de toda a parte a disputar as barracas ou com as lonas
e os esteios para armar a sua tenda.
Levanta-se tão densa poeira nas estradas
com a chegada dos carros, das tropas,
das recuas, das manadas, dos rebanhos e
ainda da gente que as mesmas torres das igrejas desaparecem abrumadas.
No campo da feira amontoam-se os serões e as cangalhas, empilham-se os jacás e os coxos,
enfileiram-se as capoeiras, atravancam-se os largos cestos. O
cercado de animais referve e,
como não há divisões, saltam os
potros, os burros escoucinham, marram os
touros, coincham os bacorinhos, grunhem os grandes cevados acaçapados, fossando a lama,
cacarejam as galinhas, grasnam os patos,
arruínam os pombos e todas essas vozes
não chegam a abafar as dos homens, das
mulheres e das crianças que apregoam
esgueladamente o que trazem das suas roças.
Quem entra numa feira, vendo a multidão que vai e vem, imagina que o comércio corre
animado, engano — só lia ali vendedores,
de sorte que o sertanejo, que deixou o
seu sitio longínquo, á beira da serra,
para oferecer na feira os frutos do seu
pomar e o gado novo da sua caiçara para, com o produto, comprar novos ferros e chita e
madapolão para os seus, ali está de
cócoras, macambúzio, o cachimbo nos
beiços, os olhos perdidos longe, no céu
da sua banda, lá para os lados da serra onde a
sua gente, pobre gente! o espera com as compras tão necessárias . . . até um remédio lhe
pediram e o mísero nem para o remédio
faz.
E dissolve-se a feira: lá tornam todos com os frutos murchos, com os animais cansados, maldizendo a abundancia porque todos têm e
não compram.
Isto acontece ao pequeno lavrador que ara, semeia, aduba e colhe, que tosa a ovelha, que
munge a vaca, que informa o queijo e
bate a manteiga auxiliado pela família.
Imaginai o desespero do grande plantador
que vê, em volta da casa, formigar uma
nova vila de colonos. È a exuberância que o
desgraça, é a fartura que lhe traz a miséria.
Lá vai vagarosamente, aparecendo, desaparecendo por entre uns outeirinhos aveludados, um comprido e pesado trem de
carga — café. Dos sertões feracíssimos
descem diariamente tropas numerosas; são
campainhas tinindo desde a madrugada até
a noite, ás vezes pela noite adiante e
tropeiros bradando — café. Pelos rios,
em balsas, descem milhares de arrobas
que vão ter ás pequeninas estações onde embarcam para o porto. Os horizontes são verdes — onde acaba o cafezal
começa o céu, e as arvores, sobrepujadas
pelos frutos, achaparam-se: é a
maravilha da fertilidade, a praga
arruinadora do excesso.
No porto, á medida que vão chegando os vagões entulhando os armazéns, vai o preço descendo
e, como entram sempre novos trens
carregados, mais baixa o valor da mercadoria;
é quase uma miséria o que oferecem, não
vale a pena vender; o melhor é conservar
o café em casa, mas como? onde? se não há
tulhas e se o fazendeiro tem a colônia a murmurar reclamando a paga! Que vá o café, que vá! e
os campos cada vez mais verdes. Oh! a
inclemência do verde!
Como se vivia bem no tempo passado! O pouco que a terra dava era vendido a peso de ouro e o
fazendeiro que colhesse o que hoje colhe
um sitiante poderia viver regaladamente
como um rajá: o fruto tinha valor real,
as tulhas eram tesouros, os engenhos eram verdadeiras casas de moeda. Agora as máquinas poderosas
não preparam em seis meses, trabalhando
dia e noite, todo o café da colheita, as
moendas, jorrando rios doces, não
espremem toda a cana, parte perde-se nos carros ou amontoada nas eiras, e, se a deixam na terra,
apendoa; o leite apodrece nas
queijarias, a fruta encarquilha-se ou
transforma-se em lama nos pomares.
É demais! Corta, vento de
inverno! Corta, ceifador noturno!
Criar! E vale a pena criar? Com a abundancia o gado anda farto e luzidio: no chiqueiro do
pobre cevam-se varas de porcos, as vacas
mal podem caminhar embaraçadas pelos ubres apojados, e assim as cabras, as ovelhas igualmente. Por muito
haver pouco vale e, como o preço
oferecido não compensa, os homens
resolvem deixar os animais no campo esperando
confiadamente o tempo da miséria, que ha de vir, Deus é grande!
Levanta-se o lavrador, sai pé ante pé guiado pela claridade tênue da lamparina do oratório,
acesa diante das imagens como a
lembrar-lhes o pedido feito, com fervor,
por todos; lá vai. Chega á janela, corre o
ferrolho. Que frio! sorri contente, tintando e espia — noite serena, céu estrelado e a geada!
É cedo, talvez; nem bruma — o luar galvaniza as frondes tornando-as de prata e as vozes da
natureza cantam, sussurram dentro da
noite; o aroma das flores passa nas
auras, a água rola no moinho. O lavrador ali
fica a olhar, sem sentir o frio que corta como á espera da geada que não vem, a ouvir, sem compreender,
o que lá fora dizem as arvores alegres.
Torna ao leito desanimado. A esposa, que
o viu sair, espera-o sentada, com o rosário
entre as mãos enclavinhadas:
— Gia?
— Ainda não.
— Pode ser que pela madrugada...
— Não creio. É Deus que nos abandona. Enfim, seja feita a sua vontade. Deita-se. Queria que
sentisses o cheiro das flores.
— Que flores?
— Não sei, mas é um aroma que entontece. Essas
malditas flores estão anunciando outras
cargas. Aqui só o fogo.
Cala-se e, de olhos abertos, fica a penar na monstruosa queimada salvadora: uma eliama
viva que crescesse com o vento e que
fosse arrasando os campos de milho e
cana e o cafezal e subisse á mata e
secasse as fontes deixando a terra vazia e
estéril, coberta de cinzas, durante anos. Só isso.
Faria um aceiro protegendo apenas o cafezal novo, o mais que fosse, que o incêndio
levasse e o pouco dos anos vindouros
salvaria o prejuízo dos tempos copiosos.
Só o fogo!
Mas para isso seria necessário que todos os fazendeiros entrassem no acordo sinistro
tomando, cada qual, um archote e ateando
o incêndio que, vindo de pontos
diversos, ás lufadas vermelhas, deixasse
apenas, em cada fazenda, como pequenas
ilhas, dois ou três alqueires de culturas verdes. Escassearia o produto e cresceria o preço.
Mas o fogo estimula, o fogo arde e fecunda como o beijo. Haveria, no primeiro tempo, um
espasmo letárgico da terra, mas, com a
primeira chuva, todas as sementeiras
repontariam viçosas, com ânsia maior de
vida e a produção seria mais acabrunhadora.
Que fazer?
Um silvo atravessa o silencio. São os comboios. Lá vão eles, caminho do porto, lá vão! É madrugada. O gado muge, balem as
ovelhas. Atroadorarmente começam a
trabalhar as máquinas beneficiadoras e o
fazendeiro, fatigado da vigília, salta
da cama, abre largamente a janela. Uma poeira
empana os ares: é a palha do café que voa e que lá vai estrumar o alqueive e, purpúreo,
imenso, implacável, sobe no céu,
vitoriosamente, o sol.
Douram-se os montes, douram-se os campos, o orvalho rebrilha nas folhas — tudo reverdeceu
com a noite e o fazendeiro, taciturno,
pensa na miséria quando o administrador,
descendo a galope do lado do engenho,
estaca a bestinha diante da varanda e
diz:
— Patrão, vou mandar colher aquele resto de café do pedregal, porque as flores já estão vindo
aos galhos.
Ele estremece, fita o empregado e, sem compreender bem as palavras que ouve, encolhe
os ombros indiferente. Fruto e flor...
Mas é a perdição, Deus do céu! É a
perdição! Fruto e flor . . . Terra
maldita!
E o sol vai subindo no céu e abelhas zumbem visitando as flores novas anunciadoras
da abundancia futura que será a
falência, a definitiva desgraça, Ainda
frutos e já flores.
E há ainda quem gabe a terra cafeeira, a terra roxa da cor da agonia.
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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto apresentam sentido obscuro ou são resultados de erros no processo de digitalização da obra. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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