O
FILÓSOFO PLATÃO
(Senhor Platão Soares)
Fechou a
porta da rua. Deu dois passos. E se lembrou de que havia fechado com uma volta
só. Voltou. Deu outra volta. Então se lembrou de que havia esquecido a carta de
apresentação para o diretor do Serviço Sanitário de São Paulo. Deu uma volta na
chave. Nada. É verdade: deu mais uma.
— Nhana!
Nhana! Nhana!
Nhana
apareceu sem meias no alto da escada.
— Estou
vendo tudo.
— Ora vá
amolar o boi! Que é que você quer?
— Na
gaveta do criado-mudo tem uma carta. Dentro de um envelope da Câmara dos
Deputados. Você me traga, por favor. Não. Eu mesmo vou buscar. Prefiro.
— Como
queira.
E foi
buscar. Saiu do quarto e parou na sala de jantar.
— Ainda
tem geléia ai, Nhana?
— No
armário debaixo de uma folha de papel.
—
Obrigado.
Escolheu
cuidadosamente o cálice. Limpou a colherinha no lenço. Nhana ia passando com o
ferro de passar. Mas não se conteve.
— Platão,
Platão, você não vai falar com o homem, Platão?
— Calma.
Muita calma. Glorinha entregou o ordenado?
Nhana
sacudiu a cabeça:
— Sim
senhor!
Fingiu
que não compreendeu. Raspado o fundo do cálice lavou meticulosamente as mãos.
E enxugou sem pressa. Dedo por dedo. Abriu a porta. Fechou. Vinha vindo um bonde a duzentos
metros. Esperou. Agora o ônibus. Esperou.
Agora um automóvel do lado contrário. Esperou. Olhou bem de um lado. Olhou bem
de outro. Certificou-se das condições atmosféricas de nariz para o ar. Marcialmente
atravessou a rua.
O poste
cintado esperava os bondes com gente em volta. Platão quando ia chegando escorregou numa casca de laranja.
Todos olharam. Platão equilibrou-se que nem japonês. Encarou os presentes
vitoriosamente. Na lata, seus cretinos. Esfregou a sola do sapato na calçada e
foi esperar em outro poste. Chegou de cabeça
baixa.
— Boa
tarde, Platão.
— O
mesmo, Argemiro, como vai você?
— Aqui
neste solão esperando o maldito 19 que não
chega!
Platão
cavou um arzinho risonho. Acendeu um cigarro. Disse sem olhar:
— Eu
espero o ônibus da Light.
—
Milionário é assim.
Primeiro
deu um puxão nos punhos postiços. Depois respondeu:
— Nem
tanto...
O19 passou abarrotado. Argemiro não falava.
Platão sim de vez em quando:
— Esse é
um dos motivos por que eu prefiro o ônibus da Light apesar do preço. Tem sempre
lugar. Depois é um Patek.
Mas era
só para moer.
Argemiro
deu adeusinho e aboletou-se à larga num 19 vazio.
Então Platão soltou um suspiro e pongou o 13 que
vinha atrás.
Ficou no
estribo. Agarrado no balaustre. Imaginando desastres medonhos. Por exemplo:
cabeçada num poste. Escapando do primeiro no segundo. Impossível evitar. Era
fatal. Uma sacudidela do bonde e pronto. Miolos à mostra. E será que a Nhana
casaria de novo?
— O
senhor dá licença?
— Toda.
Não tinha
visto o lugar. Pois a mulher viu. Que danada. Toda a gente passava na frente dele. Triste sina. Tomava
cocaína. Ora que bobagem.
— Ô Seu
Platãozinho!
A voz do
Argemiro. Enfiou o rosto dentro do bonde.
— Ô seu
pândego!
O
cavalheiro do balaústre foi amável:
— Parece
que é com o senhor.
— Olá,
Argemiro, como vai você?
— Te
gozando, Platãozinho querido!
Resolveu
a situação descendo.
— Não tem nada de extraordinário, Argemiro. Não precisava lazer tanto escândalo. Homessa! Então eu sou obrigado a andar de ônibus só? E ainda por cima da Light? E não tendo dinheiro trocado no bolso? Homessa agora! Homessa agora!
— Até
outra vez, seu bocó!
Profunda
humilhação com o sol assando as costas.
Mas não é
que tinha de descer ali mesmo? Praça da República, Rua do Ipiranga, Serviço Sanitário. Esta agora é de
primeiríssima ordem. Argemiro sem querer fez um favor. Um grande? Um
grandérrimo.
Para a satisfação consigo mesmo ser completa só
faltava abrir o guarda-sol. Você não quer abrir desgraçado? Você abre,
desgraçado, amaldiçoado, excomungado. Abre nada. Nunca viu, seu italianinho de
borra? Guarda-sol, guarda-sol, não me provoque que é pior. Desgraçado,
amaldiçoado, excomungado. Platão heroicamente fez mais três tentativas.
Qual o quê. Foi andando. Batia duro com a ponteira na calçada de quadrados. De
vingança. Se duvidarem muito as costas já estão fumegando. Depois asfalto foi
feito ES-PE-CI-AL-MEN-TE para aumentar o calor da gente. Platão parou.
Concentrou toda a sua habilidade na ponta dos dedos. É agora. Não e não.
Vamos ver se vai com jeito. Guarda-solzinho de meu coração, abra, sim meu bem?
Com delicadeza se faz tudo. Você não quer mesmo abrir, meu amorzinho? Está bem.
Está bem. Paciência. Fica para outra vez. Você volta pro cabide.
Cabide é o braço. Que cousa mais engraçada.
Rua do
Ipiranga. Êta zona perigosa. Platão não tirava os olhos das venezianas. Só
mulatas. Êta zona estragada.
— Entra,
cheiroso!
— Sai,
fedida!
Que
resposta mais na hora, Nossa Senhora. É longe como o diabo esse tal de Serviço
Sanitário. Pensando bem.
— Boa tarde, Seu Platão, como vai o senhor? Ó Dona Eurídice, como vai passando a
senho... Ora que se fomente!
Olhou
para trás. Não ouviu. Que ouvisse. Parou diante da placa dourada. Sem saber se entrava
ou não. Não será melhor não? Tanta escada para subir, meu Deus.
O tição
fardado chegou na porta contando dinheiro.
— O
doutor diretor já terá chegado?
— Parece
que ainda não chegou, não senhor.
Aí
resolveu subir.
— O
doutor diretor ainda não chegou?
O
cabeça-chata custou para responder.
— Chegou,
sim senhor. Quer falar com ele?
— Ah, chegou?
O
cabeça-chata papou uma pastilha de hortelã-pimenta e falou:
— Agora é
que eu estou reparando... o Seu Platão Soares... Sim senhor, Seu Platão. Desta vez o
senhor teve sorte mesmo: encontrou o homem. Vá se sentando que o bicho hoje atende.
Platão
deu uma espiada na sala.
— Xi! Tem
uns dez antes de mim.
—
Paciência, não é?
Platão se
abanava com o chapéu-coco. Triste. Triste. Triste.
— Que é
que você está chupando?
— Eu? Eu
não estou chupando nada não senhor!
Platão
deu um balanço na cabeça.
— Sabe de
uma cousa? Aai!.. . Eu volto amanhã...
— O
senhor dá licença de um aparte, Seu Platão? Eu se fosse o senhor não deixava para amanhã não. O senhor já veio aqui
umas dez vezes?
— Não tem
importância. Eu volto amanhã.
— Admiro
o senhor, Seu Platão. O senhor é um FI-LÓ-SO-FO, Seu Platão, um grande
FI-LÓ-SO-FO!
— Até
amanhã.
— Se Deus
quiser.
Desceu a
escada devagarinho. Tirando a sorte. Pé direito: volto. Pé esquerdo: não volto. Foi descendo. Volto, não
volto, volto, não volto, vol.... to, não vol... to, vol... to! Parou. Virou-se. Mediu a
escada. Virou-se. Olhou a rua. É verdade: e o degrau da soleira da porta? Mais
um não-volto. Mais um. Porém para chegar até ele justamente um passo: volto. Ai
está. Azar. O que se chama azar. Platão retesou
os músculos armando o pulo. Deu. De costas na calçada. A mocinha que ia chegando
com a velhinha suspendeu o chapéu. A velhinha suspendeu o guarda-sol.
O chofer do outro lado da rua suspendeu o olhar. Platão Soares
finalmente suspendeu o corpo. Ficou tudo suspenso.
Até que Platão muito digno pegou o chapéu.
Agradeceu. Ia pegando o guarda-sol. A velhinha quis fechá-lo primeiro.
— Não, minha senhora! Prefiro assim mesmo aberto, por favor. Muito
agradecido. Muito
agradecido.
De
guarda-sol em punho deu uns tapinhas nas calças. Depois atravessou a rua. Parou diante do chofer. Cousa mais
interessante ver mudar um pneumático.
E não
demorou muito.
— Eu se
fosse o senhor levantava um pouquinho mais o macaco, não acredita?
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Nota:
Alcântara Machado: "Laranja-da-China" (1928)
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