O
INTELIGENTE CÍCERO
(Menino Cícero José Melo de Sá Ramos)
(Menino Cícero José Melo de Sá Ramos)
Dois dias
depois da chegada de Cícero ao mundo (garoava) o Diário Popular escreveu: Acha-se em festas o venturoso lar do nosso amigo senhor Major
Manuel José de Sá Ramos, conhecido fabricante do molho João Bull e da pasta
dentifrícia Japonesa, e de sua gentilíssima consorte Dona Francisca Melo de Sá
Ramos, com o nascimento de uma esperta criança do sexo masculino que receberá
na pia batismal o nome de Cícero. Felicitamos muito cordialmente os carinhosos
pais.
O major
foi pessoalmente à redação levar os agradecimentos dos carinhosos pais e no dia
seguinte o órgão da opinião pública registrou a visita referindo-se mais uma
vez à esperteza congênita de Cícero.
Quando o pequeno fez dois anos passou a ser robusto. Quando fez
quatro foi promovido pelo Diário Popular a inteligente e mui promissor menino. Nesse dia Dona Francisca
achou que era chegado o momento de ensinar ao Cícero O Estudante Alsaciano. Seis estrofes mais ou menos foram decoradas. E a
madrinha Dona Isolina Vaz Costa (cuja especialidade era doce de ovos) foi de parecer
que quanto à dicção ainda não está visto, mas quanto à expressão Cícero lembrava
o Chabi Pinheiro. No entanto advertiu que do meio para o fim é que era mais difícil. Principalmente quando o
heróico rapazinho desabotoava virilmente a blusa preta e gritava batendo no peito: Aqui
dentro, aqui é que está a França!
Cícero na véspera do Natal de seus cinco anos às sete horas da
noite estava entretido em puxar o rabo do Biscoito quando Dona
Francisca veio buscá-lo para dormir. Cícero esperneou, berrou, fugiu e meteu-se
embaixo da mesa da sala de jantar. Foi pescado pelas orelhas. Carregado até a
cama.
Dona
Francisca tirou a roupa dele, enfiou-o no macacão e disse:
— Vá dizer
boa-noite para papai.
Beijada a
mão do major (que decifrava umas charadas do Malho) voltou.
E Dona Francisca então falou assim:
— Olhe
aqui, meu filhinho. Tire o dedo do nariz. Olhe aqui. Você agora vai pôr seu
sapatinho atrás da porta (compreendeu?) para São Nicolau esta noite deixar nele um brinquedo para o meu benzinho.
Cícero
obedeceu correndo.
— Bom.
Agora reze com a mamãe para Nossa Senhora proteger sempre você.
Rezou sem
discutir.
— Assim
sim que é bonito. Não meta o dedo no nariz que é feio. E durma bem direitinho
para São Nicolau poder deixar um brinquedo bem bonito.
Cícero no
escuro deu de pensar no presente de São Nicolau. E resolveu indicar ao santo o brinquedo que queria por
causa das dúvidas. Não confiava no gosto do santo não. Na sua cabeça os
soldados vistos de manhã marchavam com a banda na frente. E disse baixinho:
— São
Nicolau: deixe uma espingardinha.
Virou do
lado direito e dormiu de boca aberta. Às sete da manhã encontrou um brinquedo
de armar atrás da porta. Ficou danado. Deu um pontapé no brinquedo. E chorou na cama apertando o dedão
do pé.
Na
véspera do Natal de seus seis anos às sete e meia da noite estava Cícero
matando moscas na copa quando o major veio chamá-lo para dormir. Ranzinzou.
Choramingou. Quis escapar. Foi seguro por um braço e posto a muque na cama. Dona Francisca já esperava afofando o
travesseiro.
— Fique
quietinho, meu filho, que é para São Nicolau trazer um brinquedo para você.
Não quis
ouvir mais nada. Arrancou os sapatos e foi mais que depressa deixar atrás da
porta. Mas depois ficou algum tanto macambúzio. Coçando a barriga e tal.
— Que é
que você tem? Mostre a língua.
Com má
vontade, mas mostrou. Dona Francisca verificou o seu aspeto saudável.
— Vá.
Diga para sua mamãe que é que você tem.
— Como o
da outra vez eu não quero mesmo.
— Não
quer o quê?
— O
brinquedo...
Dona
Francisca riu muito. Beijou a cabecinha do Cícero. Foi buscar um lenço.
Encostou no nariz do filho.
— Assoe.
Com bastante força. Assim. De novo. Está bem. Agora me diga direitinho que brinquedo você quer que São
Nicolau traga.
— Não.
— Diga
sim, minha flor, para mamãe também pedir.
— Não.
— Então
mamãe apaga a luz e vai embora. Depois que ela sair o meu filhinho ajoelha na cama e diz bem alto o
presente que ele quer para São Nicolau poder ouvir lá do céu. Dê um beijinho na
mamãe.
Não
ajoelhou não. Ficou em pé em cima do travesseiro, ergueu o rosto para o teto e
berrou:
– Eu
quero um tamborzinho, São Nicolau! Ouviu? Também um chicotinho e uma cornetinha!
Ouviu?
Dona
Francisca ouviu. E o major logo de manhãzinha levou uma cornetada no ouvido. Pulou da cama indignadíssimo. Porém
o tambor já ia rolando pelo corredor. O chicotinho foi reservado para o
Biscoito.
Cícero na
véspera do Natal de seus sete anos às oito horas da noite estava beliscando os braços da Guiomar quando Dona
Francisca (regime alemão) apareceu na
porta da cozinha para mandá-lo dormir. Escondeu-se atrás da Guiomar.
— Depois
mamãe, depois eu vou!
— Já e
já!
O rugido
do major dai a segundos decidiu-o.
Sentado
na cama bebeu umas lágrimas, fez um ligeiro exercício de cuspo tendo por alvo o armário, vestiu a camisola e
veio descalço até o escritório beijar a mão do papai e da mamãe. Dona Francisca
voltou com ele para o quarto. Sentou-o no
colo.
– Você já
pôs os sapatos atrás da porta?
Cícero
fez-se de desentendido.
— Eu sou
paulista, mas... De Taubaté!
— Agora
não é hora de cantar. Responda.
— Atrás
da porta não cabe.
Dona
Francisca não podia compreender. Não cabe o quê?
— O que
eu quero.
— Que é
que você quer?
Cícero
começou a contar nos dedos.
—
Um-dois, feijão com arroz! Três-quatro...
—
Responda!
— Ara,
mamãe...
— Diga.
Que é?
— Ara...
— Não
faça assim. Diga!
Foi
barata que entrou ali debaixo do armário?
— Eu
quero... Ah! Mamãe, eu não quero dizer...
— Se você
não disser São Nicolau castiga você.
— Quando
é que a gente vai na chácara de titio outra vez?
Dona
Francisca apertou os braços do menino.
— Assim
machuca, mamãe! Eu quero um automóvel igual ao de titio, pronto!
— Que é isso, Cícero? Um Ford? Pra quê? Você é muito pequeno ainda
para ter um Ford.
— Mas eu
quero, pronto!
Dona
Francisca deixou o filho muito preocupada e foi confabular com o major. Mas o major (premiado com um estojo
Gillette no concurso charadístico do Malho) achou logo a solução do problema.
— Tenho
uma idéia genial.
Tapou a
idéia com o chapéu e saiu. Dona Francisca ninava o corpo na cadeira de balanço louca para adivinhar.
As sete
horas da manhã Cícero sem sair da cama encompridou o pescoço para examinar um automóvel deste tamanhinho
parado no meio do quarto. Meio tonto ainda deu um pulo e foi ver o negócio de
perto. Em cima do volante tinha um bilhete
escrito à maquina: Meu querido Cícero.
Dentro de meu cesto não cabia um automóvel grande como você pediu. Por isso
deixo este que é a mesma cousa. Tenha sempre muito juízo e seja bonzinho para
seus pais. (a) S. Nicolau.
Não vê.
Cícero soltou dois ou três berros que levantaram no travesseiro os cabelos cortados de Dona Francisca. O major
enfiou os pés nos chinelos e foi ver o que havia. Cícero pulava de ódio.
— Mas
você não viu o bilhete, meu filhinho? Quer que eu leia para você?
— Eu não
quero essa porcaria!
O major
encabulou e se ofendeu mesmo. Dona Francisca veio também saber da gritaria.
— Mas
então, Cícero! Não chore assim. Você chorando São Nicolau nunca mais traz um presente para você.
— Eu não
preciso de nada!
O major
já alimentava a sinistra idéia de passar um dos chinelos do pé para a mão. Dona
Francisca pelo contrário ameigava a voz.
— Ah, meu
benzinho, assim você deixa mamãe triste! Não chore mais.
O major
foi se aproximando do filho assim como quem não quer.
— Deixe,
Neco. Agradando se arranja tudo.
Do lado
de lá da cama o Cícero desesperado da vida. Do lado de cá os carinhosos pais
falando alternadamente. Sobre a cama (já com um farol espatifado) o pomo da
discórdia.
— São
Nicolau é velhinho não pode carregar um cesto muito grande...
— E
depois por grandão que fosse não podia caber um Ford de verdade dentro dele...
— É. E se
cabesse...
— Se
coubesse, Francisca!
— ... Se
coubesse São Nicolau não agüentaria com o peso...
— Está
cansado, não tem mais força.
Cícero
foi retendo a choradeira. Levantou a camisola para enxugar as lágrimas.
— Não
fique assim descomposto!
Os
últimos soluços foram os mais doídos para engolir. Mas parecia convencido.
— Então?
Não chora mais?
Assumiu uns ares meditabundos. Em seguida pôs as mãos na cintura. Ergueu
o coco. Pregou os olhos no pai (o major sem querer estremeceu). Disse num repente:
— Se ele
não podia com o peso por que não deixou o dinheiro para eu comprar o Fordinho então?
Nem o
major nem Dona Francisca tiveram resposta. Ficaram abobados. Berganharam
olhares de boca aberta. O major piscava e piscava. Sorrindo. Procurou alcançar o filho contornando a cama. Cícero
farejou uns cocres e foi se meter entre o armário e a janela. Fazendo beicinho.
Tremendo encolhido.
— Não dê
em mim, papai, não dê em mim!
Mas o
major levantou-o nos braços. Sentou-se na beirada da cama com ele no colo.
Cícero. Apertou-lhe comovidamente a cabeça contra o peito. Olhando para a mulher traçou com a mão direita três
círculos pouco acima da própria testa. Depois mordeu o beiço de baixo e
esbugalhou os olhos para o teto. Cícero. Dona Francisca sorriu apertando os olhos:
— Veja
você, Neco!
— Estou
vendo! E palavra que tenho medo!
Dona
Francisca não entendeu. E o major então começou a explicar.
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Nota:
Alcântara Machado: "Laranja-da-China" (1928)
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