domingo, 18 de agosto de 2013

Coelho Neto: "Balões"

BALÕES 

Dizia-me, uma tarde, com muita gravidade, o  conspícuo comendador Juvêncio, lamentando o  desastre de que foi vítima Augusto Severo:

— Meu amigo, a verdade é que todos nós te  mos o nosso balão. Aqui nesta sala só há aeronautas.

Vendo o ar de espanto com que recebi a sua  afirmação, o comendador, tirando estrondoso pigarro  da formidável goela — que é um abismo, segundo dizem  na praça — avançou a poltrona juntando aos meus os  seus joelhos enormes onde as rótulas são verdadeiras  sacadas.

— Ouça, meu amigo. O senhor é ainda muito  novo, vê o mundo através de ilusões; eu tenho vivido  muito, conheço todos os segredos da vida. A  alma não tem mistérios para mim. Eu é porque  não tenho tempo, senão o senhor havia de ver o  belo estudo que me saía da pena, apojado de notas, farto de observações, com os nomes, com as datas,  completo e irrefutável. Todos nós temos o nosso balão.  Vê aquela criança que ali está ao eólio da ama, toda  enfolhada em rendas! tem o seu balão.

— Aquela criança!

— É como lhe digo; e lá está ele, ou antes, lá estão
eles túmidos, retesando o corpinho da rapariga, não vê?

— Os peitos da ama?

— Naturalmente. O pai tem um balão e há quem  afirme que é obra fina: tem dado excelentes resultados  nas experiências — é a tal máquina de chocar.

— De chocar!?

— Pois não. Ele entende que tudo pôde ser chocado,  é uma simples questão de estufa: choca pintos, carneiros,  bichos de seda, café, crianças . . .

— Como crianças...?

—  Sim, senhor: crianças. O filho do Amadeu é um  produto da sua máquina, pelo menos é o que dizem.  Como foi, não sei, mas a coisa é publica.

—  E o Amadeu?

— O Amadeu está também ás voltas com o seu balão,  que é uma historia de pesca na Amazônia para exploração  do charque do peixe-boi.

— É extraordinário!

— É natural, meu amigo. Vê ali a menina Alice a  conversar com o Lino? está a  encher o seu balão e Deus  queira que lhe não saia hoje mesmo dos lábios o famoso  Lachez tout. Não vê a quantidade de gás que ela está  para ali a consumir? a falar, a sorrir, a mostrar o pé, a  descobrir os dentes? Tudo aquilo é gás e do bom e o Lino começa a oscilar. Eu  daqui estou a ouvir as pulsações do motor. O amigo  há de ver, em breve, a ascensão.   

— Mas o Lino não  é partido para a menina Alice.

— Porque? No casamento, como em política, não há partidos, há conveniências: casa? elege? é quanto  basta.

— O Lino é impetuoso, violento ...

 — Já sei, o amigo receia a explosão?

Mas o  senhor não sabe que o marido é um baião cativo!  Hão há perigo. Demais, a menina Alice é segura,  não é das que alijam o lastro: quando ela vir as  coisas mal paradas ...

— Apela para o divórcio.

— Qual divorcio! Apela para os próprios encantos e... Mas vamos adiante. Conhece aquele  calvo que ali está, no vão da janela?

— E o Simas. Tem também balão!

— Político; tem cabido muito, volta e meia é  uma queda, já até caiu uma vez no ridículo, quando  pronunciou na câmara aquele famoso discurso  afirmando que a crise do açúcar era uma  conseqüência natural da crise do café, e propondo,  como medida atilada, que se desse o café de graça ao  estrangeiro porque, como não se bebe café sem açúcar, ele seria forçado a vir buscar esse gênero ao  mercado e então far-se-ia a alta do açúcar, alta que  daria para indenizar o fazendeiro.

— O plano não deixa de ser engenhoso.

— Mas é idiota. Temos ali outro aeronauta. Está  a insuflar um aparelho que, se nada vale na  aparência, é uma preciosa máquina, de construção  muito sólida e com excelente motor.

 — Quer falar da baronesa? 
— Sim! a baronesa vai para  os sessenta anos.

— É um balão pratico.

— Tem  duas  ascensões: a primeira com o  Pimentel, coitado! Ela tinha dezoito anos e uma  beleza de atordoar e o Pimentel era maduro, resultado? veio lá de cima pondo sangue pela boca,  deixando um lastro de quinhentos contos e duas  fazendas no oeste. A segunda foi com o barão que,  apesar de mais cauteloso, não pode, ainda assim,  evitar a queda.

— Mas dizem que...

— Que ele caiu de outro balão. Sim, pode ser,  porque fazia experiências com diversos. Não afirmo  — o certo é que, apesar dos precedentes desastrosos,  o nosso amigo está a querer meter-se na barquinha.

— Diga antes: barcaça.

— Ou isso. E todos aqui, sem exceção...

— Quer dizer que o senhor também...?

— Pois não, não fujo é regra: também tenho o  meu.

— E qual é, comendador?

— É... a imbecilidade humana.

— E, releve a minha indiscrição: como  consegue equilibrar-se?

— Facilmente: manobrando. Se tenho contra  mim um poderoso, humilho-me; se tenho um fato,  lisonjeio-o; se é um tímido, apavoro-o; se é um  ousado, acorçôo-o; se é um pobre, desprezo-o; se ó  uma mulher, louvo-lhe a beleza e assim me vou  mantendo sempre a favor do vento, buscando a corrente da  simpatia,  que  é corno um mar de  leite para navegar-se.

— E nunca caiu, comendador?

— Sim, sim, já levei um tombo: meti-me num  balão vagabundo que anda agora pelos teatros e  cai na cama onde estive três meses, entre a vida e a  morte. Felizmente curei-me.

— E está pronto para outra?

— Isso não: a experiência foi rude. Contento-me  agora com os balões práticos.

— Pois eu confesso que não tenho balão algum.

— O senhor?

— Eu mesmo, comendador.

Mas chamaram-nos para o chá. Íamos pela  galeria vagarosamente, respirando o perfume que  entrava, com o luar, pelas janelas abertas. O  comendador insistia em demonstrar-me que todo o  homem tem o seu balão, quando ouvimos um  sussurrar que parecia vir da sala. Voltamo-nos e  vimos o Lino de braço com a formosa Alice que  parecia mais linda, com uma cor mais viva nas faces  finas. Detivemo-nos á janela. Os dois passaram e eu  fiquei a olhar o plenilúnio imenso e branco, que  brilhava.

— Ouviu o Lachez tout!?     sussurrou ele com  malicia, mostrando-me, com o beiço esticado, o  jovem casal que lá ia.

— Sim. Pareceu-me um beijo. Mas que linda  noite, comendador.  Ele lançou um olhar indiferente ao céu, e,  encolhendo os ombros, disse, arrastando-me pela  galeria clara:

— A lua não é balão que preste. E quer o amigo Baber? não se meta com ela — os que de lá cabem  vão dar com os ossos no hospício. Arranje, de  preferência, uma  estrela... mesmo de café concerto. E, rindo, entramos de braço no grande salão  iluminado, onde resplandecia a mesa florida,  carregada de pratas e cristais. E, sempre malicioso,  o comendador segredou-me:

— Parece que o Lino usa carmim nos lábios?

— Porque!

— Veja as faces da Alice. Efetivamente: eram duas rosas.


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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto apresentam sentido obscuro ou são resultados de erros no processo de digitalização da obra. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

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