sábado, 31 de agosto de 2013

Antônio de Alcântara Machado: "O Patriota Washington"

O PATRIOTA WASHINGTON
(Doutor Washington Coelho Penteado)

O sol ilumina o Brasil na manhã escandalosa e o Doutor Washington Coelho  Penteado no rosto varonil. Há trinta e oito anos Deodoro da Fonseca fundou a   República sem querer. O doutor pensa bem no acontecimento e grita no ouvido do chofer:

— Toca pra Mogi das Cruzes!

Minutos antes arrancara da folhinha do EMPÓRIO UCRANIANO a folha do dia 14. Cercado pelos filhos escrevera a lápis azul na do dia 15: Viva o Brasil! E obrigara o Juquinha a tirar o gorro marinheiro porque ainda não sabia fazer continência.

Muitíssimo bem. Agora segue de Chevrolet aberto para Mogi das Cruzes. Algum dia no mundo ia se viu uma manhã tão linda assim?

Êta Brasil.

Êta.

Na lapela uma bandeirinha nacional. Conservada ali desde a entrada do Brasil na grande conflagração. Ou bem que somos ou bem que não somos. O doutor é de fato: brasileiro graças a Deus. Onde desejava nascer? No Brasil está claro. Ao lado dele a mulher é assim assim. Os filhos sabem de cor o hino nacional.

Só que ainda não pegaram bem a música. Em todo o caso cantam às vezes durante a  sobremesa para o doutor ouvir. A bandeira se balançando na sacada do Teatro  Nacional lembra ao doutor os admiráveis versos do poeta dos Escravos.

— Sim senhor! É bem a brisa de que fala Castro Alves.

— Que brisa, Nenê?

— Nada. Você não entende.

Ele entende. E goza a brisa que beija e balança.
 
— O Capitão Melo me afirmou que não há parque europeu que se compare com este do Anhangabaú.

— Exagero...

— Já vem você com a sua eterna mania de avacalhar o que é nosso! Pois  fique sabendo...

Fique sabendo, Dona Balbina. Fique a senhora sabendo que o que é nosso  é nosso. E vale muito. E vale mais que tudo. Vá escutando. Vá escutando em  silêncio. E convença-se de uma vez para não dizer mais bobagens.

— Veja o movimento. E hoje é feriado, hein! Não se esqueça! Paris que é  Paris não tem movimento igual. Nem parecido.

— Você nunca foi a Paris...

Isso também é demais. O melhor é não responder. Homem: o melhor é  estourar.

— Meu Deus do céu! Não fui, mas sei! Toda a gente sabe! Os próprios franceses confessam! Mas você já sabe: é a única pessoa no mundo que não  reconhece nada, não sabe nada!

Guiados pelo fura-bolos do doutor todos os olhares se fixam na catedral em começo.

— Vai ser a maior do mundo! E gótica, compreenderam? Catedral gótica!

Na cabeça.

Gostosura de descer a toda a Ladeira do Carmo e cair no plano do Parque  D. Pedro II.

— Seu professor, Juquinha, não lhe ensinou que D. Pedro era amicíssimo, do peito mesmo, de Victor Hugo, gênio francês?

Juquinha nem se dá ao trabalho de responder.

— Pois se não ensinou fez muito mal. Amizades como essa honram o pais.

O chofer não deixa escapar um só buraco e Dona Balbina põe a mão no  coração. Washington Coelho Penteado toma conta do cláxon.

— São um incentivo para as crianças. Quando maiores procurarão cultivá-las também.

O vento desvia as palavras do doutor, dos ouvidos da família. O Chevrolet não respeita bonde nem nada. Pomba só levanta o vôo quando o automóvel parece que já está em cima dela.

— Este Brás! Este Brás! Não lhes digo nada!

Dez fósforos para acender um cigarro.

Dona Balbina olha a paineira. Mesma cousa que não olhasse. Juquinha vê  um negócio verde. Washington Júnior um negócio alto. O doutor mais uma prova da  pujança primeira-do-mundo da natureza pátria.

Interjeição admirativa. Depois:

— Reparem só na quantidade de automóveis. Dez desde São Miguel! E nenhum carro de boi!

60 por hora.

O Chevrolet perde-se na poeira. Dona Balbina se queixa. Juquinha coça os olhos.

— Pó quer dizer progresso!

Palavras assim são ditas para a gente saborear baixinho, repetindo muitas  vezes. Pó quer dizer progresso. Logo surge uma variante: Pó, meus senhores, quer dizer tão simplesmente progresso. Na antiga Grécia... Mas uma dúvida preocupa o espírito do doutor: a frase é dele mesmo ou ele leu num discurso, num artigo, numa  plataforma política? Talvez fosse do Rui até. Querem ver que é do bichão mesmo? Engano. Do Rui não é. Do Epitácio, do Epitácio também não. Não é nem do Rui nem  do Epitácio então é dele mesmo. É dele.

Washington Júnior com o dedo no cláxon esta torcendo para que apareça uma curva.

Velocidade.

— O Brasil é um gigante que se levanta. Dentro em breve...

Era uma vez um pneumático.

— Aquele telhado vermelho que vocês estão vendo é o Leprosário de Santo Ângelo.

É preciso ser bacharel e ter alguns anos de júri para descrever assim tão  bem os horrores da morféia também cognominada mal de Hansen, esse flagelo da  humanidade desde os mais remotos tempos.

Dona Balbina se impressiona por qualquer cousa. Mas agora tem sua razão. Altamente patriótica e benemérita a campanha de Belisário Pena. A ação  dos governos paulistas igualmente. Amanhã não haverá mais leprosos no Brasil. Por enquanto ainda há, mas isso de ter morféia não é privilégio brasileiro. Não pensem  não. O mundo inteiro tem. A Argentina então nem se fala. Morfético até debaixo  d'água. E não cuida seriamente do problema não. Está se desleixando.

É. Está. Daqui a pouco não há mais brasileiro morfético. Só argentino. Povo  muito antipático. Invejoso, meu Deus. Não se meta que se arrepende. Em dois  tempos... Bom. Bom. Bom. Silêncio que a espionagem é brava.

As casas brancas de Mogi das Cruzes.

— Qual é o número mesmo daquele automóvel que está parado ali?

— P. 925.

Veja você! P. 925!
  
Uma volta no largo da igreja. Parada na confeitaria para as crianças se
refrescarem com Mocinha. Olhadela disfarçada em quatro pernas de anjo. Saudação
vibrante ao progresso local.

Chevrolet de novo.

— Toca pra São Paulo!

Primeira. Solavanco. Segunda. Arranco. Terceira. Aquela macieza.

— Não! Pare!

— Pra quê, Nenê?

— Uma cousa. Onde será o telégrafo?

Onde será? Que tem, tem.

— O patrício pode me informar onde fica o telégrafo?

Muito fácil. Seguir pela mesma rua. Tomar a primeira travessa à direita.  Passar o largo. Passar o sobradão vermelho. Virar na primeira rua à direita.

— Primeira á direita?

Primeira à direita. Depois da terceira é o prédio onde tem um pau de bandeira.

— Pau, não senhor. Bandeira desfraldada porque hoje é 15 de Novembro.
Muito agradecido.

Faz a família descer também. Puxa da caneta-tinteiro, floreiozinho no ar, começa: Ex. Sr. Dr. Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil. Palácio do Catete. Vale a pena pôr a rua também? Não. O homem tem que ser conhecido por força. Bem. Rio de Janeiro. Desta adiantada cidade tendo vindo Capital Estado  uma hora dezessete minutos magnífica rodovia enviamos data tão grata corações  patrióticos efusivos quão respeitosos cumprimentos erguendo viva República V.  Ex.a. Que tal? 

Ótimo, não? Só isso de República V. Ex.a é que está meio ambíguo. Parece  que a República é de S. Ex.a. Não está certo. A República é de todos. Assim exige  sua essência democrática. Assim sim fica perfeito: República e V. Ex.a            Bravo. Dr.

Washington Coelho Penteado, senhora e filhos.

Quinze e novecentos.

— E eu que ainda queria pôr uma citação!

Não precisa. Como está muito bonito. 

— É bondade sua. Uma cousinha ligeira, feita às pressas...

Enquanto o telegrafista declama os dizeres mais uma vez Washington Coelho Penteado passa os quinze mil e novecentos réis.
  
Em plena rodovia de repente o doutor murcha. Emudece. Dona Balbina que  estava dorme-não-dorme espertou com o silêncio. O doutor quieto. Mau sinal.  Procurando adivinhar arrisca:

— Que é que deu em você? O preço do telegrama?

O gesto deixa bem claro que isso de dinheiro não tem a mínima importância.

Dona Balbina pensa um pouquinho (o doutor quieto) e arrisca de novo:

— Medo que o chefe saiba que você usa o automóvel de serviço todos os  domingos? Domingos e dias feriados?

O gesto manda o chefe bugiar no inferno.

O Chevrolet corre atrás dos marcos quilométricos.

Só ao entrar em casa o doutor se decide a falar.

— Esqueci-me de pôr o endereço para a resposta!...

— I-DI-O-TA!

Olhem só o gozo das crianças.
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Nota:
Alcântara Machado: "Laranja-da-China" (1928)

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