PERDIDO
Quando ouviu ao longe, no campanário da freguesia, bater
meia-noite, entreabriu de mansinho a porta da choupana e escutou por longo
tempo. Nem um sussurro!... Tudo dormia àquela hora.
Saiu e, pé ante pé, com a enxada ao ombro, aproximou-se da
aldeia, que tinha de atravessar. Tudo era silêncio; apenas, muito ao longe,
junto à fonte, uma rã solitária coaxava tristemente.
A lua no minguante alumiava com uma serenidade triste umas
30 ou 40 casas, dispostas no fundo do vale, ao acaso, entre os choupos da beira
do riacho e os últimos pinheiros da mata, que descia pela encosta em pujante
vegetação sombria.
Pelas fendas das portas mal cerradas, ouvia-se por vezes o
profundo ressonar compassado dos homens de trabalho. Então parava de ouvido à
escuta, olho à espreita, com um pé para diante, o outro para trás, posto de
bico, pronto para a retirada. E, quando tudo outra vez caía no primitivo
silêncio, tornava a caminhar devagarinho, sempre cauteloso, sobressaltado, de
olhar desconfiado, como se fosse cometer um crime.
Grossos rolos de nuvens pardacentas, com largas nódoas
escuras, onde a lua, numa carreira seguida, mergulhava enchendo o campo de
trevas, começaram deixando cair grossos pingos d’água sobre a rama dos
pinheiros.
O vento soprava rijo do sul e toda a serra soltava gemidos
dolorosos, fantásticos, em meio do sussurro da folhagem.
À medida que a encosta se ia elevando, cerrava-se mais e
mais o pinhal. A chuva engrossara, e por entre as ramas mal coava um ou outro
raio de luar, iriando, como pérolas transparentes, as gotas d’água, que
tremeluziam no extremo das agulhas.
Era no alto da serra que o seu tesouro junto pouco a
pouco, desde tantos anos, fora escondido. Vinha aumenta-lo naquela noite, vinha
palpá-lo, tomar-lhe o peso, tendo como únicas testemunhas de prazer tamanho o
céu de temporal e os pinheiros a gemerem.
***
Subitamente estacou. Na claieira, ao meio do pinhal, era a
choupana do guarda. Ouvira um choro de criança e uma voz triste de mulher a
cantar.
O avarento aproximou-se pé ante pé.
— fome que o pequeno tem — dizia a mulher com a voz cheia
de lágrimas, interrompendo o canto. — Se eu não comi!... Secou-se-me o leite.
E chorava.
Aquela mulher pedira-lhe esmola lia véspera. Pedira- lhe
esmola!... Tinha fome, dizia. E ele?... Tinha frio. E ele? O filho
definhava-se, desde que o marido dela adoecera. Pedira-lhe esmola, como se lhe
fora possível, a ele, dar um pedaço da sua alma. Era idiota a mulher!
Mas ao som daquela voz estremeceu, porque ela, doida,
ofendida pela recusa, desgrenhada, olhos injetados, chamara-lhe de ladrão,
assassino, pondo-lhe os punhos cerrados ao pé da cara.
— Hão de tudo roubar-te um dia, e tu, cão, hás de chorar,
em cima da cova onde escondeste o dinheiro, esfregando a cara na lama. .
ladrão!
E só a idéia de poder m dia ser assassinado, roubado, que
vinha a dar na mesma, fez-lhe passar pela espinha um calafrio, que lhe eriçou
todos os pelinhos do corpo.
Afastou-se da choça, para longe afugentar aquela idéia
soturna; mas poucos passos andara, quando lhe pareceu ouvir o rachador, com uma
voz fraca de tísico, entrecortada pela tosse, pronunciar-lhe o nome.
Novamente estacou e ficou-se boquiaberto, respirando a custo, de ouvido a escuta, sentindo bater acelerado o coração.
Calara-se tudo na choça e apenas por vezes o vento
arrastava pelo pinhal afora uns tristes gemidos de criança, já falta de forças
e farta de sofrer.
Tentariam aqueles roubá-lo?
E estremecendo, cheio de susto, deitou a correr pelo
pinhal afora, deixando o vento levar-lhe o chapéu esburacado e remoinhar-lhe
nas longas farripas grisalhas, largando aos bocados nos tojos e nas silvas os
tristes farrapos que o cobriam, escorregando na caruma, agarrando-se aos
pinheiros, que sacudidos o encharcavam, a correr, a correr por ali afora, até
ao alto da serra, onde se deixou cair extenuado ao pé dum enorme pinheiro
manso, seco, que sobre um rochedo escalvado atirava para o ar os longos braços de
espectro.
Era ali o seu tesouro.
***
Longo tempo ficou estirado, de bruços, sobre os fetos
úmidos, arquejando longamente. Depois, criando ânimo, mostrando força
inacreditável em corpo tão franzino, com os braços ósseos erguendo alto a
enxada e deixando-a depois cair com um esforço, que lhe arrancava do peito
cavado um gemido a cada enxadada, começou a cavar, a cavar, até que finalmente
o ferro bateu de encontro ao ferro.
Então afastou a terra, ajoelhou, debruçou-se com avidez
sobre a cova, meteu-lhe dentro as mãos e, arquejante, fazendo um esforço
supremo, com um ah! de vitória, puxou a si o cofre, que, rolando no chão,
produziu um som criador do êxtase.
Riu-se alto, enlevado. Depois ergueu-se e com a manga da
jaqueta limpou o suor que lhe escorria pela testa.
Ali estava o seu tesouro!... Seu!
E olhava para o cofre, com ternura, sorrindo-se com uma
lagrimazinha no olho, abaixando-se para sopesá-lo.
Queriam roubá-lo talvez! Abraçava-se ao dinheiro, com o
olhar luzente duma fera, sentindo nas entranhas uma coragem enorme para
defendê-lo como nunca loba defendeu um filho.
Podia alguém ter desconfiado do lugar onde o escondera...
Era muito noite, ainda teria tempo de sobra para levá-lo dali. Felizmente não
lhe eseasseavam forças. Querido tesouro da sua alma, junto moeda a moeda!
E, outra vez deitado sobre o cofre, abraçava-o, beijava-o,
como se outra alma lá dentro houvesse de perceber a dele; pedia-lhe, cheio de
ternura, que não se deixasse roubar, que era vida, sangue de seu coração!
Os pinheiros úmidos tornavam balsâmica a atmosfera. Os
raios oblíquos da lua quebravam as sombras das árvores nos troncos das outras e
as sombras das copas bailavam, fantásticas, sobre os fetos molhados.
E ele ali, tão sozinho com seu tesouro! Havia tanto que
lhe não punha os olhos!
Sentando-se numa pedra, aproximando o cofre, com um
esforço enorme, fez girar a tampa nos gonzos ferrugentos e queixosos.
O luar, entre dois farrapos de nuvens, encheu o cofre de
faíscas de ouro. E o avarento, em êxtase, fechou os olhos, como encandeado por
tanta luz!
O vento cessara de repente e no instante em que o temporal
tomou fôlego, um grito de dor, estrídulo, repetido ao longe, ainda mais
dolorosamente, pelo eco da montanha empinada, partiu da choça do rachador.
Eram eles com certeza!... Eram os ladrões!
Ergueu-se abraçado ao tesouro, transido de medo, suando
frio. E depois, espavorido, deitou a fugir, esbarrando nos pinheiros, deixando
a carne nos esgalhos, caindo, agarrado ao cofre, sobre os seixos agudos, e
levantando-se logo para correr outra vez, correr sempre, para fugir do grito,
que, ameaçador, o perseguia.
E toda a noite durante, andou fugido, em correrias pelo
pinhal, já nem sabia por onde. E o sangue e o suor corriam-lhe pela cara.
Quando o luar começava esmorecendo ajoelhou meio
desfalecido, e com as unhas agudas, recurvas, abriu uma cova funda, onde, com
esgares de doido enterrou o dinheiro, longe, muito longe, donde estava dantes.
Tapou tudo e, por instinto de precaução, puxou-lhe os fetos para cima. E abalou
outra vez.
Era manhã quando chegou a casa extenuado, esfarrapado todo,
com os cabelos agarrados às faces gotejando sangue, ardendo em febre. Deixou-se
cair no catre nojento.
O dia rompia sereno. O vento abrandara e só por detrás da
serra é que as nuvens azuladas sombreavam intensamente o fundo da paisagem, em
que destacavam alvejantes as casarias. O sol erguia-se esplêndido, enchendo os
campos de jóias cintilando no escrínio de verdura. A aldeia acordara num banho
de luz, cheia de bulícios, de cantos de galos e risos de crianças. Pelas
chaminés subia uma colunazinha de fumo azulado, transparente, que a enchia do
cheiro bom, alegre, do pinho queimado nas lareiras, aquecendo os almoços.
Quando o homem voltou a si, depois de muitas horas de
cruel delírio, apenas intervalado por curtos sonos cheios de pesadelos, um
pesadelo ainda lhe pareceu a lembrança confusa de toda aquela noite agitada.
Viu-se percorrendo o pinhal imenso, que gemia e dançava
lugubremente, estorcendo-se no temporal como um condenado na fogueira.
Lembrou-se do grito que o perseguira. E logo se viu sujo de sangue, com as
unhas despegadas do sabugo, o corpo cheio de nódoas negras, os joelhos
escalavrados.
Mas onde enterrara o seu ouro?
Passava a mão pela testa, apertando as fontes, tentando
recordar o sítio, a forma dalgum pinheiro, o caminho que seguira. Sentou-se no
catre, rasgando com as unhas lascadas a carne magra do peito, trêmulo, suando
frio.
Levantou-se e atravessou a aldeia aos bordos, com a vista
desvairada, a boca torta, ameaçando com a mão de esqueleto as mulheres sentadas
às portas das casas, vigiando os pequenos, que brincavam, no riacho, tostando ao
sol os ventrezinhos redondos e as cabecinhas loiras.
E o pinhal até onde a vista se alongava sombreava os
montes por ali afora! Ali estava o seu tesouro, ali debaixo duns fetos, cujas
hastes se abriam à sombra duns pinheiros, fetos e pinheiros todos iguais
naquela imensidade!
Outra vez, arquejante, mal sustendo-se nas pernas, trepou
e desceu encostas, procurando pegadas, querendo lembrar-se, serenar, passando a
mão pela testa com gestos de desespero, como tentando arrancar do cérebro a
loucura, que, pouco a pouco, o invadia!
Quase noite foi dar à choça do rachador.
Lembrou-se então que dali partira o grito que o
amedrontara e, escumando de raiva, atirou-se contra a porta, berrando:
— Ladrões! Ladrões!
No meio do quarto estava a criança deitada sobre uma
caminha de fetos, pálida, mirrada, as mãozinhas de cera atadas sobre o peito
com uma fita velha de seda roxa.
E o pai e a mãe, ao lado do cadáver do filho, choravam
mansamente.
O avarento parou no limiar da porta, alumiado pelo último
vislumbre da razão.
Recuou instintivamente e foi cair sobre um grande molho de
achas, dizendo palavras desencadeadas, com os olhos esgaseados, doido de todo e
para sempre.
E por diante dele passavam bandos alegres de pintassilgos
fugindo para os ninhos, levando nos bicos os farrapos da jaqueta, que ele
deixara nas silvas do pinhal enquanto os gaios contentes, aquecendo-se ao
último raio de sol daquela tarde de primavera, soltavam, pulando de ramo em
ramo, grandes gargalhadas irônicas.
---Nota:
Texto-fonte: D. João da Câmara. Contos, 1900, extraído da edição de 1974 da Editora Três
---Nota:
Texto-fonte: D. João da Câmara. Contos, 1900, extraído da edição de 1974 da Editora Três
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