domingo, 11 de agosto de 2013

Antônio de Alcântara Machado: "Guerra Civil"

GUERRA CIVIL 

Em  Caguaçu os revolucionários. Em São Tiago os legalistas. Entre os dois indiferente o rio Jacaré. O delegado regional de Boniteza mandara recolher as barcas e as margens só podiam mesmo estreitar relações no infinito. De dia não acontecia nada. Os inimigos caçavam jararacas esperando ataques que não vinham. Por isso esperavam sossegados. Inutilmente os urubus no vôo   lindo   deles   se   cansavam   indo   e   vindo   de   bico   esfomeado.   Os   guerreiros   gozavam   de perfeita saúde.

De noite tinha o silêncio. Qualquer barulho assustava. Os soldados de guarda se preparavam para   morrer   no   seu   posto   de   honra.   Mas   era   estalo   de   árvores.   Ou   correria   de   bicho.   A madrugada se levantava sem novidades. Por isso a luta entre irmãos decorria verdadeiramente fraternal.

Porém uma manhã chegou a Boniteza a notícia de que do lado de Caguaçu qualquer coisa de muito grave se preparava. Tropas marchavam na direção do rio trazendo canhões, carros de combate, grande provisão de gases asfixiantes comprada na Argentina, aeroplanos, bombas de dinamite, granadas de mão e dinheiro, todos esses elementos de vitória. Um engenheiro russo construiria em dois tempos uma ponte sobre o Jacaré e o resto seria uma corrida fácil até a capital do país. Desta vez a cousa iria mesmo.

Boniteza   se   surpreendeu   mas   não   se   acovardou.   Com   rapidez   e   entusiasmo   começou   a preparar tudo para a defesa. Ao longo do rio se abriu uma trincheira inexpugnável. Caminhões descarregaram   tropas   em   todos   os   pontos.   As   metralhadoras   foram   ajustadas,   os   fuzis engraxados, os caixotes de munições abertos. Costureiras solícitas pregaram botões nas fardas das praças mais relaxadas. Nas barbearias os vidros de loção estrangeira se esvaziaram na cabeça dos sargentos. Era de guerra o ar que se respirava.

A  noite encontrou  os combatentes  a postos. Na  trincheira  eles velavam  apoiados  nos  fuzis. Sentinelas  foram  destacadas  para  vigiar  a margem  inimiga.  Entre elas  o sorteado Leônidas Cacundeiro.

Era infeliz porque sofria de dor de dentes crônica, piscava sem parar e gaguejava. Foi para o seu posto de observação, deitou-se de barriga num cobertor velho. Só o busto meio erguido, ficou olhando na frente dele de fuzil na mão. Tinha ordens severas: vulto que aparecesse era mandar tiro nele. Sem discutir.

Leônidas Cacundeiro deu de pensar. Pensava uma cousa, o ventinho frio jogava o pensamento fora, pensava outra. Tudo quieto. Ainda bem que havia luar. Do alto da ribanceira ele examinava as   águas   do   Jacaré.   Ou   então   erguia   o   olhar   e   descobria   nas   nuvens   a   cabeleira   de   um maestro, um cachorro sem rabo, duas velhinhas, pessoas conhecidas.

Agora   o   frio   era   o   frio   da   madrugada.   O   Doutor   Adelino   costumava   dizer:   Quando   vocês sentirem frio pensem no Pólo Norte e sentirão logo calor. Pensou no Pólo Norte. Lembranças vagas   de   uma   fita   vista   há   muito   tempo.   Gelo   e   gelo   e   mais   gelo.   No   meio   do   gelo   um naviozinho encalhado. Homens barbudos, jogando fumaça pela boca, encapotados e enluvados, com cachorros felpudos. Duas barracas à esquerda. E aquela branquidão. Forçou bem o olhar. Um urso pardo com duas bandeirinhas. Um urso em pé com uma bandeirinha na pata direita, outra bandeirinha na pata esquerda. Nenhuma arma.

Deu um berro: - Alto!

Ficou em posição de tiro. O soldado não podia mesmo dar um passo à frente senão caía no rio. Começou a mexer com os braços. Levantava uma bandeirinha, abaixava outra, levantava as duas.

Leônidas pensou: - Que negócio será aquele?

Foi chamar o sargento. O sargento veio, olhou muito, disse: - Que negócio será aquele? Vá chamar o tenente!

Leônidas foi chamar o tenente, veio correndo com ele. O tenente limpou os óculos com o lenço de   seda,   verificou   se  o   revólver  estava  armado,   olhou   muito,   falou   coçando   a   nuca:   -  Que negócio será aquele? Vá chamar o major!

Leônidas partiu em busca do major. No acampamento não estava. Foi até Boniteza. Encontrou um cabo. O cabo mandou Leônidas bater na casa da viúva Dona Birigüi ao lado do Correio. O major apareceu na janela com má vontade. Resmungou: - Já vou. Leônidas comboiou o major até o rio, o major teve uma conferência com o tenente, subiu num pé de pitanga, falou lá de cima: - Que negócio será aquele? Vá chamar o comandante!

O anspeçada primeiro não queria acordar o comandante. Eram ordens. Leônidas insistiu firme e o comandante teve de pular da cama. Leônidas fazendo continência explicou o caso. O coronel disse:

- Às seis estou lá.

Eram cinco, Leônidas voltou com o recado. O major, o tenente, o sargento estavam nervosos. De   vez   em   quando   um   deles   chegava   mais   perto   da   margem   e   o   soldado   do   outro   lado recomeçava a ginástica: bandeirinha na frente, bandeirinha atrás, bandeirinha apontando o céu, bandeirinha apontando o chão. Ia repetindo com uma paciência desgraçada.

Então já havia passarinhos cantando, barulho de vida em Boniteza, só a cara amarrotada dos insones   não   resplendia   na   luz   da   manhãzinha.   Toques   de   cometa   chegavam   de   longe despedaçados.   Na   banda   de   lá   do   Jacaré   o   homem   da   bandeirinha   habitava   sozinho   a paisagem com uma vontade louca de tomar café bem quente e bem forte. Era a hora da raiva e todos se espreguiçavam com o sol que chegava.

O Coronel Jurupari ouviu calado a narração do estranho caso. Fez em seguida duas ou três perguntas hábeis com o intuito de esclarecê-lo tanto quanto possível. Chamou de lado o major e o   tenente,   os   três   discutiram   muito,   emitiram   suas   opiniões   sobre   assuntos   de   estratégia   e balística que pareciam oportunos naquela emergência, fumaram vários cigarros. Afinal o coronel entre o major e o tenente avançou até a margem de binóculo em punho. Assim que ele assentou o binóculo, da outra banda do Jacaré recomeçou a dança das bandeirinhas. O coronel olhando. A sua primeira observação foi: - É um cabo e não tem má cara. Depois de uns minutos veio a segunda: - Hoje é dor de cabeça na certa com este noroeste. A terceira alimentou ainda mais a já angustiosa incerteza dos presentes: - Mas que negócio será aquele? Daí a uns instantes repetiu: - Mas que diabo de negócio será mesmo aquele? Porém acrescentou numa ordem para o Leônidas: - Vá chamar o sinaleiro!

O sinaleiro veio chupando o nariz. Olhou, deu uma risadinha, tirou um papel e um lápis do bolso traseiro da calça, ajoelhou-se com uma perna só, pôs o papel na coxa da outra, passou a ponta do lápis  na língua,  começou a tomar nota. Dava uma espiada,  as bandeirinhas  se mexiam, escrevia. O Coronel Jumpari, o major, o tenente, o sargento e o sorteado Leônidas Cacundeiro esperavam o resultado de armas na mão e ansiedade nos olhos.

O   sinaleiro   se   levantou,   ficou   em   posição   de   sentido   e   com   voz   pausada   e   firme   leu   a mensagem enviada pelos revolucionários de Caguaçu: Saúde e Fraternidade.

O coronel mandou responder agradecendo e retribuindo. Ex-corde.
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Nota:
Antônio de Alcântara Machado: Contos Avulsos (obra póstuma, 1961)

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