A INSIGNE
CORNÉLIA
(Dona
Cornélia Castro Freitas)
O sol
batia nas janelas. Ela abriu as janelas. O sol entrou.
— Nove
horas já, Orozimbo! Quer o café?
— Que
mania! Todos os dias você me pergunta. Quero, sim senhora!
Não disse
palavra. Endireitou a oleogravura de Teresa do Menino Jesus (sempre torta) e
seguiu para a cozinha. O café já estava pronto. Foi só encher a xícara, pegar o açúcar, pegar o pão, pegar a
lata de manteiga, pôr tudo na bandeja. Mas antes deu uma espiada no quarto do
Zizinho. Deu um suspiro. Fechou a porta à chave. Foi levar o café.
— E a Folha?
— Acho que ainda não veio.
— Veio,
sim senhora! Vá buscar. Você está farta de saber...
Para que
ouvir o resto? Estava farta de saber. Trouxe a Folha. Voltou para a cozinha.
— Aurora!
Ó Aurora!
Pensou:
essa pretinha me deixa louca.
— Onde é
que você se meteu, Aurora?
Pensou:
só essa pretinha?
Começou a
varrer a sala de jantar. E a resolver o caso da Finoca. O médico quer tentar de novo as injeções. Mas da outra
vez deram tão mal resultado. Será que não
prestavam? Farmácia de italiano não merece confiança. Massagem é melhor: se não
faz bem mal não faz. Só se doer muito. Então não. Chega da coitadinha sofrer.
— A
senhora me chamou?
Tantas
ordens. Esperar a passagem do verdureiro. Comprar alface. Não: alface dá tifo. Escolher uma abobrinha
italiana, tomates e um molho de cheiro. Lavar a cozinha. Passar o pano molhado na copa.
Matar um frango. Fazer o caldo da Finoca.
Não se esquecer de ir ali no Seu Medeiros e encomendar uma carroça de lenha.
Mas bem cheia e para hoje mesmo sem falta.
A
indignação de Orozimbo com os suspensórios caídos subiu ao auge:
—
Porcaria de casa! Não tem um pingo de água nas torneiras!
— Na
cozinha tem.
Encheu o
balde. Levou no banheiro.
— Por que
não mandou a Aurora trazer?
— Não tem
importância.
Pisando
de mansinho entrou no quarto da Finoca. Ajeitou a colcha. Pôs a mão na testa da
menina. Levantou a boneca do tapete. Sentou-a na cadeira. Endireitou o tapete com o pé. Apesar de tudo
saiu feliz do quarto da Finoca.
— Então?
— Sem
febre.
— Não era
sem tempo. O Zizinho já se levantou?
Deu de
varrer desesperadamente. Orozimbo olhava sentado com os cotovelos fincados nas
pernas e as mãos aparando o rosto. Os chinelos de Cornélia eram de pano azul e tinham uma flor bordada na
ponta. Vermelha com umas cousas amarelas
em volta. Antes desses que chinelos ela usava mesmo? Não havia meio de se lembrar. De pano não eram: faziam
nheque-nheque. De couro amarelo? Seriam?
— Como
eram aqueles chinelos que você tinha antes, heim, Cornélia?
— Por que
você quer saber?
— Por
nada. Uma idéia. Diga.
— Não me
lembro.
Está bem.
Levantou-se. Espreguiçou-se. Deu dois passos.
— Onde é
que vai?
— Ver se
o Zizinho está acordado.
Cornélia
opôs-se. Deixasse o menino dormir, que diabo. Só entrava no serviço às onze horas. Tinha tempo. Depois a
Aurora estava lavando a cozinha.
Molhar os
pés logo de manhã cedo faz mal. Quanto mais ele que vivia resfriado. Não fosse não.
— Vou
sim. Tem de me fazer um serviço antes de sair.
Cornélia
ficou apoiada na vassoura rezando baixinho. Prontinha para chorar. E ouvia as
sacudidelas no trinco. E os berros do marido. Depois o silêncio sossegou-a.
Recomeçou a varrer com mais fúria ainda.
Orozimbo
entrou judiando do bigode. Deu um jeito no cós das calças e arrancou a vassoura
das mãos da mulher.
— Que é
isso, Orozimbo? Que é que há?
— Há que
o Zizinho não dormiu hoje em casa e há que a senhora sabia e não me disse nada!
— Não
sabia.
— Sabia!
Conheço você!
— Não sabia.
Depois ele está no quarto.
— A chave
não está na fechadura!
— Então
já saiu.
— E
fechou a porta! Para quê, faça o favor de me dizer, para quê?
Então
Cornélia puxou a cadeira e atirou-se nela chorando. Orozimbo andava, parava,
tocava piano na mesa, andava, parava. Começava uma frase, não concluía, assoprava a ponta do nariz, começava
outra, também não concluía. Parou diante da mulher.
— Não
chore. Não adianta nada.
Depois
disse:
— Grande
cachorrinho!
E foi pôr
o paletó.
Cornélia
enxugou os olhos com as mãos. Enxugou as mãos na toalha da mesa. Ficou um momento com o olhar parado na Ceia
de Cristo da parede. Muito cautelosamente caminhou até o quarto do Zizinho.
Tirou a chave do bolso do avental. Abriu
a porta. Começou a desfazer a cama depressa. Mas quando se virou deu com o Zizinho.
— Ah
seu... Onde é que você andou até agora?
— Quem?
Eu?
— Quem
mais?
— Eu? Eu
fui a Santos com uns amigos...
— Você
está mentindo, Zizinho.
— Eu,
mamãe? Não estou, mamãe. Juro. Vá jurar para seu pai.
Zizinho
tirou o chapéu. Sentou-se na cama. Esfregava as mãos. Maria olhava para ele
sacudindo a cabeça.
— Por que
a senhora mesma não explica para papai, heim? Faça esse favorzinho para seu filho, mamãe.
Disse que
não e deixou o filho no quarto bocejando.
Orozimbo
quando soube da chegada do Zizinho quis logo ir arrancar as orelhas do
borrinha. Mas ameaça ir — resolve ir depois, resolve ir mesmo — precisa ficar
por causa das lágrimas da mulher, precisa dar uma lição no pestinha — a raiva vai
diminuindo: não foi. Seja tudo pelo amor de Deus. Depois se o menino virasse vagabundo de uma vez, apanhasse uma doença,
fosse parar na cadeia, ele não tinha culpa nenhuma. A culpa era todinha de
Cornélia. Ele, o pai, não queria responsabilidades.
— Você
não almoça?
— Vou
almoçar com o Castro. Eu lhe disse ontem.
— Tem
razão.
— Mas não
se acabe dessa maneira!
— Não.
Até logo.
— Até
logo.
Zizinho
jurou que outra vez que tivesse de ir para Santos com os amigos avisava os pais nem que fosse à meia-noite. E
Cornélia estalou uns ovos para ele. Estavam
ali na mesa satisfeitos porque tudo se acomodou bem.
— A
senhora não come?
— Não.
Estou meio enjoada.
Finoca de
vez em quando levantava um gemido choramingado no quarto e ela corria logo. Não era nada graças a Deus.
Cousas da moléstia. Antes de sair Zizinho fez outra promessa de cigarro aceso:
assim que chegasse na Companhia iria
pedir perdão ao pai. Daria esse contentamento ao pai. Tudo se acomodou tão bem.
Cornélia ajudada pela Aurora pôs a Finoca na cadeirinha de rodas.
— Mamãe
leva o benzinho dela no sol.
Costurar
com aquela luz nos olhos.
— Mamãe,
leia uma história pra mim.
Livro
mais bobo.
— É
melhor você brincar com a boneca.
— Não,
mamãe. Eu quero que você leia.
A
formiguinha pôs o vestido mais novo que tinha e foi fiar na porta da casa. Fiar
criança brasileira não sabe o que é: a formiguinha toda chibante foi costurar
na porta da casa dela. O gato passou e perguntou pra formiguinha: Você quer
casar comigo formiguinha? A formiguinha disse: Como é que você faz de noite?
—
Miau-miau-miau!
— Viu?
Você já sabe todas as histórias.
— Mas
leia, mamãe, leia.
A costura
por acabar. Tanta cousa para fazer. Um enjôo impossível no estômago. A formiguinha preparou as iguárias
ou as iguarias?
Aurora
ficou toda assanhada quando viu quem era.
— Ó Dona
Isaura! Como vai a senhora, Dona Isaura?
— Bem.
Você está gorda e bonita, Aurora.
— São
seus olhos, Dona Isaura! Muito obrigada!
O vestido
vermelho foi furando a casa até o terraço do fundo. Não quis sentar-se Era um minuto só. Mexia-se. Virava
de uma banda. De outra.
— Eu vim
lhe pedir um grande favor, Cornélia.
Aurora
encostada no batente da cozinha escutava enlevada.
— Vá
fazer seu serviço, rapariga!
Não foi
sem primeiro ganhar um sorriso e guardar bem na cabeça o feitio do vestido. Atrás principalmente.
— Você
não imagina como estou nervosa!
— Mamãe
como vai?
Vai bem.
Mas não é mamãe não. É a Isaurinha. Você não pode imaginar como a Isaurinha está impertinente, Cornélia.
É um horror! Quase me acaba com a vida!
Hoje de manhã não quis tomar o remédio. E agora às duas horas tem que tomar
justamente aquele que ela mais detesta. Só em pensar, meu Deus!.
Até
Finoca sorria com a boneca no colo. Isaura abriu a bolsa e passou uma revista demorada
no rosto e no chapéu levantando e abaixando o espelhinho.
— Titia
está muito bonitinha.
Virou-se
de repente, fechou a bolsa e fez uma carícia na cabeça da menina.
— Que
anjo! Olhe aqui, Cornélia. Eu queria que você por isso me fizesse a caridade (olhe que é caridade) de dar daqui a
pouco um pulo lá em casa. Isaurinha com
você perto toma o remédio e fica sossegada. Tem uma verdadeira loucura por você, não compreendo!
Cornélia
que estava implicando com a toalha de banho ali no terraço levantou-se, pegou a toalha, dobrou, chamou a
Aurora, mandou levar a toalha no banheiro. Aurora foi recuando até a sala de
jantar.
E você,
Isaura, onde se atira?
— Eu? Ah!
Eu vou, imagine você, eu tenho cabeleireiro justamente às duas horas. Mas você me faz o favor de ir ver a
Isaurinha, não faz?
— E a
Finoca?
Isaura
deu logo a solução:
— Você
leva na cadeira mesmo. Põe no automóvel.
— Que
automóvel?
Pensou em
oferecer o dinheiro. Mas desistiu (podia ofender, Cornélia é tão esquisita) e disse:
— No meu!
Ele me leva na cidade, depois vem buscar vocês.
— Está
bem.
Deixaram
a menina no terraço e foram para o quarto de Cornélia. Isaura estava entusiasmada
com a companhia de revistas do Apolo. Cornélia não podia imaginar. Que esperança. Nem Cornélia nem ninguém. Só
indo ver mesmo. Era uma maravilha. Na última peça principalmente tinha um
quadro que nem em cinema podiam fazer igual. Toda a gente reconheceu. Chamado No
Reino da Quimera. Quando a cortina se abria aparecia um quarto iluminado de
roxo (uma beleza) com uma mulher quase nua deitada num sofá e fumando num
cachimbo comprido. Bem comprido e fino. Era um tango: Fumando Espero. Há?
Que lindo, heim? Depois entrava um homem elegantíssimo com a cara do Adolfo
Menjou. Mas a cara igualzinha. Uma cousa fantástica. Outro tango (bem
arrastado): Se Acabaron los Otarios.
Cornélia
passou a mão na testa, caiu na cadeira diante do toucador.
— Que é
que você tem?
— Nada.
Um ameaço
de tontura.
— Você
não almoçou?
— Não.
Nem cheiro da comida eu suporto..
Isaura
olhou bem para a irmã. Teve pena da irmã.
— Será
possível, Cornélia?
Levantou
a testa da mão. Deixou cair a testa na mão.
Então
Isaura não se conteve e começou a dar conselhos em voz baixa. Não fosse mais
boba. Havia um meio. E mais isto. E mais aquilo. Não tinha perigo não. Fulana fazia. Sicrana também. Ela Isaura
(nunca fez, não é?) mas se precisasse faria
também, por que não? Ninguém reparava. Pois está claro. Religião. Que é que tem
religião com isso? Estarem ali se sacrificando? Não.
Mas
Cornélia ergueu o olhar para a irmã, fez um esforço de atenção:
— Não é o
choro da Finoca?
Não era.
Parecia que sim. Era sim. Não era. Era no vizinho.
— E
então?
— Isso é
bom para as mulheres de hoje, Isaura. Eu sou das antigas...
Insensivelmente
a gente abaixa os olhos.
Está bem.
Desculpe. Não se fala mais nisso. Até loguinho, Cornélia. Eu mando o automóvel já. Até loguinho. E muito
obrigada, sabe:
A irmã já
estava longe quando ela respondeu devargarzinho:
— Ora...
De nada...
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Nota:
Alcântara Machado: "Laranja-da-China" (1928)
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