sábado, 13 de abril de 2013

D. João da Câmara: "Adastra"


ADASTRA

Quando o tio Bernardo, deitando o barrete de peles para o lado, começava a apontar para o teto as nuvens de fumo do negro cachimbo de gesso, escusado era falar-lhe; só rosnava em resposta um dito de mau humor ou, quando muito, um disparate. Estava pensando no Brasil, no seu Brasil, como lhe ele chamava.

E era tratar de não fazer bulha, enquanto ele, sorrindo para os florões do teto, recordava cenas da mocidade, temporais vencidos pelo arrojo, amores de mulatas, muito ouro ganho num só bafejo da sorte.

— O tio Bernardo está no Brasil — dizíamos nós baixinho.

E, quando o cachimbo se lhe apagava, olhava para nós a rir, sacudindo a cinza na unha rugada e negra:

Cá me embarquei eu outra vez! Demônio de tabaco! Este diabo vem de lã... Não sou capaz de fumá-lo sem que logo me ponha a sonhar... Estava pensando agora...

E começava uma história por nós ouvida mil vezes. Eu e minha irmã saíamos nos bicos dos pés, e ele concluía-a, dirigindo-se a minha pobre mãe, que sentada na poltrona de  tábua, já sem feitio, pouco a pouco adormecia serenamente.

É com lágrimas nos olhos que, depois de tantos anos, me recordo desses tempos.

A nossa casa era a mais risonha de toda a vila.

Ainda me alegra relembrá-la, no alto dos rochedos, sobranceira ao mar. Muito pequena, mas sempre muito caiada, davam-lhe certo ar as gelosias verdes das janelas. Tinha em volta uma cercadura de ninhos, e todas as  manhãs, no verão, acordava ouvindo cantar as andorinhas. No inverno era mais triste. Quando havia temporal, as ondas salpicavam os vidros e minha irmã pequenina, assustada como um pardal, escondia a cabecinha loira debaixo do xale de minha mãe, que sentada à lareira, lembrando-se do marido e do filho mais velho, que andavam sobre as águas do mar, rezava o credo-em-cruz.

Não éramos dos mais infelizes; nunca soube o que era miséria. Depois que o tio Bernardo chegou, houve até sempre, lá em casa, um certo luxo, uma certa despreocupação pelo dia seguinte.

É que o tio, além de vir dono dum caique, trazia consigo uma caixinha de ferro cheia até cima de muito boas libras.

Meu pai, que viera com ele como piloto, pouco tempo se demorou conosco.

O tio Bernardo disse-lhe, uma noite, depois da ceia:

Olha, irmão; o que ali está... (e apontava para a tal caixinha) o que ali está chega-me para aqui poder acabar sossegadamente os meus dias. Sabes que mais? Dou-te de presente o caique. Não tenhas cuidado na mulher e nos filhos. O teu mais velho tem 15 anos; que vã contigo. Vai, e sê tão feliz, como eu fui.

Era sina de todos — o mar. Os mais desgraçados eram pescadores; os outros quase todos partiam para o Brasil; alguns voltavam pilotos, alguns comandando por sua conta; eram os mais felizes. Alguns também... nunca voltavam.

E era a lembrança destes que tornava tão triste a lareira nas longas noites de inverno, quando uivava o temporal.

***

Um dia parti para a escola um bocado mais cedo que o costume, porque no quintal do padre prior, tinha visto uma figueira deitar por cima do muro, para o lado do caminho, um dos ramos todo cheio de figos brancos, tentadores.

O mestre, ou porque desejasse lisonjear o tio Bernardo ou porque na verdade eu me atirasse ao estudo um pouco mais que os outros, quando ao domingo, depois da missa, nos encontrava a passear na praça, nunca deixava de me dizer, tocando-me com dois dedos na cara:

— Ah! que se o tio quisesse... havias de ir longe.

Eu não sabia o que ele queria dizer com aquele ir longe. Lembrava-me logo do Brasil. Mas por que motivo eu e não os outros?

Naquele dia, quando já de vara na mão me dispunha a roubar quatro figos ao prior, ouvi de repente a voz de meu tio. Senti um calafrio pela espinha.

— Olá, rapaz! que andas por aí a mariolar, em vez de ires direito para a escola?

Voltei-me todo assustado e vi-o à janela do prior, que, felizmente para mim, desatou às gargalhadas.

— Espera ai, que te quero falar.

Esperei, mas quando chegou ao pé de mim, apesar de ele nunca me ter batido, com as duas mãos tapei as orelhas e a nuca.

O tio Bernardo pôs-se a rir.

— Não tens vergonha...!

Começou andando ao meu lado muito depressa. Às vezes parava limpando o suor.

— Sabes o que vou fazer? — perguntou-me.

Vou ver se o teu mestre diz verdade. Quero um dia assistir à escola.

Tremeram-me as pernas. Se ainda depois de me ter apanhado a roubar os figos, me fosse ver a atrapalhar-me à pedra! Fiz a promessa duma vela de cera à Senhora dos Milagres e, com mais alguma confiança, entrei na escola e fui pedir a bênção do mestre.

Chegamos um nadinha tarde. Estava o Patrício à pedra.

O tio Bernardo fez um sinal para que ninguém se incomodasse e sentou-se ao pé do professor. Eu caminhei gravemente para o meu lugar.

O Patrício, coitado, que estenderete!

Parece-me ainda estar a vê-lo com as calças de quadradinhos, remendadas, muito curtas, a barriguinha muito redonda, o que lhe dava um aspectozinho grave, a camisa de pano cru aberta sobre o peito, e dois bocados  de ourelo a servirem de suspensórios. Com as mãos nas algibeiras, os olhos muito injetados, e as asas do nariz a tremerem, ouvia contendo o mau gênio, a rabecada do mestre.

Não foi nunca dos mais felizes, coitado! Por ali ficou sempre. Tem quatro ou cinco medalhas ao peito e todos os dias a fome em casa.

O senhor... — disse o mestre apontando para mim.

Ergui-me e, pegando no giz, acabei com desembaraço a conta, que tanto atrapalhava o Patrício.

— Muito bem. Tire a prova dos nove. E o que eu digo — murmurou quando acabei. — Hás de ir muito longe.

O tio Bernardo pediu ao mestre que me fizesse algumas perguntas. A todas respondi com muito ânimo e desembaraço.

— D. Afonso Henriques, o Conquistador, d. Sancho I, o Povoador, d. Afonso II, o Gordo...

A história toda.

— Muito bem. Pode sentar-se.

O tio levantou-se, dizendo-me:

— Estou contente contigo, rapaz.

E saiu.

Ao jantar reparei que o tio Bernardo e minha mãe deviam de ter falado a meu respeito. Apenas eu abria a boca, olhavam um para o outro e tossiam com certo ar misterioso. Minha mãe teve alternativas de alegria e de tristeza.

Quando a via rir, pensava:

— O tio falou-lhe na lição.

E, quando a ouvia suspirar, lembrava-me dos figos. Se ela soubesse...!

Quando o jantar acabou, o tio Bernardo chamou-me e disse-me:

— Ouve cá. Tu tens uma cara séria e o teu mestre, que deve ser nisso entendido, diz que dentro tens mais alguma coisa do que os outros.

E batia-me com os nós dos dedos na cabeça.

Eu estava radiante de alegria.

— Além disso tens os pulsos muito fraquitos, e isso é o diabo para um homem do mar.

A conversação tomava de repente para mim um caminho inesperado. Se os pulsos eram fracos e isso era o diabo para um homem do mar, que me importava o que o mestre dizia que eu tinha dentro da cabeça?

Olhei para minha mãe. Minha mãe sorria.

— Ainda agora — continuou meu tio — estive a conversar com o padre prior a teu respeito. Aquilo é que é vida, meu filho: padre!

— Não quero! — respondi, dando um murro em cima da mesa. — Não quero ser padre.

— Ninguém te obriga, rapaz. Há outras vidas tão boas ou melhores até. Médico, por exemplo.

— Não quero.

E, desviando os olhos para o lado da janela, vi lá onde o céu vai dar Um beijo no mar, uma velazinha alvejando, que me pareceu do meu partido e a gritar-me lá de longe:

— Fazes muito bem. Não queiras ser médico, não queiras ser padre. Olha para mim. Cá dentro vai a ventura!

— Pois não queiras! — gritou meu tio.

E começou a passear pelo quarto, puxando grandes fumaças.

Eu, espantado do meu atrevimento, tinha baixado tristemente os olhos e, muito amuado, coçava a cabeça.

— Lá no colégio, tens tempo de sobra, para te resolveres — disse meu tio por fim, parando diante de mim. — Amanhã vais comigo para Lisboa.

Lisboa!

Soou-me o nome aos ouvidos como palavra mágica.

Lisboa! Ia partir para Lisboa, que nunca tinha visto, mas cujo só nome despertava na imaginação sonhos encantadores, prodígios de riqueza, mansões de fadas!

Ergui a cabeça, tão cheio de alegria, que até me pus a rir de rijo!

Olhei para minha mãe. Coitadinha, chorava.

— Vamos — disse o tio, batendo-me com a mão no ombro. — Vai vestir o teu fatinho preto, que tens que despedir-te desta gente!

Lisboa! Lisboa!

Eu bem via as lágrimas da minha mãe, mas este grito da minh’alma calava-me o coração.

Fui despedir-me do mestre-escola que, adiante de todos, me deu um valente abraço dizendo-me:

— Continua assim, meu rapaz. Sic itur ad astra!

Eu, muito envergonhado, para fazer alguma coisa, bafejava a pala do boné e limpava-a depois à manga da jaleca.

Ficou-me o latinório no ouvido. Anos depois encontrei-o... Boa vontade não te faltava, querido mestre!

À noite, depois da ceia, o tio Bernardo julgou dever discursar.

— Quando às vezes me esqueço para aí horas inteiras a fumar cachimbo, vocês põem-se a rir e dizem: “Lá está o tio Bernardo no Brasil!...” Pois bom é que saibas, antes que o aprendas à tua custa: nem tudo são rosas na vida. E no mar os espinhos são muitos. A gente volta, chega a casa, esquece tudo. Quantas vezes o diabo não levou a cardada! O que passou, passou; olha a gente para trás e só vê aquilo de que tem saudades: por isso nunca falo de fomes, de privações, de perigos... Não te dê desgosto não ser homem do mar. Andar sobre as ondas é tentar a Deus.

Não sei que mais me disse ainda o tio Bernardo para me provar que, desde que eu voltava costas ao oceano e marchava para Lisboa, era o ente mais feliz do mundo. Bem lhe dispensava o sermão. Já me via homem, voltando para a terra, de relógio e berloques, apertando na praia, depois do banho, as mãozinhas das senhoras, fumando o meu charuto, tratando o administrador por tu e o prior por você.

— Agora, rapaz, vai deitar-te e pede a bênção à tua mãe.

Então, não sei por que, senti de repente um nó na garganta e eu, que tão pouco me lembrara dela, foi a soluçar que lhe caí nos braços. Ela apertou-me contra o peito, muito, muito, até me fazer doer, e dando-me um beijo muito longo, disse-me um adeus tão sumido, tão sumido que quase o não ouvi.

No dia seguinte, ao romper da manhã, eu e o tio Bernardo, ambos na almofada da diligência, partíamos caminho de Lisboa.

***

Quando, depois de bacharel e de muito tempo gasto a escrever cartas e procurar empenhos, consegui finalmente ser admitido como amanuense nos próprios nacionais, telegrafei a minha mãe, que na resposta me participou a chegada de meu pai.

Não se calcula a alegria com que parti.

Havia três anos que não via o querido velho, que só de longe em longe vinha a Portugal matar saudades.

Estávamos então no princípio do inverno e um denso nevoeiro espalhava-se sobre o mar. Ainda longe da vila, já ouvia o sino da Senhora dos Milagres tocando aflitamente para indicar o porto aos que andavam fora.

— O José Sacrista, coitado — disse-me o cocheiro — tem o filho lá no mar e desde ontem de manhã que está agarrado à corda do sino.

Foi talvez o nevoeiro, ou foi aquele sino tão aflito, ou talvez dó do sacrista, que fez com que me apeasse da diligência, levando opresso o coração.

No caminho de casa encontrei o mestre-escola que me veio abraçar todo trêmulo, cheio de brancas, abordoado a uma bengala.

— Parabéns, muitos parabéns. Eu bem te dizia.

Não pude deixar de sorrir-me.

— Que pena — continuou — vires em ocasião tão triste!

— O quê?

— Não sabes?... Valha-me Deus! O tio Bernardo...

— Morreu? — perguntei ansioso.

— Não, felizmente ainda não. Venho de lá agora. Mas está tão mal...

Não ouvi mais e desatei a correr.

Estavam todos reunidos no quarto do tio.

Quando entrei, abriu os olhos e disse:

— É tu! ainda bem que vieste. Deu-me o caruncho. Tinha pena de morrer sem tornar a ver-te. Já sei que estás amanuense, Sou um homem rude, não sei o que isso é; mas deve ser... muito! Foste longe.

Esteve um momento calado, respirando a custo e depois continuou:

— O teu irmão foi menos feliz. Nasceu forte, foi para o mar. O teu pai já está farto de andar por esses oceanos e deu-lhe o caique.

Olhei para meu irmão, Estava hercúleo.

Uma barba negra, muito espessa, descia-lhe até o meio do peito. Um pesado grilhão de ouro caía-lhe do pescoço até ao ventre redondo. Meu tio fitou por um instante em mim os olhos já embaciados, e sorrindo:

— Olhem que mãozinhas! Não vivias no mar dois dias. Tive razão. Enfim, graças a Deus, fiz todos felizes.

Fechou os olhos e esteve assim por muito tempo, arquejando. Quando tornou a abri-los, procurou-me com a vista:

— Tenho pensado muito em ti... Como é o latinório do mestre?

Não sabia o que ele queria dizer... Depois lembrou-me de repente.

Sic itur ad astra.

Ad astra, ad astra! T: — repetiu maquinalmente.

E com os olhos vidrados fitando os florões do teto, ficou-se a sorrir, como se Deus o houvera levado para um Brasil ideal.


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Nota
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Texto-fonte: D. João da Câmara. Contos, 1900, extraído da edição de 1974 da Editora Três


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