A OUTRA
Era fins de agosto, à hora do meio-dia.
Havia um instante, que, na torre pequenina da igreja, o
sacristão, com a cabeça abrigada do sol por um grande lenço de fundo vermelho
com ramagens amarelas, tinha feito soar vagarosamente as ave-marias.
Hora do descanso. Alguns dos que trabalhavam mais perto
recolheram a casa para jantar e sossegar um pedaço, durante a sesta.
Depois tudo pareceu adormecer na aldeia. Junto aos muros,
enfileiradas todas na nesgazinha de sombra, as galinhas dormitavam; os pássaros
nos salgueirais, que sombreavam o ribeiro, tinham emudecido. No interior das
casas nenhum rumor, por entre a folhagem nenhuma viração. Até as carroças, nos
pátios, com os varais aprumados, pareciam, como num espreguiçamento, dispor-se
para o sono.
O sol quase a prumo dardejava sobre a aldeia os raios quentíssimos,
reverberados pelas paredes caiadas de fresco e pelos telhados novos vidrados,
que pareciam em brasa, e atravessava com eles as ramarias, enchendo o ribeiro
de manchas movediças, multiformes, cheias de cintilações, como pedacinhos de
metal.
Era aquela a hora a que dantes costumava recolher a casa o
José Miguel, o melhor caçador da aldeia, com a rede quase a transbordar, tão
cheia a trazia sempre de perdigotos e láparos.
Ainda ele vinha longe, já se ouviam os latidos alegres do
cão, correndo na frente.
Então a mulher, depois de haver posto a mesa, vinha para o
limiar da porta, encostava-se á ombreira, e punha- se à espera, toda risonha,
feliz, fresquinha como uma flor, com o seu vestido de linho muito engomado.
Os que passavam iam lhe dando as boas tardes.
— Não tarda ai — diziam-lhe cumprimentando-a. — E é como
sempre: bolsa cheia e cartucheira vazia.
Tempos!... Tempos!
Havia quase um mês que a pobre Mariana debalde esperava o
marido àquela hora.
Agora, quando ouvia soar as ave-marias, vinha encostar a
testa aos vidros da janela e, com as faces incendiadas, o ouvido atento,
fitando os olhos numa casa que alvejava ao longe sobre a serra, deixava correr
em fio as lágrimas silenciosas, E os que passavam, recolhendo ás casas, olhavam
para ela com um modo tão triste, que ainda mais a entristecia, e iam dizendo
uns para os outros: Coitadinha!
O que lhe custava...! E quanto mais, ao recordar-se do
outro verão que passara!
Para aquilo tinha casado, para mal decorrido um ano, um
ano pouco mais, ali se ver sozinha, chorando o marido que lhe fugira!
Por que assim fora rebelde aos conselhos do pai? Bem lho
tinha ele pregado no próprio dia em que dera por aqueles amores!
O pobre mestre-escola, ouvindo-a conversar uma noite, à
porta da rua, viera buscá-la por um braço, arrastara-a pela escada até o quarto
lá em cima, e ali, meneando a cabeça, de braços cruzados, lançando chispas
pelos olhos, dissera-lhe apenas: Senhora!
E ela começara a chorar e logo ele, terníssimo e aflito, a
enchera de beijos.
Ainda não pensara naquilo...! Pois tão nova ainda, havia
de assim deixá-lo? E então por quem? Pelo José Miguel, um valdevinos, um doido,
um conquistador!
Recordara-lhe a morte da mãe que a deixara com três anos
entregue a ele, o que ele sofrera, os cuidados de que a rodeara, a educação que
lhe dera.
Era á noite, noite muito serena, cheia de murmúrios
misteriosos, que se elevavam dos campos numa grande serenidade. Ouviam-se ao
longe a queda das águas do ribeiro e o rodar das azenhas. A janela estava
aberta e lá de fora vinham perfumes quentes, fortes, no bafo carinhoso da
primavera.
Junto da porta crescia uma roseira, que metera para dentro
do quarto uma pernada insubmissa, toda cheia de cachos de rosas pequeninas. Um
rouxinol cantava no salgueiral, porque isto era no tempo dos ninhos.
O mestre-escola aproximou-se da janela e esteve por algum
tempo respirando aquele ar que o refrescava agora, mas que lhe trouxe não sei
que recordações.
Olhou para a filha e viu-a crescida, com os peitos
desenvolvidos, o pescoço muito bem torneado, o cabelo farto, enrolado no alto
em duas tranças; viu-lhe a cama- dura branca, sadia e forte.
O rouxinol continuava a cantar e a pernada cheia de flores
teve um movimento lânguido, vergando a um suspiro da noite.
O mestre-escola tomou uma respiração funda e fez um
movimento de ombros resignado.
— Ë preciso casar-te, não há remédio.
Como por miúdos se lembrava de toda a cena que tivera com
o pai e dos conselhos que então lhe ouvira! Bem o previra ele que o José Miguel
a havia de abandonar um dia, não porque fosse mau, mas porque era leviano, que
havia de deixar a mulher como deixava agora as namoradas, que tinham sido, uma
após outra, todas as raparigas da aldeia.
Que mal empregadas lágrimas ela chorara, até que afinal o
pai consentira no casamento!
Quantas vezes, feitas as pazes, tinham os três comentado
aquela história!
Um dia o mestre-escola fora pelo prior e outros convidado
para uma caçada a que iria também o José Miguel.
Foi este quem, bastante atrapalhado, veio pela manhã bater-lhe
à porta.
— Pronto, sr. Eustáquio? Olhe que o prior, há mais de um
quarto de hora que está à sua espera no adro
— Lá vou! lá vou! — gritou de dentro o Eustáquio.
E apareceu pouco depois, com a sua bota alta branca e o
boné de pala verde, que usava havia dez anos.
— Adeus! — disse ao José Miguel com mau modo.
— Sr. Eustáquio...! — respondeu este, cumprimentando-o,
entre irônico e atarantado.
E, erguendo os olhos, entreviu na única janela do primeiro
andar, detrás das folhas da roseira, uma carinha muito bonita, mas muito
triste, que lhe sorria por entre muitas lágrimas.
— Vamos! — disse o Eustáquio, pondo-se a caminho e olhando
de revés para o outro.
— Deixa estar, grande patife! — ia pensando o José Miguel.
— Ainda hoje mas hás de pagar!
Chegaram ao adro, onde o prior e mais dois amigos os
esperavam com impaciência.
Depois de muitas recriminações e descomposturas, a que o
Eustáquio respondeu com desculpas gaguejadas, começaram ali mesmo a caçada,
porque a igreja era no fim da aldeia e no sopé dum cabeço predileto das
perdizes.
Vinte minutos depois, o cão do mestre-escola parava, e
este, com o dedo no gatilho, esperava que as perdizes levantassem.
— Entra, cão!
Ouviram-se dois tiros; mas as perdizes foram-se voando com
saúde. O velho caçador fez um movimento de mau gênio.
Então o José Miguel, colocado um pouco mais longe, apontou
serenamente, descarregou por duas vezes a espingarda, e as perdizes, depois de
por um instante haverem batido convulsamente as asas, inclinaram as cabeças e
deixaram-se cair a prumo, como coisas inertes.
— Que é lá isso? — perguntou o Eustáquio.
— O senhor não vê? — disse-lhe o José Miguel,
mostrando-lhe a caça morta. — São duas perdizes.
E depois baixinho para o prior, mas não tão baixo que
o Eustáquio o não ouvisse:
— E dois bigodes. Ele que os vá contando.
E contou-os, e não foram poucos.
Felizmente o Eustáquio não era de reservas. O rapaz
entusiasmou-o.
— Bravo! — dizia ele ao fim da tarde, com o olhito a
luzir, o que era também dumas beijocas a mais na borracha do prior.
E depois, muito amigavelmente, pondo-lhe a mão no ombro:
— Sabes que tens quase uma riqueza nessa espingarda?
* * *
Com que saudades a Mariana recordava esse momento em que,
pela primeira vez, ouvira da boca do pai um elogio ao namorado!
— Mas isto não obsta. Não quero! — teimava ainda o
Eustãquio. — Aquilo é um cabeça no ar. Um dia deixa-te e ficas pior do que
viúva!
Afinal consentira. Que lhe havia de fazer?
O José Miguel acirrara-se com aquela resistência e, em vez
de abandonar a rapariga, como fizera às outras, cada vez se mostrava mais
assíduo junto da filha do mestre-escola. A Mariana definhava-se, que era um dó
vê-la.
O Eustáquio, bem contra vontade, não teve outro remédio,
consentiu.
* * *
O bom tempo tem asas.
Com os olhos fitos na casa pequenina, que alvejava no alto
da serra, a triste chorava amargamente, lembrando-se daqueles primeiros meses
de casada e das alegrias que tinha quando ouvia ao longe os latidos do Valente,
que voltava da caça.
Logo tirava da arca a toalha de linho muito alva, riscada
pelo ferro; puxava a mesa para defronte da janela, que uma parreira sombreava;
dispunha-a com muito cuidado, o lugar dela e o dele, um defronte do outro, o
canjirão cheio de vinho, o pão alvo partido em quartos, os pratos de fruta, que
perfumavam a casa.
Então o Valente entrava muito bruto, saltando, muito
desordeiro, querendo que lhe abrissem a porta do pátio, para onde logo saía a
correr, enterrando o focinho na panela cheia de caldo e de grandes bocados de
pão de munição.
O José Miguel muito estafado, atirava para cima da arca a
bolsa de caça, sorria ao ver aqueles arranjos e, enchendo a caneca de vinho
muito fresco, bebia-o depois, de uma vez, de olhos continuando a sorrir,
soltando ao acabar um belo ah! de satisfação.
— Vamos a isto, mulher, vamos a isto! — dizia aproximando
da mesa a grande cadeira de pau santo.
E, todo olhares gulosos, muito sorridente, de beiços
estendidos, destapava a terrina e enterrava a concha nas sopas.
Enquanto ia comendo, vinham as histórias do dia.
Ela pouco podia adiantar: estivera em casa trabalhando,
não sabia nada de novo.
Ele então contava façanhas do Valente, que, saciada a
fome, muito sujo, muito lambuzado, sentado a um canto, de olhos meio cerrados,
esperava com paciência o fim do jantar e a côdea de queijo da sobremesa.
Estava muito velho, coitado do bicho! mas ainda nenhum lhe
chegava.
Depois queixava-se da caça. As perdizes por aquele calor
andavam levadas da breca! O que ele andara por aqueles matos!
A mulher, sentada defronte dele, ria muito contente,
mostrando-lhe os dentes muito brancos entre os lábios vermelhos, com duas
covinhas aos cantos.
Pois as perdizes andavam assim como ele dizia, e estava a
rede ali tão cheia!
— Mas vê lá se outro consegue o mesmo — dizia o José
Miguel todo orgulhoso. — que daquilo e destas não há outro que as tenha na
aldeia.
E apontava para a espingarda e batia nas barrigas das
pernas.
— São de ferro!
O mestre-escola vinha muita vez, depois do jantar, ter com
eles à sobremesa, beber um copo de vinho e depenicar no queijo.
Caçador velho, muito conhecedor daqueles terrenos, gostava
de dar conselhos ao genro, que o escutava atencioso.
Isto não obstava a que, saindo juntos, o José Miguel,
fizesse enfurecer o sogro, matando-lhe a caça que este errava.
— Ora anda lã, meu velho — resmungava muito alegre —
apanha lá mais este, para a conta.
* * *
Agora o José Miguel continuava a sair todas as manhãs, mas
só recolhia alta noite. Ás vezes, nem recolhia, e ela, coitadita, levava as
noites a chorar.
Quando o marido saía, punha-se à janela e via-o
desaparecer por detrás da igreja, onde o sol nascente batia de chapa. Passados
minutos, avistava-lhe o vulto, ao longe, na calva do pinhal. O Valente seguia-o
cabisbaixo, triste, desconfiado, como que a estranhar o dono. Desapareciam
depois entre os pinheiros e ela já não podia cá debaixo tornar a avistá-los.
Mas da chaminé da casa, que alvejava no alto, começava a elevar-se no ar muito
sereno da manhã um penachinho de fumo azulado, que logo se desfazia no azul do
céu.
Ela então deitava-se de bruços na cama, e chorava
convulsamente.
* * *
Nesse dia pela uma hora, o Eustáquio entrou em casa da
filha.
— O teu homem?
— Foi para a caça — respondeu a Mariana, sentando- se no
leito e á pressa limpando as lágrimas.
O mestre-escola trazia o boné de pala verde, a espingarda
a tiracolo, o polvarinho e o chumbo. Nio trazia a rede.
— Bem. Deixa-te estar. Escusas de te incomodar. Deita-te,
filha, que eu vou procurá-lo.
A Marina quis retê-lo, estranhando-lhe os modos.
— Talvez não encontre. Sabe Deus onde ele pára!
— Sabe-o Deus, sei-o eu e sabe-o a aldeia em peso, que é
uma vergonha! — respondeu o Eustáquio, apontando com a espingarda para o alto
do pinhal. Olha, sabes o que vou fazer?
— Ó meu pai!... — disse a rapariga, levantando-se do leito
e vindo segurar-lhe os braços.
— Deixa-me! Muito tenho eu esperado! Não têm mais que o
castigo que ambos merecem. Tu sabes quem ela é?
A Mariana disse que não com a cabeça.
Mas não havia de saber!...
— A Maria da Escusa, aquela cigana, que, não contente com
ter dado cabo do marido, morto de desgostos, quer fazer outro tanto ao teu
homem.., e a ti! Mas eu vou lá e mato-a, mato-a como quem mata uma loba!
E, apertando, nervoso, a espingarda contra o peito, saiu
arrebatadamente.
A Mariana, cheia de susto, sem forças para seguir o pai,
sem forças para gritar, deixou-se cair no leito, desmaiada quase, sem ânimo
para pensar na desgraça que lhe estava acontecendo.
* * *
Assim esteve por muito tempo. Despertaram-na afinal uns
latidos alegres, tão conhecidos dela. Sentou-se no leito. Os latidos
aproximaram-se, e por fim o Valente rompeu pelo quarto, saltando, cheio de
fome, pedindo o jantar, a arranhar na porta do pátio.
Ouviu então a voz do José Miguel. Vinha conversando com o
pai e o que diziam não era coisa triste, porque ambos riam ás gargalhadas.
A Mariana correu, muito chorosa, até à porta e, muito
excitada, caiu soluçando nos braços do marido.
O que é isso? O que é isso? — perguntava o Eustáquio,
também com um nozito na garganta. — Choras então, porque eu te trouxe o homem?
Se adivinhasse o disparate, tinha-o deixado lá ficar.
— Então, mulher, então? Que tens tu? — dizia o José Miguel
muito comovido.
* * *
Passada meia hora, arranjado o jantar á pressa,
sentaram-se todos à mesa.
A curiosidade, que nem um dito, uma alusão deram motivo
para saciar, sorria nos olhos vivos da Mariana.
Que se haveria passado?
Mas, quase ao fim do jantar, o mestre-escola, que estava
conversando muito animadamente, enganou-se e, querendo beber à saúde da filha,
pegou no copo d’água: o José Miguel, muito lampeiro, antes que o sogro desse
pela distração, lançou-lhe mão ao vinho e bebeu-o de um trago.
— Não é só na caça que se apanham bigodes, sr. Eustáquio.
Não, não — respondeu o velho. — E tu que o sabes de
hoje...!
O José Miguel fez-se muito vermelho, e, porque percebesse
na mulher um sorriso em que a malícia apagara a tristeza, levantou-se da mesa e
veio beijá-la muito.
— Coitada da Mariana!
— Então ela.., enganou-te?
— Por que falas nisso? Que te importa? Que me importa?
A curiosidade da Mariana ainda não estava satisfeita. Com
quem?... Dize... Dize... Com quem?
Então o mestre-escola, muito corado — era talvez da pinga
— entendeu dever deixá-los sós, e saiu a rir, com um arzinho trocista, muito
contente, a esfregar as mãos.
---
Nota:
Texto-fonte: D. João da Câmara. Contos, 1900, extraído da edição de 1974 da Editora Três
Texto-fonte: D. João da Câmara. Contos, 1900, extraído da edição de 1974 da Editora Três
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