quarta-feira, 3 de abril de 2013

D. João da Câmara: "O Paquete"


O PAQUETE

Era no fim da azinhaga — uma azinhaga estragada pelas chuvas do inverno e tendo ainda marcada na lama seca a passagem do último carro de bois. Dum lado e de outro velhas piteiras misturavam a cor verde-claro das largas folhas carnosas com o verde-escuro, quase negro, das silvas e pilriteiros; de espaço a espaço erguiam-se algum sobreiro decrépito, faias brancas e prateadas, loureiros embalsamando o ar com o cheiro forte e bom das longas folhas agudas.

No fim erguia-se a casa com o seu aspecto senhoril.

A hera apoderara-se do exterior e, aproveitando as fendas que o tempo abrira, espreguiçando-se sobre o leito do velho musgo amarelo que revestia cada pedra da parede, ia unir as suas folhas delicadas aos cachos de arroz que desciam em elegantes pirâmides das beiras do telhado.

Uma pequena escada, seis ou sete degraus gastos, abalados, partidos, conduzia do pátio ao vestíbulo do palácio.

Sobre o portão, cuja tinta gretada pelo sol caíra pouco a pouco, ostentava-se, comido pelo tempo, o brasão da família, sobre o qual ameaçava ruína uma grande coroa de conde transformada em coito de lagartixas.

Os vidros enegrecidos e apenas translúcidos tremiam de velhice nos caixilhos de chumbo.

Pelo pátio, nos interstícios das pedras, crescia livremente a erva, e a um canto um ralo juntava as estrídulas melodias ao monótono coaxar das rãs do pântano vizinho.

O conde estava na livraria sentado numa velha poltrona de couro com pregos de metal. Tinha na mão um livro latino, que lia atentamente.

A livraria era uma vasta sala alumiada por três janelas de grande vão.

Avistava-se ao longe a aldeia com seu campanário branco, suas casinhas bem caiadas, e os cimos dos choupos erguendo-se acima dos telhados e indicando a estrada que a atravessava conduzindo de uma vila a outra.

Entre as janelas e as portas estavam as estantes com os grandes in-fólios amarelos, os grossos dicionários e as obras clássicas latinas, portuguesas e francesas.

A parede fronteira às janelas, por cima da chaminé de mármore branco, era ocupada pelo retrato do avô do conde. Era um homem alto, bem feito, simpático. Estava vestido á época de d. João V. Tinha uma das mãos nos copos da espada, as suas comendas ao peito e uma sombra esquisita, forte, brutal, na metade do nariz do lado esquerdo. A moldura deixara cair o dourado e estava rendilhada pelo caruncho. A um canto uma aranha tecera a teia e esperava pela presa, escondida num rasgão da tela.

O sol descia e o conde, para lhe aproveitar os últimos raios, puxara a cadeira para o vão da janela e, com o livro sobre o joelho, o cotovelo sobre a perna trançada e a testa enconstada à mão, lia atentamente uma passagem de Suetônio.

O crepúsculo foi invadindo a sala. O sol, depois de ter com o último raio brincado um instante na testa veneranda do avô comendador, desceu para detrás do cabeço, e as grandes sombras dos montes fundiram-se pouco a pouco numa tinta geral.

O conde fechou o livro sobre o índex e pôs-se a contemplar a aldeia.

O vento do norte entrando pelas fendas das paredes sibilava tristemente no corredor, os vidros zuniam nos caixilhos de chumbo, as aves noturnas, que habitavam as vastas chaminés do palácio, começavam a piar e aos ouvidos do conde chegava a alegria da aldeia como nota estranha duma língua esquecida.

Meados de novembro, as noites eram frias.

O conde olhou tristemente para as janelas das casas dos lavradores alegremente iluminadas pelo fogo vivo das lareiras e, estremecendo de frio dentro da velha sobrecasaca parda, levantou-se, tocou uma campainha e, metendo as mãos nas algibeiras, começou passeando pela sala.

Era um velho alquebrado e quase completamente calvo; apenas duas ou três madeixas de cabelo branco e comprido desciam-lhe da nuca até à gola do casaco. Usava a barba toda; era curta e branca. Os olhos, cuja luz a idade ia apagando, eram da cor mal definida que têm os olhos dos velhos e os das crianças de mama: tinham contudo uma expressão doce e melancólica. Ao canto da boca uma prega vertical, desdenhosa e altiva quando o conde estava sério, dava-lhe uma expressão de simpática tristeza quando sorria,

Ao toque da campainha acudiu um criado.

Era um velho também, mais velho do que o conde talvez. Trazia vestida uma casaca por certo verde, de tão velha que era, se não lhe ocultassem o estofo acumuladas passagens de linha preta.

Entrou curvando um pouco pelo respeito, outro tanto pelos anos.

— José — disse o conde — vai arrancar mais uma tábua à sala do docel e arranja o lume.

— Sr. conde, eu sozinho não tenho forças.

— Chama o caseiro, como tens feito nos outros dias.

— O Manuel foi-se hoje embora, sr. conde.

— Foi-se hoje embora! Por quê?

— Foi trabalhar para a quinta do João Pereira. V. Exa. bem sabe que o homem, coitado, tem família que sustentar e como os ordenados andam atrasaditos...

— Efetivamente, recordo-me de que há já bastante tempo... Ora, coitado! Mas, por que não me disse ele?... Eu esqueço-me de tudo. Hás de dar-lhe dois pintos da minha parte. Eu te ajudo hoje a arrancar a tábua.

E saindo ambos, foram a um quarto próximo e arrancaram uma tábua do soalho. O José serrou-a numas poucas de partes, feriu lume numa pederneira, porque o conde reprovava os fósforos como perigosos e, pouco depois, uma chama viva e alegre trepava pela chaminé.

O conde tornou a abrir o livro e continuou a ler Suetônio à luz de um bocado do seu palácio.

Tinham-se ido as tábuas pouco a pouco e já quase não restavam senão três quartos completos, o do conde, o do José e a livraria. Tábuas, vigas, portas e janelas tinham-se desfeito em cinzas.

E os velhos lavradores da aldeia, ao verem o fumo erguer-se acima da chaminé do palácio, sorriam triste- mente e diziam:

— Coitado!

Mas o conde continuava alegre e indiferente. Como até ali nada lhe faltara, Deus sabe à custa de quantos sacrifícios do pobre criado, não pensava no estado de miséria a que se achava reduzido ou, para melhor dizer, não queria pensar.

Quando ao domingo voltava da missa, vinha conversando alegremente, com um certo ar entre familiar e protetor, com os lavradores que o estimavam e gostavam de ouvi-lo nas choupanas mais pobres, e, aflito com a miséria que nelas encontrava, dizia baixinho para o velho José, que o acompanhava sempre, com o grande missal romano debaixo do braço:

— José, deixa um pinto em cima da mesa para esta pobre gente festejar o domingo.

E saia tocando ao de leve com os dedos nas faces rosadas das criancinhas, que olhavam para ele com os seus meigos olhos grandes, cheios de espanto e de curiosidade.

O José demorava-se como que para obedecer ao fidalgo e saía momentos depois, levando nas vastas algibeiras da casaca os bocados de pão negro e de carne, com os quais e com a ajuda de mais uma tábua o conde havia de jantar naquele dia.

E o conde continuava alegre e passava os dias conversando, como ele dizia, com os seus autores favoritos e entretendo a imaginação com os sonhos dourados dum futuro melhor.

Tinha um filho.

Havia três anos que o seu gênio desleixado o obrigara a partir para o Brasil, na esperança de, à força de trabalho, reparar os desastres da fortuna.

E não fora a ambição que o levara tão longe. Não ignorava ele a maneira como se sustentava o conde e o seu gênio altivo custava-lhe sujeitar-se à compassiva esmola dos aldeãos.

Um dia, deu parte de sua tenções ao pai, mostrando- lhe a conveniência daquela partida, ocultando-lhe porém uma grande parte da verdade com receio que a revelação dela fosse um golpe fatal na vida do velho. Repetida primeiramente a idéia como absurda e pouco digna, o pobre pai, com o coração esmigalhado pela dor e pela vergonha, teve por fim que render-se e sacrificar o seu orgulho ao orgulho mais nobre do filho.

Obtida a licença, partiu levando como capital a bênção paterna e os poucos pintos que rendeu mais uma hipoteca.

* * *

Os primeiros dias foram horríveis para o conde. Sentia um vácuo enorme naquela casa, havia pouco tão cheia ainda. Depois a dor foi abrandando pouco a pouco, e o conde voltou aos hábitos antigos. Tinha mais um sentimento no coração: a esperança.

* * *

Uma tarde chegou uma carta que dizia:

“Meu caro pai, vou bem, vou muito bem. Pelo próximo paquete espero poder enviar-lhe cem mil-réis, quantia que continuarei a mandar todos os meses”.

O conde procurou paquete no dicionário de Morais, mas achou a palavra comida pela traça.

O José chorava de alegria e naquela noite deitou duas tábuas no lume, aceitou um copo de vinho ao João Pereira e, quando acabou o terço, disse para o conde, com quem o rezara em voz alta:

— Para que se realize o que sr. d. Carlos nos promete: Salve, Rainha.

* * *

E passou-se mês e meio e o conde dizia:

— O que será paquete?

De Agostinho de Macedo para cá não sabia nada, não lia jornais, nem vê-los queria. Detestava-os com um ódio de velho quase instintivo. Quando via algum jornal murmurava logo:

— Maçonaria!

E continuava a esperar o paquete, como um sebastianista espera d. Sebastião, com uma confiança cheia de mistérios e de pequenas impaciências.

O palácio já pouco mais tinha do que as paredes. Pouco a pouco, tábua por tábua, viga por viga, o quarto do criado passara pela chaminé e este dormia agora na câmara do conde.

E o velho fidalgo dizia ao ver crepitar na vasta lareira as tábuas carcomidas:

— Paciência! Isto conserta-se depois, quando chegar o paquete.

E o José apenas respondia:

— Salve, Rainha.

Esperava-se no principio de janeiro.

O conde começou a separar os livros em duas classes:

a dos livros úteis e a dos livros inúteis.

Os livros inúteis transformaram-se em calor e, quando o conde via as páginas amareladas torcerem-se sob a ação do lume, olhava para elas tristemente e depois, erguendo os olhos para o retrato do avô, dizia mentalmente, como que pedindo desculpa:

— São os piores.

Acabaram os livros inúteis e o conde pôs de lado os ótimos e queimou os restantes.
Duraram dois dias.

E como o paquete não chegava, o conde coçava a cabeça e olhava com um modo menos respeitoso para o missal romano.

O José triplicava o número das salve-rainhas.

E o paquete não chegava, e os manuscritos arderam, e o conde queimou as gravuras e conservou apenas o Suetônio.
  
Passados dias chegou uma carta.

Trazia um sobrescrito azul, um pouco transparente, muito boa letra, uma letra com muitos finos e grossos, como a dum professor de caligrafia. Trazia a marca do Brasil e cheirava a carvão de pedra.

Foi o José quem a recebeu, e correndo para a livraria, onde o conde estendia instintivamente as mãos trêmulas sobre as cinzas frias da chaminé, entrou gritando:

— O paquete! o paquete!

O conde estremeceu, ergueu-se e pegou na carta.

Era talvez a riqueza!

Passou-lhe uma nuvem pelos olhos.

Encostou-se a uma poltrona e, tremendo, abriu o sobrescrito.

E leu:

“Temos o doloroso dever de dar parte a V.Exa. do falecimento do seu filho...”
O conde não pôde ler mais e deixou cair a carta.

José exclamava:

— Perdidos! Perdidos!

E dava com acabeça nas paredes.

O conde conservava-se silencioso e fitava os olhos turvos na folha de papel azul, que tremulava no chão assoprada pelo vento.

— Resta-nos a caridade, José — disse por fim. — Vai, vai ter com essa gente a quem ontem ainda eu dei esmola, e dize-lhe que o conde lhe pede, por amor de Deus, um bocado de pão.

E depois soluçando:

— Manuel! Filho!... Meu querido filho!

E como fazia muito frio, o conde queimou o Suetônio.


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Nota:
Texto-fonte: D. João da Câmara. Contos, 1900, extraído da edição de 1974 da Editora Três

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