GUERRA
CIVIL
Em Caguaçu os revolucionários. Em São Tiago os
legalistas. Entre os dois indiferente o rio Jacaré. O delegado regional de
Boniteza mandara recolher as barcas e as margens só podiam mesmo estreitar
relações no infinito. De dia não acontecia nada. Os inimigos caçavam jararacas esperando
ataques que não vinham. Por isso esperavam sossegados. Inutilmente os urubus no
vôo lindo deles
se cansavam indo
e vindo de
bico esfomeado. Os
guerreiros gozavam de perfeita saúde.
De noite
tinha o silêncio. Qualquer barulho assustava. Os soldados de guarda se
preparavam para morrer no
seu posto de
honra. Mas era
estalo de árvores.
Ou correria de
bicho. A madrugada se levantava
sem novidades. Por isso a luta entre irmãos decorria verdadeiramente fraternal.
Porém uma
manhã chegou a Boniteza a notícia de que do lado de Caguaçu qualquer coisa de muito
grave se preparava. Tropas marchavam na direção do rio trazendo canhões, carros
de combate, grande provisão de gases asfixiantes comprada na Argentina,
aeroplanos, bombas de dinamite, granadas de mão e dinheiro, todos esses
elementos de vitória. Um engenheiro russo construiria em dois tempos uma ponte
sobre o Jacaré e o resto seria uma corrida fácil até a capital do país. Desta
vez a cousa iria mesmo.
Boniteza se
surpreendeu mas não
se acovardou. Com
rapidez e entusiasmo
começou a preparar tudo para a
defesa. Ao longo do rio se abriu uma trincheira inexpugnável. Caminhões descarregaram tropas
em todos os
pontos. As metralhadoras foram
ajustadas, os fuzis engraxados, os caixotes de munições
abertos. Costureiras solícitas pregaram botões nas fardas das praças mais
relaxadas. Nas barbearias os vidros de loção estrangeira se esvaziaram na cabeça
dos sargentos. Era de guerra o ar que se respirava.
A noite encontrou os combatentes a postos. Na
trincheira eles velavam apoiados
nos fuzis. Sentinelas foram
destacadas para vigiar
a margem inimiga. Entre elas
o sorteado Leônidas Cacundeiro.
Era
infeliz porque sofria de dor de dentes crônica, piscava sem parar e gaguejava.
Foi para o seu posto de observação, deitou-se de barriga num cobertor velho. Só
o busto meio erguido, ficou olhando na frente dele de fuzil na mão. Tinha
ordens severas: vulto que aparecesse era mandar tiro nele. Sem discutir.
Leônidas
Cacundeiro deu de pensar. Pensava uma cousa, o ventinho frio jogava o
pensamento fora, pensava outra. Tudo quieto. Ainda bem que havia luar. Do alto
da ribanceira ele examinava as
águas do Jacaré.
Ou então erguia
o olhar e
descobria nas nuvens
a cabeleira de um
maestro, um cachorro sem rabo, duas velhinhas, pessoas conhecidas.
Agora o
frio era o frio
da madrugada. O
Doutor Adelino costumava
dizer: Quando vocês sentirem frio pensem no Pólo Norte e
sentirão logo calor. Pensou no Pólo Norte. Lembranças vagas de
uma fita vista
há muito tempo.
Gelo e gelo
e mais gelo.
No meio do
gelo um naviozinho encalhado.
Homens barbudos, jogando fumaça pela boca, encapotados e enluvados, com
cachorros felpudos. Duas barracas à esquerda. E aquela branquidão. Forçou bem o
olhar. Um urso pardo com duas bandeirinhas. Um urso em pé com uma bandeirinha
na pata direita, outra bandeirinha na pata esquerda. Nenhuma arma.
Deu um
berro: - Alto!
Ficou em
posição de tiro. O soldado não podia mesmo dar um passo à frente senão caía no
rio. Começou a mexer com os braços. Levantava uma bandeirinha, abaixava outra,
levantava as duas.
Leônidas
pensou: - Que negócio será aquele?
Foi
chamar o sargento. O sargento veio, olhou muito, disse: - Que negócio será
aquele? Vá chamar o tenente!
Leônidas
foi chamar o tenente, veio correndo com ele. O tenente limpou os óculos com o
lenço de seda, verificou
se o revólver
estava armado, olhou
muito, falou coçando
a nuca: - Que
negócio será aquele? Vá chamar o major!
Leônidas
partiu em busca do major. No acampamento não estava. Foi até Boniteza.
Encontrou um cabo. O cabo mandou Leônidas bater na casa da viúva Dona Birigüi
ao lado do Correio. O major apareceu na janela com má vontade. Resmungou: - Já
vou. Leônidas comboiou o major até o rio, o major teve uma conferência com o
tenente, subiu num pé de pitanga, falou lá de cima: - Que negócio será aquele?
Vá chamar o comandante!
O
anspeçada primeiro não queria acordar o comandante. Eram ordens. Leônidas
insistiu firme e o comandante teve de pular da cama. Leônidas fazendo
continência explicou o caso. O coronel disse:
- Às seis
estou lá.
Eram
cinco, Leônidas voltou com o recado. O major, o tenente, o sargento estavam
nervosos. De vez em
quando um deles
chegava mais perto
da margem e
o soldado do
outro lado recomeçava a
ginástica: bandeirinha na frente, bandeirinha atrás, bandeirinha apontando o
céu, bandeirinha apontando o chão. Ia repetindo com uma paciência desgraçada.
Então já
havia passarinhos cantando, barulho de vida em Boniteza, só a cara amarrotada
dos insones não resplendia
na luz da
manhãzinha. Toques de
cometa chegavam de
longe despedaçados. Na banda
de lá do
Jacaré o homem
da bandeirinha habitava
sozinho a paisagem com uma
vontade louca de tomar café bem quente e bem forte. Era a hora da raiva e todos
se espreguiçavam com o sol que chegava.
O Coronel
Jurupari ouviu calado a narração do estranho caso. Fez em seguida duas ou três perguntas
hábeis com o intuito de esclarecê-lo tanto quanto possível. Chamou de lado o
major e o tenente, os
três discutiram muito,
emitiram suas opiniões
sobre assuntos de
estratégia e balística que
pareciam oportunos naquela emergência, fumaram vários cigarros. Afinal o
coronel entre o major e o tenente avançou até a margem de binóculo em punho.
Assim que ele assentou o binóculo, da outra banda do Jacaré recomeçou a dança
das bandeirinhas. O coronel olhando. A sua primeira observação foi: - É um cabo
e não tem má cara. Depois de uns minutos veio a segunda: - Hoje é dor de cabeça
na certa com este noroeste. A terceira alimentou ainda mais a já angustiosa
incerteza dos presentes: - Mas que negócio será aquele? Daí a uns instantes repetiu:
- Mas que diabo de negócio será mesmo aquele? Porém acrescentou numa ordem para
o Leônidas: - Vá chamar o sinaleiro!
O
sinaleiro veio chupando o nariz. Olhou, deu uma risadinha, tirou um papel e um
lápis do bolso traseiro da calça, ajoelhou-se com uma perna só, pôs o papel na
coxa da outra, passou a ponta do lápis
na língua, começou a tomar nota.
Dava uma espiada, as bandeirinhas se mexiam, escrevia. O Coronel Jumpari, o
major, o tenente, o sargento e o sorteado Leônidas Cacundeiro esperavam o
resultado de armas na mão e ansiedade nos olhos.
O sinaleiro
se levantou, ficou
em posição de
sentido e com
voz pausada e
firme leu a mensagem enviada pelos revolucionários de
Caguaçu: Saúde e Fraternidade.
O coronel
mandou responder agradecendo e retribuindo. Ex-corde.
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Nota:
Nota:
Antônio de Alcântara Machado: Contos Avulsos (obra póstuma, 1961)
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