sábado, 31 de agosto de 2013

Antônio de Alcântara Machado: "A Apaixonada Elena"

A APAIXONADA ELENA
(Senhorinha Elena Benedita de Faria)


Quem é que me leva hoje no Literário? 

Ficou esperando a resposta.

Dona Maria da Glória fazia uns desenhos na toalha com a ponta do garfo.  Achando muita graça na história do Dico. Esses meninos. Mas o melhor ainda não  tinha sido contado: a negra perdeu a paciência e meteu a mão na cara do gerente. A  rapaziada por pândega fez uma subscrição e deu uns dois mil e tanto para a negra. E a polícia? Que polícia? Negra decidida está ali.

— Quem é que me leva hoje no Literário, mamãe?

Ficou esperando a resposta.

Dona Maria da Glória falou:

— Vamos para outra sala que aqui está calor demais.

Dico pôs no Panatrope o Franchie and Johnny. E diante do aparelho  ensaiava uns passos complicados. Pé direito atrás. Batida de calcanhares. Pé direito  na frente. Batida de calcanhares. Saiu andando que nem cavalo de circo. Elena sentou-se, abriu a revista diante do rosto pôs uma perna em cima da outra.

— Tenha modos menina!

Suspirou, descruzou as pernas. Dico foi se chegando. Deu um tabefe na  revista, fugiu de banda deslizando.

— Chorando! Que é que ela tem, mamãe?

— Sei lá. Bobagens. Pare com essa dança que me estraga o encerado.

Elena levantou-se e as lágrimas caíram.

— Onde é que vai? Sente-se ai!


Dico parou a musica. Foi ficar diante da irmã de beiço caído.

— As lágrimas da mártir.
  
Dona Maria mandou que o Dico ficasse quieto, não amolasse nem fosse moleque. E mandou Elena enxugar as lágrimas que já estavam incomodando. Dico jogou o lenço no colo da irmã. Elena jogou o lenço no chão por desaforo. Enxugou com a gola da blusa.

— Sou mesmo uma mártir, pronto!

Os olhares da mãe e do irmão encontraram-se bem em cima do vaso de flores de vidro. Despediram-se e se foram encontrar de novo nos olhos molhados da  mártir Elena. O Doutor Zósimo veio lá de dentro escovando os dentes. Sacudiu a  cabeça para a mulher:

— Que é que há? A mulher esticou o queixo e abriu os braços: Não sei não!

— Malvados! Não querem me levar no Literário!

— Quem é que não quer?

— Vocês!

Então o Doutor Zósimo voltou lá para dentro babando espuma. O Dico  pegou o chapéu, beijou o rosto da mãe, curvou-se diante da irmã, fez umas piruetas  e saiu cantando o Pinião. Dona Maria da Glória tirou o cachorro do colo. Depois deu  uma mirada vaga assim em torno. Depois penteou o cabelo com os dedos. Finalmente bocejou e disse:

— Não seja boba, menina!

E foi embora.

O ruído da rua. O sol entrando pela porta aberta que dava para o terraço. Batiam pratos na copa. O cachorro latindo para o Doutor Zósimo. Esta mesa seria  mais bonita se fosse mais baixa.

Elena espreguiçou-se e pôs no Panatrope um disco bem chorado dos  Turunas da Mauricéia.

— Que vestido eu visto, mamãe?

— O azul.

Foi. Demorou um pouco. Voltou.

— Está todo amassado, mamãe.

— Então o verde.

— Com aqueles babados?

E repetiu:

— Com aqueles babados indecentes?

E tornou a repetir:

— Com aqueles babados indecentes, horrorosos, imorais?

Dona Maria da Glória estava na página dos anúncios.
  
— Em que vapor partiu a Dulce mesmo?

— Como é que a senhora quer que eu me lembre?

— Não seja insolente!

Fechou-se no quarto. Cinco minutos se tanto. Abriu a porta. Disse da porta:

— Eu vou pôr o novo futurista.

— Ponha o verde já disse!

— Oh desgraça, meu Deus!

Se o Zósimo continuasse a não fazer caso ela como mãe estava decidida: curaria aquele nervosismo a chinelo.

A toda hora olhava o ponteiro dos minutos. Já querendo ir embora. Vinte para as oito. Às oito acaba com o hino nacional. No fundo dança não passa de uma  sem-vergonhice muito grande. A gente conta na certa com uma coisa: vai a cousa  não acontece. As primas não paravam sentadas. Há moças que tiram seus pares de longe: é um jeito de olhar.

Voltar para casa, ler na cama a revista de Hollywood, procurar dormir. Com  aquele calorão. E amanhã bem cedo: dentista. A vida é pau. Dez para as oito.

Dez para as oito Firmianinho apareceu. Começou a inspeção pelo lado  esquerdo. Foi indo. No canto direito parou. Veio vindo. Chegou. Enfim chegou.

— Boa noite. 

— Boa noite.

Tanta aflição antes e agora este silêncio. Dançavam empurrados. Não valeu  de nada ter preparado a conversa. Tinha uma pergunta para fazer. Não era bem uma pergunta. Endireitando o busto parecia que se dominava. Felizmente repetiram  o maxixe.

— Sabe que comprei um Reo? 22.222.

— Bonitinho?

— Assim assim. Dezoito contos.

Para que dizer o preço? Matou a conversa no princípio. Não tendo coragem de ver precisava perguntar. Então imaginava um modo, imaginava outro cada vez mais nervosa. E dançavam. O maxixe está com jeito de estar acabando. Perguntava  agora. Daqui a pouco. No finzinho. Não perguntaria: olharia e pronto. O hino  nacional continuou o maxixe. 

— Tirou as costeletinhas?

— Ainda não viu? 

Ora que resposta.

Quando pararam junto das primas dela ele virou bem o rosto de propósito.
Tirou sim. Agora sim. Isso sim.

Despediram-se com muita alegria.

Chegou em casa foi direitinho para o quarto. Tirou o chapéu em frente do   espelho. Guardou a bolsa. Ia tirar o vestido de bordados indecentes, horrorosos, imorais. Mas se jogou na cama com os olhos cheios de lágrimas.


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Nota:
Alcântara Machado: "Laranja-da-China" (1928)

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