O
PATRIOTA WASHINGTON
(Doutor Washington Coelho Penteado)
(Doutor Washington Coelho Penteado)
O sol
ilumina o Brasil na manhã escandalosa e o Doutor Washington Coelho Penteado no rosto varonil. Há trinta e oito
anos Deodoro da Fonseca fundou a República
sem querer. O doutor pensa bem no acontecimento e grita no ouvido do chofer:
— Toca
pra Mogi das Cruzes!
Minutos
antes arrancara da folhinha do EMPÓRIO UCRANIANO a folha do dia 14. Cercado
pelos filhos escrevera a lápis azul na do dia 15: Viva o Brasil! E obrigara o Juquinha
a tirar o gorro marinheiro porque ainda não sabia fazer continência.
Muitíssimo
bem. Agora segue de Chevrolet aberto para Mogi das Cruzes. Algum dia no mundo
ia se viu uma manhã tão linda assim?
Êta
Brasil.
Êta.
Na lapela
uma bandeirinha nacional. Conservada ali desde a entrada do Brasil na grande
conflagração. Ou bem que somos ou bem que não somos. O doutor é de fato:
brasileiro graças a Deus. Onde desejava nascer? No Brasil está claro. Ao lado
dele a mulher é assim assim. Os filhos sabem de cor o hino nacional.
Só que
ainda não pegaram bem a música. Em todo o caso cantam às vezes durante a sobremesa para o doutor ouvir. A bandeira se
balançando na sacada do Teatro Nacional lembra ao doutor os admiráveis
versos do poeta dos Escravos.
— Sim
senhor! É bem a brisa de que fala Castro Alves.
— Que
brisa, Nenê?
— Nada.
Você não entende.
Ele
entende. E goza a brisa que beija e balança.
— O
Capitão Melo me afirmou que não há parque europeu que se compare com este do
Anhangabaú.
—
Exagero...
— Já vem
você com a sua eterna mania de avacalhar o que é nosso! Pois fique sabendo...
Fique sabendo, Dona Balbina. Fique a senhora sabendo que o que é
nosso é nosso. E vale muito. E vale mais que tudo. Vá escutando.
Vá escutando em silêncio. E convença-se
de uma vez para não dizer mais bobagens.
— Veja o
movimento. E hoje é feriado, hein! Não se esqueça! Paris que é Paris não tem movimento igual. Nem parecido.
— Você
nunca foi a Paris...
Isso
também é demais. O melhor é não responder. Homem: o melhor é estourar.
— Meu
Deus do céu! Não fui, mas sei! Toda a gente sabe! Os próprios franceses confessam! Mas
você já sabe: é a única pessoa no mundo que não reconhece nada, não sabe nada!
Guiados
pelo fura-bolos do doutor todos os olhares se fixam na catedral em começo.
— Vai ser
a maior do mundo! E gótica, compreenderam? Catedral gótica!
Na
cabeça.
Gostosura
de descer a toda a Ladeira do Carmo e cair no plano do Parque D. Pedro II.
— Seu
professor, Juquinha, não lhe ensinou que D. Pedro era amicíssimo, do peito
mesmo, de Victor Hugo, gênio francês?
Juquinha
nem se dá ao trabalho de responder.
— Pois se
não ensinou fez muito mal. Amizades como essa honram o pais.
O chofer
não deixa escapar um só buraco e Dona Balbina põe a mão no coração. Washington Coelho Penteado toma conta
do cláxon.
— São um
incentivo para as crianças. Quando maiores procurarão cultivá-las também.
O vento
desvia as palavras do doutor, dos ouvidos da família. O Chevrolet não respeita
bonde nem nada. Pomba só levanta o vôo quando o automóvel parece que já está em
cima dela.
— Este
Brás! Este Brás! Não lhes digo nada!
Dez
fósforos para acender um cigarro.
Dona
Balbina olha a paineira. Mesma cousa que não olhasse. Juquinha vê um negócio verde. Washington Júnior um negócio
alto. O doutor mais uma prova da pujança primeira-do-mundo da natureza
pátria.
Interjeição
admirativa. Depois:
— Reparem
só na quantidade de automóveis. Dez desde São Miguel! E nenhum carro de boi!
60 por
hora.
O
Chevrolet perde-se na poeira. Dona Balbina se queixa. Juquinha coça os olhos.
— Pó quer
dizer progresso!
Palavras
assim são ditas para a gente saborear baixinho, repetindo muitas vezes. Pó quer dizer progresso. Logo surge uma
variante: Pó, meus senhores, quer dizer tão simplesmente progresso. Na antiga
Grécia... Mas uma dúvida preocupa o espírito do doutor: a frase é dele mesmo ou
ele leu num discurso, num artigo, numa plataforma
política? Talvez fosse do Rui até. Querem ver que é do bichão mesmo? Engano. Do
Rui não é. Do Epitácio, do Epitácio também não. Não é nem do Rui nem do Epitácio então é dele mesmo. É dele.
Washington
Júnior com o dedo no cláxon esta torcendo para que apareça uma curva.
Velocidade.
— O
Brasil é um gigante que se levanta. Dentro em breve...
Era uma
vez um pneumático.
— Aquele
telhado vermelho que vocês estão vendo é o Leprosário de Santo Ângelo.
É preciso ser bacharel e ter alguns anos de júri para descrever
assim tão bem os horrores da morféia
também cognominada mal de Hansen, esse flagelo da humanidade desde os mais remotos tempos.
Dona
Balbina se impressiona por qualquer cousa. Mas agora tem sua razão. Altamente
patriótica e benemérita a campanha de Belisário Pena. A ação dos governos paulistas igualmente. Amanhã não
haverá mais leprosos no Brasil. Por enquanto ainda há, mas isso de ter morféia
não é privilégio brasileiro. Não pensem não.
O mundo inteiro tem. A Argentina então nem se fala. Morfético até debaixo d'água. E não cuida seriamente do problema
não. Está se desleixando.
É. Está.
Daqui a pouco não há mais brasileiro morfético. Só argentino. Povo muito antipático. Invejoso, meu Deus. Não se
meta que se arrepende. Em dois tempos...
Bom. Bom. Bom. Silêncio que a espionagem é brava.
As casas
brancas de Mogi das Cruzes.
— Qual é
o número mesmo daquele automóvel que está parado ali?
— P. 925.
— Veja
você! P. 925!
Uma volta no largo da igreja. Parada na confeitaria para as
crianças se
refrescarem
com Mocinha. Olhadela disfarçada em quatro pernas de anjo. Saudação
vibrante
ao progresso local.
Chevrolet
de novo.
— Toca
pra São Paulo!
Primeira.
Solavanco. Segunda. Arranco. Terceira. Aquela macieza.
— Não!
Pare!
— Pra
quê, Nenê?
— Uma
cousa. Onde será o telégrafo?
Onde
será? Que tem, tem.
— O
patrício pode me informar onde fica o telégrafo?
Muito
fácil. Seguir pela mesma rua. Tomar a primeira travessa à direita. Passar o largo. Passar o sobradão vermelho.
Virar na primeira rua à direita.
—
Primeira á direita?
Primeira
à direita. Depois da terceira é o prédio onde tem um pau de bandeira.
— Pau,
não senhor. Bandeira desfraldada porque hoje é 15 de Novembro.
Muito
agradecido.
Faz a
família descer também. Puxa da caneta-tinteiro, floreiozinho no ar, começa: Ex. Sr. Dr. Presidente da República dos Estados Unidos do
Brasil. Palácio do Catete. Vale a pena pôr a rua também? Não. O
homem tem que ser conhecido por força. Bem. Rio
de Janeiro. Desta adiantada cidade tendo vindo Capital Estado uma hora dezessete minutos magnífica rodovia
enviamos data tão grata corações patrióticos
efusivos quão respeitosos cumprimentos erguendo viva República V. Ex.a. Que tal?
Ótimo,
não? Só isso de República V. Ex.a é que
está meio ambíguo. Parece que a
República é de S. Ex.a. Não está certo. A República é de todos. Assim exige sua essência democrática. Assim sim fica
perfeito: República e V. Ex.a Bravo. Dr.
Washington Coelho
Penteado, senhora e filhos.
— Quinze
e novecentos.
— E eu
que ainda queria pôr uma citação!
Não
precisa. Como está muito bonito.
— É
bondade sua. Uma cousinha ligeira, feita às pressas...
Enquanto
o telegrafista declama os dizeres mais uma vez Washington Coelho Penteado passa
os quinze mil e novecentos réis.
Em plena
rodovia de repente o doutor murcha. Emudece. Dona Balbina que estava dorme-não-dorme espertou com o silêncio.
O doutor quieto. Mau sinal. Procurando
adivinhar arrisca:
— Que é
que deu em você? O preço do telegrama?
O gesto
deixa bem claro que isso de dinheiro não tem a mínima importância.
Dona
Balbina pensa um pouquinho (o doutor quieto) e arrisca de novo:
— Medo
que o chefe saiba que você usa o automóvel de serviço todos os domingos? Domingos e dias feriados?
O gesto
manda o chefe bugiar no inferno.
O
Chevrolet corre atrás dos marcos quilométricos.
Só ao
entrar em casa o doutor se decide a falar.
— Esqueci-me
de pôr o endereço para a resposta!...
—
I-DI-O-TA!
Olhem só
o gozo das crianças.
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Nota:
Alcântara Machado: "Laranja-da-China" (1928)
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