BALÕES
Dizia-me, uma tarde, com muita gravidade, o conspícuo comendador Juvêncio, lamentando
o desastre de que foi vítima Augusto
Severo:
— Meu amigo, a verdade é que todos nós te mos o nosso balão. Aqui nesta sala só há
aeronautas.
Vendo o ar de espanto com que recebi a sua afirmação, o comendador, tirando estrondoso
pigarro da formidável goela — que é um
abismo, segundo dizem na praça — avançou
a poltrona juntando aos meus os seus
joelhos enormes onde as rótulas são verdadeiras
sacadas.
— Ouça, meu amigo. O senhor é ainda muito novo, vê o mundo através de ilusões; eu tenho
vivido muito, conheço todos os segredos
da vida. A alma não tem mistérios para
mim. Eu é porque não tenho tempo, senão
o senhor havia de ver o belo estudo que
me saía da pena, apojado de notas, farto de observações, com os nomes, com as
datas, completo e irrefutável. Todos nós
temos o nosso balão. Vê aquela criança
que ali está ao eólio da ama, toda
enfolhada em rendas! tem o seu balão.
— Aquela criança!
— É como lhe digo; e lá está ele, ou antes, lá estão
eles túmidos, retesando o corpinho da rapariga, não vê?
— Os peitos da ama?
— Naturalmente. O pai tem um balão e há quem afirme que é obra fina: tem dado excelentes
resultados nas experiências — é a tal
máquina de chocar.
— De chocar!?
— Pois não. Ele entende que tudo pôde ser chocado, é uma simples questão de estufa: choca
pintos, carneiros, bichos de seda, café,
crianças . . .
— Como crianças...?
— Sim, senhor:
crianças. O filho do Amadeu é um produto
da sua máquina, pelo menos é o que dizem.
Como foi, não sei, mas a coisa é publica.
— E o Amadeu?
— O Amadeu está também ás voltas com o seu balão, que é uma historia de pesca na Amazônia para
exploração do charque do peixe-boi.
— É extraordinário!
— É natural, meu amigo. Vê ali a menina Alice a conversar com o Lino? está a encher o seu balão e Deus queira que lhe não saia hoje mesmo dos lábios
o famoso Lachez tout. Não vê a quantidade de gás que ela está para ali a consumir? a falar, a sorrir, a
mostrar o pé, a descobrir os dentes?
Tudo aquilo é gás e do bom e o Lino começa a oscilar. Eu daqui estou a ouvir as pulsações do motor. O
amigo há de ver, em breve, a
ascensão.
— Mas o Lino não é partido para a menina Alice.
— Porque? No casamento, como em política, não há partidos,
há conveniências: casa? elege? é quanto basta.
— O Lino é impetuoso, violento ...
— Já sei, o amigo
receia a explosão?
Mas o senhor não
sabe que o marido é um baião cativo! Hão
há perigo. Demais, a menina Alice é segura, não é das que alijam o lastro: quando ela vir
as coisas mal paradas ...
— Apela para o divórcio.
— Qual divorcio! Apela para os próprios encantos e... Mas
vamos adiante. Conhece aquele calvo que
ali está, no vão da janela?
— E o Simas. Tem também balão!
— Político; tem cabido muito, volta e meia é uma queda, já até caiu uma vez no ridículo,
quando pronunciou na câmara aquele
famoso discurso afirmando que a crise do
açúcar era uma conseqüência natural da
crise do café, e propondo, como medida
atilada, que se desse o café de graça ao estrangeiro porque, como não se bebe café sem açúcar,
ele seria forçado a vir buscar esse gênero ao mercado e então far-se-ia a alta do açúcar,
alta que daria para indenizar o
fazendeiro.
— O plano não deixa de ser engenhoso.
— Mas é idiota. Temos ali outro aeronauta. Está a insuflar um aparelho que, se nada vale na aparência, é uma preciosa máquina, de construção
muito sólida e com excelente motor.
— Quer falar da
baronesa?
— Sim! a baronesa vai para
os sessenta anos.
— É um balão pratico.
— Tem duas ascensões: a primeira com o Pimentel, coitado! Ela tinha dezoito anos e
uma beleza de atordoar e o Pimentel era
maduro, resultado? veio lá de cima pondo sangue pela boca, deixando um lastro de quinhentos contos e duas
fazendas no oeste. A segunda foi com o
barão que, apesar de mais cauteloso, não
pode, ainda assim, evitar a queda.
— Mas dizem que...
— Que ele caiu de outro balão. Sim, pode ser, porque fazia experiências com diversos. Não afirmo
— o certo é que, apesar dos precedentes
desastrosos, o nosso amigo está a querer
meter-se na barquinha.
— Diga antes: barcaça.
— Ou isso. E todos aqui, sem exceção...
— Quer dizer que o senhor também...?
— Pois não, não fujo é regra: também tenho o meu.
— E qual é, comendador?
— É... a imbecilidade humana.
— E, releve a minha indiscrição: como consegue equilibrar-se?
— Facilmente: manobrando. Se tenho contra mim um poderoso, humilho-me; se tenho um fato,
lisonjeio-o; se é um tímido, apavoro-o;
se é um ousado, acorçôo-o; se é um pobre,
desprezo-o; se ó uma mulher, louvo-lhe a
beleza e assim me vou mantendo sempre a
favor do vento, buscando a corrente da
simpatia, que é corno um mar de leite para navegar-se.
— E nunca caiu, comendador?
— Sim, sim, já levei um tombo: meti-me num balão vagabundo que anda agora pelos teatros e
cai na cama onde estive três meses,
entre a vida e a morte. Felizmente
curei-me.
— E está pronto para outra?
— Isso não: a experiência foi rude. Contento-me agora com os balões práticos.
— Pois eu confesso que não tenho balão algum.
— O senhor?
— Eu mesmo, comendador.
Mas chamaram-nos para o chá. Íamos pela galeria vagarosamente, respirando o perfume
que entrava, com o luar, pelas janelas
abertas. O comendador insistia em
demonstrar-me que todo o homem tem o seu
balão, quando ouvimos um sussurrar que
parecia vir da sala. Voltamo-nos e vimos
o Lino de braço com a formosa Alice que parecia
mais linda, com uma cor mais viva nas faces finas. Detivemo-nos á janela. Os dois passaram
e eu fiquei a olhar o plenilúnio imenso
e branco, que brilhava.
— Ouviu o Lachez
tout!? sussurrou ele com malicia, mostrando-me, com o beiço esticado, o
jovem casal que lá ia.
— Sim. Pareceu-me um beijo. Mas que linda noite, comendador. Ele lançou um olhar indiferente ao céu, e, encolhendo os ombros, disse, arrastando-me
pela galeria clara:
— A lua não é balão que preste. E quer o amigo Baber? não
se meta com ela — os que de lá cabem vão
dar com os ossos no hospício. Arranje, de preferência, uma estrela... mesmo de café concerto. E, rindo,
entramos de braço no grande salão iluminado,
onde resplandecia a mesa florida, carregada
de pratas e cristais. E, sempre malicioso, o comendador segredou-me:
— Parece que o Lino usa carmim nos lábios?
— Porque!
— Veja as faces da Alice. Efetivamente: eram duas rosas.
---
---
Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto apresentam sentido obscuro ou são resultados de erros no processo de digitalização da obra. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário