O
REVOLTADO ROBESPIERRE
(Senhor
Natanael Robespierre dos Anjos)
Todos os
dias úteis às dez e meia toma o bonde no Largo de Santa Cecília encrencando com o motorneiro.
— Quando
a gente levanta o guarda-chuva é para você parar essa joça! Ouviu, sua besta?
Gosta de
todos aqueles olhares fixos nele. Tira o chapéu. Passa a mão pela cabeleira leonina. Enche as bochechas e dá um
sopro comprido. Paga a passagem com dez mil-réis. Exige o troco
imediatamente.
— Não
quero saber de conversa, seu galego. Passe já o troco. E dinheiro limpo,
entendeu? Bom.
Retém o
condutor com um gesto e verifica sossegadamente o troco.
— O quê?
Retrato de Artur Bernardes? Deus me livre e guarde! Arranje outra nota.
Levanta-se
para dar um jeito na cinta, chupa o cigarro (Sudan Ovais por causa dos
cheques), examina todos os bancos, vira-que-vira, começa:
— Isto
até parece serviço do governo! Pausa. Sacudidela na cabeleira leonina. Conclui:
— O que
vale é que os homens um dia voltam...
Primeiro
sorriso aparentemente sibilino. Passeio da mão direita na barba escanhoada.
Será espinha? Tira o espelhinho do bolso. É espinha sim. Porcaria. Segundo
sorriso mais ou menos sibilino. Cara de nojo.
Não sei
que raio de cheiro tem este Largo do Arouche, safa!
Vira a
aliança no seu-vizinho. Essa operação deixa-o meditabundo por uns instantes.
Finca o olhar de sobrancelhas unidas no cavalheiro da esquerda. Esperando. O
cavalheiro afinal percebe a insistência. É agora:
— Perdão.
O senhor leu a última tabela do Matadouro? Viu o preço da carne de leitão, por
exemplo? Cinco ou seis ou não sei quantos mil-réis o quilo!
Não
espera resposta. Não precisa de resposta Berra no ouvido do velho da direita:
— É como
estou lhe contando: o quilo!
Quase despenca do bonde para ver uma costureirinha na Rua do
Arouche. As pernas magras
encolhem-se assustadas.
— O
cavalheiro queira ter a bondade de me desculpar. São os malditos solavancos
desta geringonça. Um dia cai aos pedaços.
Dá um
tabefe no queixo, mas cadê mosca? Tira um palito do bolso, raspa o primeiro molar superior direito (se duvidarem
muito é fibra de manga), olha a ponta do
palito, chupa o dente com a ponta da língua (tó! tó!), um a um percorre os anúncios do bonde. Ritmando a leitura com a cabeça.
Aplicadamente. Raio de italiano para falar alto. Falta de
educação é cousa que a gente percebe logo. Não tem que ver. O do ODOL já leu. Estava
começando o da CASA VENCEDORA. Isto de preço de custo só engana os trouxas.
— Oh
estupidez! O senhor já reparou naquele anúncio ali? Bem em cima da mulher de chapéu verde. CONSERTA-SE MÁQUINAS
DE ESCREVER. conserta-se máquinassss! Fan-tás-tico! Eu não pretendo por
duzentos réis condução e ainda por cima
trechos seletos de Camilo ou outro qualquer autor de peso, é verdade... Mas enfim...
É preciso
um fecho erudito e interessante ao mesmo tempo.
— Mas
enfim...
A mão
procura inutilmente no ar dando voltinhas.
— Mas
enfim... Seu Serafim...
Fica
nisso mesmo. Acerta o cebolão com o relógio do Largo do Municipal. Esfrega as mãos. O guarda-chuva cai. Ergue-o
sem jeito. Enfia a cartolinha lutando com as melenas. Previne os vizinhos:
— Este
viaduto é uma fábrica de constipações. De constipações só? De pneumonias mesmo. Duplas!
Silêncio.
Mas eloqüente. Palito de fósforo é bom para limpar o ouvido. Descobre-se diante
da Igreja de Santo Antônio.
— Não
está vendo, seu animal, que a mulher; não se sentou ainda? Aprenda a tratar melhor os passageiros! Tenha
educação!
Cumprimenta
rasgadamente o Doutor Indalécio Pilho, subinspetor das bombas de gasolina, que
passa no seu Marmon oficial e não o vê. Depois anota apressadamente o número do automóvel no verso
de uma cautela do Monte de Socorro do
Estado.
— O povo
que sue para pagar o luxo dos afilhados do governo! Aproveite, pessoal! Vá
mamando no Tesouro enquanto o povo não se levanta e manda vocês todos... Nada! Mas isto um dia acaba.
Terceiro sorriso nada sibilino. Passa para a ponta. Confirma para
os escritórios da I.R.F.
Matarazzo:
— Ora se
acaba!
Outro cigarro. Apalpa todos os bolsos. Acende-o no do vizinho. E
dá de limpar as unhas com o canivete de madrepérola. Na esquina da Rua Anchieta
por pouco não arrebenta o
cordão da campainha. Estende a destra espalmada para o companheiro de viagem:
—
Natanael Robespierre dos Anjos, um seu criado.
Desce no
Largo do Tesouro. Faz a sua fézinha no CHALET PRESIDENCIAL (centenas
invertidas). Atravessa de guarda-chuva feito espingarda o Largo do Palácio. E
todos os dias úteis às onze horas menos cinco minutos entra com o pé direito na Secretaria
dos Negócios de Agricultura e Comércio onde há vinte e dois anos ajuda a administrar o Estado (essa nação dentro da nação) com
as suas luzes de terceiro escriturário
por concurso não falando na carta de um republicano histórico.
---
---
Nota:
Alcântara
Machado: "Laranja-da-China" (1928)
Nenhum comentário:
Postar um comentário