sábado, 16 de março de 2013

Machado de Assis: "Um para o Outro"


UM PARA O OUTRO

I

— Vivam um para o outro, foi a última palavra do coronel Trindade no leito da morte.

Ouviram-lhe, com religioso respeito, seus dois filhos Henriqueta e Julião, ela de 18 anos, ele de 20; mas nada lhe puderam responder. Cabia a vez ao soluço: a dor de perder o pai era mais que tudo naquela ocasião.

Também nada mais disse o moribundo; foi aquela a última palavra, se palavra se pode chamar um som mal expresso e já tingido da descor da morte. Poucos minutos depois morreu o coronel, e morreu sobre a tarde do dia 4 de outubro de  1862. A casa em que se finava era situada no Engenho Velho, e fora mandada construir por ele mesmo, alguns anos antes.

— Já sei que te pretendes casar, disse-lhe por essa ocasião o mais galhofeiro de  seus amigos, o desembargador Tinoco.

— Não, retorquiu ele; a minha vida é cair com a casa — cairmos de velhos.

Mas a idéia falhou, e o coronel morreu com pouco mais de cinqüenta anos, viúvo qual era desde os quarenta, entre seus dois filhos e alguns parentes, mais ou menos chegados. Julião e Henriqueta deram ao morto as lágrimas do mais sincero desespero: não houve consolações, naquele lance, que pudessem  entorpecer a dor íntima e profunda, nem minguar-lhes a manifestação ruidosa; não as podia haver. Desde longos anos, o velho coronel era para eles pai e mãe;  era quem lhes substituía a esposa extinta e nunca deslembrada.  Acresce que a doença que levava o pai fora rápida, e destruíra em poucos dias um organismo que parecia destinado a enterrar ainda muitos anos; e, ao cabo, o enterrado era ele, com todo o vigor de que dispunha.

Não era pobre o coronel Trindade, mas abastado, e sobre abastado, econômico; de maneira que, ao menos, não teve a dor de deixar os filhos ao desamparo — e  digo ao desamparo, porque Julião não completara ainda os estudos, não tinha posição ou emprego, donde tirasse a subsistência, se precisasse de a ganhar. Estudava na Escola Central, diziam ser bom estudante, e assim provou ser em todos os exames que fez, e dos quais se saiu com aprovação plena, e não raras vezes com louvor. A esperança do coronel era ver o filho engenheiro, louvado e procurado — o engenheiro Trindade — filho do coronel Trindade; era a sua esperança e seria a sua glória. A realidade foi outra — tão certo é que a  esperança é nada.



II

Um ano depois do acontecimento, apenas indicado no outro capítulo, recebeu Julião o seu diploma de engenheiro — e esse remate de alguns anos de honrado labor, de estudos sérios, não lhe deu a alegria com que contava; faltava uma pessoa. A irmã, que não menos do que ele sentia aquela ausência, buscou ainda  assim dissimulá-la; e ele, pela sua parte, tratou de esconder o que sentia. Esses dois corações possuíam o melindre dos sentimentos, a discrição das dores repartidas, que não desejam agravar-se mutuamente, e portavam-se com a habilidade que a natureza não concede a muitos, talvez a raros.

— Julião, disse Henriqueta três dias antes deste tomar o grau de engenheiro — tive uma idéia.

— Que é?

— Quero primeiro que você aprove.

— Mas que é?

— Aprova?

Julião sorriu.

— Se não é enforcar-me, aprovo, disse ele.

— Não é enforcar, é jantar; é jantar no dia em que você receber o seu diploma de engenheiro.

— Ora!

— Qual ora! Já tenho a lista dos convidados; são os nossos parentes.

— Só?

—Só.

— Titia, que diz? perguntou Julião a uma senhora idosa que estava na sala, a poucos passos, com um jornal na mão.

— Digo que Henriqueta pensa muito bem.

A tia de que se trata era-o por parte de mãe; tinha os seus cinqüenta anos, chamava-se D. Antonica; vivia com eles desde a morte do irmão.

Não havia remédio: Julião aceitou o jantar; limitou-se, todavia, a pedir que não fosse lauto nem ruidoso; queria uma coisa puramente de família, porque o acontecimento era de família.

Já sabemos que Julião fora bom estudante; sabemos também que era excelente  rapaz; acrescentemos que não era feio, antes bonito, gravemente bonito, másculo e sério. Não se imagine um jarreta, enfronhando a sua mocidade numa  gravata de sete voltas; não: sabia ser elegante, gostava de andar à moda; não usava, porém, pedir à moda todas as suas extravagâncias e excessos; era discreto até no vestir.

Henriqueta pertencia à classe de mulheres que sabem ornar-se, qualquer que seja a qualidade do estofo ou o corte do vestido; tinha a elegância nativa. Era alta, cheia, musculosa, talhada com amor no mais belo mármore humano. Talvez  não agradassem a alguns os olhos pardos e pequeninos; mas o olhar que chispava deles devia por força angariar adoradores ou amigos; amigos sim, que eram da natureza dos que falam mais aos sentimentos do que aos sentidos. Eram pequenos de si, e pequenos porque a testa era larga, uma testa serena e pura; tão pura e tão serena como o pensamento que ardia no interior. Nunca esse  pensamento cogitara no mal; ignorava-o, que é o melhor meio de o não atrair. A boca, que era delicadamente fendida sobre um queixo macio e redondo, não conhecera ou não pronunciara jamais uma só palavra de cólera, porque a própria travessura de Henriqueta, quando criança, era das que se acomodam sem gritos nem lágrimas. Henriqueta era o tipo da complacência, da bondade, da resignação branda e modesta. Quem lho não lesse na figura e nas maneiras, compreendê-lo-ia no fim de alguns dias de trato.

A pontualidade com que ela obedeceu ao desejo do irmão provava o que já sabemos — isto é, que era de sua parte dócil, e que também sentia a ausência do chefe da família. O jantar foi simples, modesto e tranqüilo; nenhum tumulto, nenhuma excessiva alegria. Os donos da casa deram o tom aos convivas; cada um destes compreendeu que faltava alguém pessoa e que era acertado não acordá-lo do sono.

— Esteve a teu gosto? perguntou Henriqueta de noite quando o último convidado tinha saído.

— Tu és um anjo!

— Um anjo de cozinha, concluiu Henriqueta rindo.

A casa em que moravam era a mesmo do Engenho Velho. Tinham-na deixado  logo depois da morte do coronel; mas três meses depois voltaram para ali, menos por motivo econômico que de piedade filial. Queriam ter presente a lembrança do pai — agora que a dor podia suportá-la, havendo já o tempo feito a sua ação  inevitável e benéfica. Julião poucas semanas depois de receber o diploma de  engenheiro, alcançou uma nomeação do governo, que o obrigou a ir à província do Rio durante poucas semanas; dali veio, tendo concluído a comissão mais depressa do que se esperava. Logo depois obteve outra nomeação que o não obrigava a sair, mas a ficar na Corte. Era muito melhor para ele e para ela; e nisto chegamos aos primeiros dias de 1864.



III

Naqueles primeiros dias de 1864, veio do Norte um parente de Julião, que lá estivera alguns anos como inspetor da Alfândega, e agora tornava, exonerado a seu pedido, porque tinha de ir liquidar uma herança em S. Paulo. Não se demorou  muito tempo nesta Corte, mas em um dos poucos dias em que aqui esteve convidou Julião a jantar, e jantaram efetivamente juntos, eles e mais um rapaz,  também do Norte, que o acompanhava a passeio e devia regressar no fim de poucas semanas. Era bacharel este rapaz, exercera já um lugar de promotor público, no sertão da Bahia, e tinha mais ou menos desejo de vir para a Câmara dos Deputados: ambição que não destoava da pessoa e dos talentos, antes parecera seu natural caminho.

— O Pimentel é o melhor orador que tenho ouvido, disse o ex-inspetor da alfândega.

— Sim?, perguntou Julião com interesse e cortejando o conviva.
— Pode ser, disse este, mas é porque você me ouviu sempre e com as orelhas do coração. A cabeça, se me ouvisse, seria de outro parecer.

O parente de Julião contestou energicamente; Pimentel, vendo-se objeto de uma conversa laudatória, desviou habilmente as atenções: dentro de poucos minutos falavam da situação política. Como Julião empregasse uma comparação matemática, a conversa descambou de repente nas matemáticas; depois, enveredaram pela literatura, e se não acaba o jantar, não era impossível que  penetrassem na teologia. Ora, Pimentel, ainda nos assuntos estranhos à ciência do Direito, mostrava-se discreto e lido, sem afetação, nem temeridade, dizendo somente o que sabia, e dizendo-o com modesta segurança do saber. Julião separou-se dele levando a melhor impressão do mundo; ofereceu-lhe a casa; Pimentel ofereceu-lhe os seus serviços na província.

— Deixa-nos breve?

— Daqui a um mês.

— Mas tornará como deputado? disse Julião rindo.

— Isso...

— Isso há de ser certo, clamou o ex-inspetor da alfândega.

Três dias depois encontrou-os Julião no teatro; num dos intervalos conversaram muito; noutro levou-os Julião ao camarote, onde estavam a irmã e a tia. A apresentação foi fácil, a conversa interessante, a recíproca impressão excelente.  Uma  semana  mais  tarde,  encontraram-se  em  uma  loja  da  rua  do   Ouvidor,  a  família Trindade e o dr. Pimentel; este noticiou que acompanhava o parente da família a S. Paulo, mas que esperava voltar sozinho, para regressar à província natal. Na véspera de sair, dirigiu-se ao Engenho Velho, e deixou lá um cartão de despedida.

Foi Henriqueta que o recebeu, e, para ser sincero, devo dizer que o recebeu de má cara. Notem que não me refiro ao bacharel, mas ao cartão; o bacharel é provável que tivesse agasalho mais benigno. Talvez a razão da diferença esteja na circunstância de que um cartão, por melhor que o litógrafo o atavie, não possui um par de olhos negros como os que alumiavam o rosto de Pimentel, uns olhos que na noite do teatro pareceram a Henriqueta singularmente graciosos e  dignos de estima. Também se pode dizer que um cartão de visita, se é um sinal de atenção, não tem em si essa qualidade, ao passo que o dr. Pimentel possuía aquele gênero de atenção delicada, que melhor fala ao espírito das mulheres.  Enfim, o cartão queria dizer despedida, separação, ausência; e Henriqueta confessava de si para si que a convivência do Pimentel devia ser muito agradável ao... Julião.

Dizia isto, e não me é dado atribuir-lhe outra coisa — ao menos por agora, que os olhos do Pimentel tiveram o mesmo destino de, todos os olhos que passam depressa: a lembrança deles foi amortecendo devagar, até que de todo se apagou. No fim de três semanas estava tudo acabado; foi justamente a ocasião em que o Pimentel desembarcou de Santos.



IV

— Sabes quem chegou hoje? perguntou Julião a Henriqueta, um dia ao jantar.

— Quem?
— O Dr. Pimentel.

Henriqueta teve uma impressão leve, e não duradoura; o ex-promotor estava esquecido. Contudo, não pôde reprimir o sentimento da curiosidade Julião, que  nada percebera até ali, continuou a falar do bacharel, com um entusiasmo, facilmente comunicativo. Henriqueta ouvia-o com interesse; perguntou-lhe se não viera também o ex-inspetor da Alfândega, e, dizendo-lhe ele que não, hesitou se devia indagar da demora do Pimentel; mas cedeu, e perguntou:

— O Pimentel demora-se ou volta já para o Norte?

— Não sei; é provável que volte.

— Estiveste com ele?

— Não, mas hei de ir lá amanhã.

Tinham acabado de jantar; Henriqueta sentiu que estava muito calor, mas em vez de ir para o portão da chácara, como lhe propusera Julião, foi tocar piano;  tocou meia valsa, depois meia sinfonia, enfim, meio romance; não acabou nada.

— Que tens tu hoje? disse-lhe a tia.

— Nada; aborrece-me o piano.

— Queres ir ao teatro? perguntou Julião.

Henriqueta ia a dizer sim, mas recuou.

— É tarde; iremos n'outro dia.

— Um passeio?

— Estou cansada.

— Não é porque tocasses com os pés, disse rindo o irmão.

Ouvindo esta palavra, Henriqueta ficou amuada, como se a frase em si, e, quando  não a frase, como se a intenção pudesse ser-lhe ofensiva. Ficou amuada, sem  que lho percebesse a família; e porque a família não lho percebeu, recolheu-se à alcova dentro de poucos minutos. Quando Julião não a viu, e soube que se recolhera, não pôde dissimular o espanto.

— Que tem Henriqueta? disse à tia.

— Não sei; depois do jantar ficou assim. Talvez esteja doente; vou ver o que é.

D. Lúcia (era este o seu nome), foi achar a sobrinha, enterrada numa poltrona, com um livro nas mãos, a ler, ou fingir que lia; foi o que a tia pensou; mas a verdade é que Henriqueta iludia-se a si mesma, supondo que lia alguma coisa; tinha os olhos na página, e até corriam de palavra em palavra, e de linha em linha. Corriam somente; não apreendiam o sentido do escrito, que lá ficava,  mudo, e quedo, e impenetrado.

Não tinha D. Lúcia a sagacidade que fareja as comoções morais; para ela tudo era dores, ânsias, calafrios, ou quaisquer outros fenômenos de comoção física. Conseguintemente, não mentiu, não dissimulou nada quando perguntou à sobrinha se lhe doía a cabeça.

— Bastante, disse esta. 

— Mas então por que lês?

— Para distrair-me.

— Que idéia! Isso é pior; dá cá o livro.

Tirou-lhe o livro das mãos; depois propôs-lhe fazer alguma mesinha, ao que Henriqueta se recusou, dizendo que era melhor não fazer nada; havia de passar por si.

—Tens febre?

— Ora, febre! disse Henriqueta rindo.

E rindo estendeu o pulso à tia, que lho tomou com o ar mais doutoral que pôde ter uma senhora; e foi rindo também que a tia lhe declarou:

— Tens febre para amanhã. Anda cá fora; aqui está muito abafado. O ar livre há de fazer-te bem.

Não resistiu a moça; nem sequer cedeu de má vontade. Ao contrário, era aquilo mesmo o que queria, porque, tendo obedecido a um impulso de mal cabido ressentimento, doía-lhe agora o que fizera, e ardia, por ler nos olhos do irmão, — ou a ignorância ou desculpa do que se passara. Julião, que não percebera nada, acolheu a irmã com a maior naturalidade do mundo, — um pouco ansioso, é certo, por saber se estava doente, mas quando ela lhe disse que era uma simples dor de cabeça, já agora quase extinta, abraçou-a radiante, e a noite acabou numa palestra de família.

Vulgar é o episódio, simples é o sentimento; nada aí há que mereça uma página de novela, nem que se imprima fortemente no espírito; mas simples, mas vulgar, a vida dessas poucas horas entre o jantar e o sono deu a Henriqueta uma série de reflexões graves. A idéia de se ter mostrado ofendida com o irmão roeu- lhe cruelmente a consciência. Não esqueçamos que Henriqueta possuía a docilidade entre as suas mais excelentes virtudes. Por que motivo aquele arremesso e  aquela injustiça, onde não houvera ofensa nenhuma? A esta pergunta, que a si  mesma fazia, Henriqueta não achou que responder, — ou antes não quis achá-lo, porque uma vaga recordação lhe alvejou no pensamento, e ela repeliu-a irritada e envergonhada.

Já então era tarde; toda a família dormia. Sentada ao pé de uma janela aberta, com os olhos ao longe, no eterno impenetrável, Henriqueta relembrava, não só as últimas horas, como os últimos dias, como as últimas semanas; fazia uma espécie de exame de consciência, sem argüições nem desculpas, mas friamente,  como quem julga a outrem. Talvez a imagem do pai lhe aparecesse nessa ocasião; pode ser também que lhe ouvisse a voz; mas se lhe respondeu, não falou com os lábios, mas com o coração, e foram de paz as palavras, porque de paz lhe foi o sono.

— Passou a dor de cabeça? perguntou-lhe a tia no dia seguinte de manhã, quando Henriqueta lhe foi falar.

— Para sempre, foi a sua resposta.



V

Para sempre? dirá consigo a leitora, que de certo entendeu a dor de cabeça de  Henriqueta, e provavelmente duvidara da cura. Velhas dores, eternas dores, que tu sentiste, ou sentes, ou virás a sentir um dia — o que já mostravam aqueles dois versinhos que Voltaire aplicou ao amor. Quem quer que sejas — dizia — teu senhor é este. II est, le fut ou le doit être. É o teu caso, morena ou loura que me  lês, foi o caso de tua avó, era o da nossa Henriqueta; e é por isso que a leitora tem muita razão de duvidar que tão cedo lhe morresse a dor — ou ao menos, que morresse para sempre.

Não obstante, foi o que ela disse, e mostrou galhardamente em todo esse dia e nos outros. Voltara a alegria habitual — a princípio nimio ruidosa, como se a assoprasse um pouco de oculto propósito, mas logo depois natural e sincera. Uma nuvem apenas — pesada, mas nuvem, e já agora extinta.

Um dia, seis ou sete depois daquele incidente, foi convidado o Pimentel a jantar em casa de Julião; lá foi, lá o receberam com as mais sensíveis mostras de afeto, e não houve outro caminho de intimidade. A intimidade que vem só do costume é frouxa e facilmente suspeitosa; a que se funda na afeição recíproca é menos  precária. Era o caso dos dois rapazes: não tardou muito que se mostrassem quais eram e quais desejariam que fossem.

Entretanto, o Pimentel devia voltar para o Norte: transferiu muitas vezes a viagem, mas afinal era preciso realizá-la, e não teve outro remédio se não ir — sabe Deus com que saudade! disse ele a Julião.

— Por que não fica mais tempo?

— Não posso; há razões de família; em todo o caso, voltarei.

— Quando?

— Depois de alguns meses.

— Vinte ou trinta, não?

— Oh! Não! Três ou quatro.

— Promete?

— Prometo.

Henriqueta recebeu a notícia de outro modo — uma grande tranqüilidade, quase indiferença; e realmente seria bem curioso, quem pretendesse saber as causas do ar sombrio com que Pimentel viu a impressão que deixava à moça o motivo de sua partida. O mais que se pode saber é que não disse nada: boliu com a corrente do relógio, consertou a gravata, depois olhou para a ponta da botina; depois quis dizer alguma coisa, mas provavelmente esquecera as palavras, e achou melhor sair, e foi o que fez daí a dois minutos.

Ora, é bem difícil que um homem se contente com a indiferença alheia em coisas que parecem importar-lhe grandemente; por esse ou por outro motivo, o Pimentel tornou à conversação, na véspera da partida, acrescentando que ia  acabrunhado.

— Por quê? disse Henriqueta.

— A Corte sempre deixa saudades, ponderou ele.

— Isso é verdade; mas o senhor voltará daqui a algum tempo; creio que já me falou em quatro meses.

— Quatro ou três.

— Quase que era melhor não ir.

— Se pudesse ficar, ficava, disse vivamente o Pimentel; mas há razões fortes....

— Quatro meses passam-se depressa.

— Conforme, disse o Pimentel olhando para ela...

Henriqueta não respondeu nada, nem com a boca, nem com os olhos; falou do último espetáculo, depois do enjôo do mar, do calor, e de Petrópolis. O Pimentel acompanhou-a por esse caminho; quis depois tornar ao primeiro, que era para ele a estrada real; ela porém fugiu-lhe. Não insistiu o Pimentel; tratou de coisas estranhas, e procurou até coisas alegres; mas só as achou de uma alegria violenta, como o cômico dos atores sem graça. De noite, entrando no hotel, tirou essa máscara do rosto, e a sós consigo recapitulou as últimas horas, os últimos dias e as últimas semanas. Digo que recapitulou, sem dizer primeiro que se despiu, porque assim mesmo como estava, assim se atirou a um sofá, com o chapéu na cabeça, e os olhos em nenhuma parte, ou longe dali. A expressão do rosto era de abatimento, de despeito, de ânsia; coisa que ainda mais se acentuou, quando ele lançando fora o chapéu, disse em voz alta e rude:

— Perco o meu tempo! não me ama.

Julião foi acompanhá-lo a bordo no dia seguinte; pediu-lhe muito que voltasse e o mais cedo possível.

— Lembre-se que já me prometeu.

— Já.

— E cumpre?

— Cumpro.

— Palavra?

— Para que, se lhe digo que sim? balbuciou o Pimentel.

Despediram-se; o vapor seguiu; Julião veio para terra. Quando o vapor perdeu a vista da cidade, ninguém ouviu, mas é certo que o Pimentel olhando para a água que batia no costado do navio, repetia lá no fundo do pensamento:

— Nem quatro meses, nem quatro anos.



VI

Henriqueta deixou-se estar, nem triste nem alegre; indiferente. A vida da família tornou a ser o que era antes: patriarcal e quieta. Alguns recreios íntimos, poucos externos, e nenhum que excedesse da mediana discreta e honrada. Nessa parte, como em tudo mais, eram harmônicos os caracteres dos dois irmãos: não tinham  mais nem menos exigências.

— Seu irmão parece um urso, disse um dia a Henriqueta uma moça da  vizinhança, relacionada há pouco com eles.

— Por quê?

— Porque parece.

— Você está enganada, disse Henriqueta. É talvez um pouco assim, calado, metido consigo, mas havendo intimidade...

No outro dia, Henriqueta contou a Julião o reparo da vizinha. Julião riu, sacudiu os ombros e não comentou de outro modo o reparo.

— O que é certo que você é assim mesmo.

— Assim como?

— Bicho do mato.

— Pode ser.

— Sabe você o que se faz com um bicho?

— Que é?

— Foge-se.

— Então, você quer fugir-me?

— E já.

Henriqueta disse esta última palavra, dando um passo para a porta; Julião foi ter com ela, pegou-lhe na mão, e deu-lhe um bolo. Riram-se muito: sentaram-se depois; falaram de mil várias coisas. A tia foi achá-los ali e abanou a cabeça, rindo.

— Vocês parecem dois namorados, disse ela.

— E somos, não é? perguntou Julião.

— Apoiado, concordou Henriqueta.

Dois namorados — eis a verdadeira definição: não havia outra melhor. Tinham as  saudades, os arrufos, as criancices dos namorados. A afeição que os ligava,  tocante e profunda, era já um vínculo bastante; mas outros vieram reforçá-lo  mais. Assim, o costume da vida comum, a índole própria, e afinal a memória do pai. — Vivam um para o outro — foram as últimas palavras do velho moribundo;  eles não esqueceram essa recomendação derradeira: ouviram-na como se fora  um preceito da eternidade. Viviam exatamente um para o outro; não tinham desejos diferentes, e quando os tinham, chegavam facilmente a combiná-los. Pode-se dizer que as impressões de um eram as de outro, e que um mesmo cérebro e um mesmo coração pensava e batia por ambos. Não seria isto exatamente; não era; alguma vez arrufavam-se, mas essas divergências não eram mais do que o perrexil do afeto, uma coisa que lhe dava melhor sabor.

Já vimos um desses arrufos. Poucos dias depois da conversa da vizinha,  Henriqueta lembrou a esta para irem a passeio à Tijuca, um domingo de manha. Assentaram que sim. Henriqueta disse-o depois ao irmão.

— Fizeste mal, disse este.

— Mal?

Julião conformou o dito com o gesto.

— Mas por quê?

— Ora, um passeio à Tijuca!

— Já o temos feito noutras ocasiões.

— É verdade, mas somos nós e titia. Agora, uma pessoa estranha...

— Sim, uma vizinha, que sé dá comigo. Que tem?

Julião não respondeu.

— Pois bem, disse Henriqueta; vou mandar dizer que não podemos ir. Deu um passo para a porta da sala; Julião, que a viu um pouco séria, deteve-a.

— Não, disse ele; não mandes dizer nada; iremos.

— Por quê? se te incomoda?

— Iremos.

Henriqueta ainda insistiu, mas Julião disse-lhe que já agora melhor era realizar o passeio. A tia, que assistiu ao debate dos dois, concluiu rindo:

— Sabe o que é, Henriqueta?

— Não.

— O Julião tem ciúmes de você; não quer que você se dê com suas amigas.

— Sim? dise Henriqueta.

— Que idéia!



VII

Henriqueta ficou um pouco abalada com as palavras da tia. Esta saiu; ela dirigiu-se ao irmão:

— Ciúmes? perguntou.

Julião sorriu, e levantou os ombros.

— Não vê que titia está brincando? disse ele. É uma maneira de explicar a minha hesitação em ir a esse passeio da Tijuca. Pois eu havia de ter ciúmes de você? Dê-se com quem quiser; você sabe que nunca lhe pus obstáculo.

— Jura? disse Henriqueta depois de um instante de silêncio. Julião abanou a cabeça.

— Patetinha! exclamou ele a rir.

A outra riu também, e tudo acabou do melhor modo, aliás do único, pois bem singular seria que de tal incidente saísse outra coisa, além de muito riso. Saiu  mais: saiu também o passeio à Tijuca, que se efetuou no domingo próximo, indo Julião, Henriqueta, a amiga desta, uma prima e o marido da prima.
— O urso vai?

— Vai.

A amiga de Henriqueta, que assim lhe falou, à porta da casa, quando viu aparecer Julião, era uma moça de vinte anos, alegre e inquieta como uma andorinha. Chamava-se Fernanda, era filha do comendador Silva, que fora  empregado antigo e conceituado, em um dos bancos da Corte, e morrera dois anos antes. O comendador deixou alguma coisa à família, que podia assim viver a coberto de necessidades; e, porque a mãe tinha economia e prudência, era difícil que tais necessidades sobreviessem nunca.

Fernandinha, que assim lhe chamavam a família e as amigas, era mui graciosa e elegante. Não tinha a beleza que impõe, nem a que eleva, nem a que faz cismar: o tipo era o da comum gentileza — um pouco de  beauté du diable. Mas, além  desta vantagem, que não era pouca, tinha as qualidades morais, que eram boas e sãs. Era dessas criaturas lépidas, ágeis, que gostam de rir muito, e de picar também, mas picar sem veneno nem ódio, só para ter ocasião de agitar as asas de andorinha e dar três giros no ar. De aparência galhofeira e frívola, escondia um coração bom, compassivo, e até alguma coisa mais, porque lance houve em que ela deu mostras de muita constância e resolução.

Era solteira, e dizia-se que um primo, prestes a formar-se em S. Paulo, seria o marido dela. Não se sabia bem disso: mas dizia-se a coisa, e acreditava-se como todas as coisas que ninguém sabe se verdadeiramente existem; basta que cheire a mistério, e se murmure ao ouvido.

— O Juca? disse ela um dia em que alguém lhe fez uma alusão a isso; pode ser.

— Então é?

— Pode ser.

Imagina-se o que foi o passeio à Tijuca, com semelhante companheira, e facilmente se acreditará que a excursão se repetisse daí a um mês ou seis semanas. Fernandinha usara de todas as liberdades concedidas às pessoas estouvadas: embirrou com o ar sério de Julião e não o deixou tranqüilo muito tempo; dava-lhe o braço, seguia com ele, tornava atrás, deixava-o, chamava-lhe urso. Julião sorria, e para não justificar muito o dito da moça, buscava também ser estouvado e alegre. Alegre pode ser, mas estouvado é que não: tinha uma agitação afetada e sem graça.

— Deixe-se disso, murmurou ela ao ouvido de Julião; é melhor ficar sendo urso. Eu gosto dos ursos.

— Já viu algum? perguntou ele.

— Sonho às vezes com um... Não é com o senhor, acrescentou a moça vivamente.

Henriqueta saboreou muito o passeio; pareceu-lhe que conciliara Julião e Fernandinha. Disse-o em casa à tia, e a ele mesmo.

— Conciliar? replicou o irmão. Creio que não era impossível.

— Mas difícil...

— Talvez difícil, porque a tua amiga é simplesmente doida.

— Tem uns modos acriançados, concordou a tia. 

— Não acha? disse Julião.

— Pode ser que tenha os modos, interveio Henriqueta, mas só os modos; é muito boa moça, muito afetuosa, muito sincera e bonita, e eu gosto de ver uma cara bonita.

No vidro da janela, a que se encostara, Julião rufava com os dedos, olhando para fora, assim como que distraído ou pensativo; da maneira que Henriqueta acabou o elogio sem contestação e sem ouvintes. A tia retirara-se antes que ela acabasse de falar; e Julião não atendeu ao resto.



VIII

Um dia, em casa de Julião, estando já estreitadas as relações entre as duas famílias, Fernandinha declarou ao irmão de Henriqueta que descobrira uma coisa importante e ia revelar-lhe.

— Importante? disse ele.

— Im-por-tan-tís-si-ma, confirmou a moça com o seu ar mais sonso.

— Que é?

— Descobri uma coisa que o senhor sente a meu respeito.

E dizendo isto, Fernandinha chegou os olhos ao rosto de Julião, que empalideceu. Ela não empalideceu, corou muito, e calou-se um instante.

— Que sinto eu? Vá lá, diga.

— O senhor odeia-me, concluiu a moça.

Julião riu-se, e pareceu desabafado de uma opressão.

— Não é verdade? perguntou ela.

— Pura verdade.

— Agora o que eu não sei é o motivo do ódio, continuou a moça; ao menos não me lembra que lhe tivesse feito nada.

— Nem eu, mas deve ter-me feito alguma coisa, visto que lhe tenho ódio, e ódio de morte.

— Não será de morte, mas é ódio...

Julião ouviu-a, mas sem comoção. Fernandinha falou ainda largo tempo, mas o assunto tinha o defeito de ser monótono. Quando se separaram, Julião acompanhou-a com os olhos, calado e pensativo; ao cabo de alguns minutos, murmurou:

— Por que me vens tu tentar, anjo rebelde? Deixa-me só comigo, ou espera-me; guarda contigo essa chama que te sinto luzir nos olhos, e talvez seja amor... talvez!

Fernandinha, que se afastara lentamente, ia a revolver as palavras escutadas e a cavar o pensamento delas. 

— Creio que me ama, dizia ela consigo; pode ser que não, mas eu creio que me ama... Aquela palidez, aquele tremor da voz... Ama-me; diga o que quiser, mas  estou certa... creio.., afirmo.., espero que me ame...

A impetuosidade de Fernandinha era só nas coisas de pouca monta; tratando-se da maior questão da sua vida, Fernandinha fez-se acanhada e medrosa. Não mudou de todo, mas mudou bastante: deixou de ser a moça frívola de costume, para se tornar às vezes séria e meditativa. Notava-o Henriqueta, e logo que o notava, dizia-o; mas então ela voltava logo a ser o que era, e nenhuma suspeita penetrou no espírito da outra.

Julião manteve-se no terreno que escolhera — o de uma impassibilidade branda e amável. Tratava a moça com as atenções do princípio, sorria com ela, e acompanhava-a nos recreios da família, mas nada mais. Às vezes Fernandinha deixava pousar nele uns olhos maviosos, que o rapaz não via, ou não entendia, e então a moça os recuava, e com eles um suspiro, que chegava à flor dos lábios, e voltava depois ao coração.

— Mas deveras, não gostará de mim? Dizia ela consigo, quando mais visível lhe parecia a indiferença de Julião.

Um dia, estando todos na chácara, Fernandinha parecia estouvada e alegre como  nos seus melhores tempos. Julião disse-lhe, e ela respondeu que a razão era simples: esperava um namorado, um noivo. Ela estremeceu, mas dominou-se  logo.

— Seu primo, não é? disse Henriqueta.

— Não sei, um noivo, repetiu a moça com um gesto nervoso e impaciente.

Julião encaminhou-se para o portão. Nesse momento chegava o carteiro com uma carta do Norte. Julião abriu-a e leu:

— Uma notícia, disse ele; daqui a quinze dias temos cá o Pimentel.

Dessa vez foi Henriqueta quem estremeceu, mas ninguém a viu, e o efeito passou.



IX

A chegada do Pimentel veio complicar a situação. Complicar não é a expressão exata; veio obscurecê-la ainda mais. Havia entre aquelas quatro pessoas um drama interior, que se desenrolava todo na consciência e no coração de cada um, sem nenhuma manifestação externa, sem contraste visível nem palpável, e, a certos respeitos, sem notícia recíproca. Tal era a dificuldade.

Henriqueta, sentiu uma extraordinária impressão ao saber da volta do Pimentel; mas se era principalmente de gosto, era também de medo, de enfado, de alguma  coisa que ela mal chegava a entender; e ninguém lha descobriu. Ao contrário, graças à arte que possuía de se dominar, nem Fernandinha pôde perceber nenhuma mudança; aliás, Henriqueta não confiava à outra os seus mais recônditos pensamentos.

Poder-se-ia notar, isso sim, que Henriqueta se tornou durante aqueles quinze dias muito vigilante em relação à amiga; buscava as ocasiões de a ter em casa,  iniciara alguns passatempos em que tomava parte o irmão; e até, quando era possível, deixava-os a sós. Fernandinha estimava esses lances sugeridos pela amiga; mas saía deles mais desanimada.

— Qual! Não me ama, pensava ela consigo. Bem diz mamãe que não gosta de homens matemáticos.

Henriqueta, pela sua parte, quando não tinha presente a outra, tinha-lhe o nome  e repetia-o muita vez, espreitando no rosto de Julião, o sinal de uma comoção qualquer; mas o rosto dele era de mármore, — frio e duro — e Henriqueta perdia o tempo, e ficava como quem, além do tempo, perdesse as esperanças.

A chegada do Pimentel, vindo complicar a situação, foi também uma diversão nos primeiros dias. Julião foi vê-lo imediatamente; levou-o no dia seguinte a jantar. Henriqueta recebeu-o com muita afabilidade e nada mais. De véspera ensaiara-se  a resistir à impressão do primeiro encontro, — um ensaio de imaginação que lhe não valeu de cousa nenhuma no dia seguinte. O que lhe valeu muito foi a presença do irmão; diante dele, Henriqueta venceu-se.

— Já não esperava por mim, aposto? disse Pimentel, apertando a mão da moça, que estava um pouco fria.

Este modo jovial deu-lhe forças; ela respondeu rindo que contava e muito; e acrescentou:

— Os senhores morrem pela Corte, não é assim?

— Também não digo que não, concordou ele; e posso afiançar-lhe que agora, se a Corte é a vida, viverei cem anos.

— Não vais mais? perguntou Julia.

— De visita; venho estabelecer-me aqui.

Pimentel estabeleceu-se efetivamente na Corte; mobiliou uma casa no Rio Comprido, meteu-se dentro; e as relações com a família de Julião prosseguiram como d'antes, e até um pouco mais freqüentes, se não mais íntimas. Esta situação pareceu mortificar Henriqueta e tornar-lhe quase importunas as visitas do Pimentel. Isto mesmo lhe notou Fernandinha.

— Que tem você contra este moço? perguntou-lhe um dia.

— Nada. Por quê?

— Parece que tem alguma coisa.

— Eu? disse Henriqueta rindo.

— Você, é verdade; noto que fica, às vezes, um pouco aborrecida quando ele está conosco. Será porque eu estou presente?

— Ora!

Fernandinha viu-a levantar os ombros com tão natural desdém, que acreditou na sinceridade da resposta.

— Se não é isso, continuou ela, é porque ele lhe pareceu aborrecido. Henriqueta hesitou um instante.

— Não digo que não, respondeu ela enfim.

E depois de um instante.
— O que me parece também é que você...

— Acabe! disse Fernandinha ameaçando-a graciosamente com a mão.

— Acabo: gosta dele.

— Acertou.

O tom era de chasco, mas a idéia acordou-lhe outra, — uma idéia má, pueril, de comédia, — uma idéia de simulação, para o fim de obter pela inveja o que não obtivera pela sugestão de um afeto melhor. Como a esperança é um alimento  eterno, Henriqueta viu luzir no rosto da amiga uma certa expressão, que lhe pareceu de júbilo; viu, e perguntou a si mesma — se deveras Fernandinha amava  o outro; mas lembrou-lhe os dias passados e abanou a cabeça.

Isto passava-se de noite, pouco depois de oito horas. Às nove retirou-se  Fernandinha. Henriqueta ficando só com o irmão, pôs-lhe as mãos nos ombros, olhou longo tempo para ele, e disse rindo.

— Urso!

Julião olhou para ela espantado.

— Urso! repetiu a irmã, e retirou-se apressada.



X

Julião ficou muito impressionado com a palavra da irmã. Suspeitou que Fernandinha lhe houvesse feito alguma confidência, e que a repetição daquele nome fosse uma espécie de declaração indireta. Era esta justamente a intenção de Henriqueta; e as coisas levariam outro rumo, se fosse diferente o gênio de ambos.

No dia seguinte, ao encontrarem-se os dois irmãos, trocaram um olhar interrogativo, mas nenhum deles ousou responder nada. Henriqueta lançou mão de um recurso; mandou dizer a Fernandinha que fosse jantar com ela. Tinha idéia de os lançar nos braços um do outro, não literalmente, mas de um modo que chegariam, ao cabo de algum tempo, a esse resultado. Infelizmente, o Julião não apareceu em casa; jantou na cidade com Pimentel.

O Pimentel acompanhou-o depois à casa, à noite, seriam oito horas. Fernandinha estava picada, com a ausência de Julião, e recebeu-o de um modo arrufado e quase triste. Ao contrário, em relação a Pimentel, suas maneiras foram outras, outras as palavras, outros o gesto e o tom. Nessa mesma diferença podia Julião ler alguma coisa que lhe seria propícia; mas ele não conhecia o coração das  mulheres, não praticara jamais essa espécie de luta das afeições; viu naquilo uma preterição.

O caso abalou-o; durante aquelas poucas horas dissimulou como pôde, mas a nova fase das coisas parecia feri-lo cruamente. Talvez Fernandinha lhe notou a impressão, porque recrudesceu de afabilidade com o Pimentel, — fez-se o que era, graciosa, estouvada, alegre; — e se a nota intencional era um pouco mais forte do que seria a natural, não deu por isso o irmão de Henriqueta; ele próprio padecia muito.

Mas Henriqueta não padecia menos. Certo, ela via no rosto de Pimentel, ao lado de Fernandinha, alguma coisa parecida com a benevolência superior que se tem com as crianças, — um certo ar que excluía qualquer interesse de natureza mais íntima; além disso, via os olhos do provinciano dirigirem-se muita vez para ela,  com a expressão que tinham alguns meses antes, e ela então fugia com os seus. Não obstante, padecia; tinha o ciúme exclusivo que treme até dos mais pueris afagos.

— Urso! pensava ela olhando para o irmão.

E, ao vê-lo tão severo, tão grave, ao contemplar nele o chefe amante e amado da  família, sempre tão desvelado e bom, lembrava-lhe a recomendação do pai: — Vivam um para o outro; — e ia ter com ele, e como que o consolava e se consolava daquele voluntário abandono.

Uma palavra bastava para dar à situação um desenlace feliz e breve; ambos,  porém, se obstinavam no silêncio; nenhum deles adivinhara o outro.

Essa primeira noite foi amarga para os dois; as seguintes não o foram menos;  logo depois o foram de todo. No fim de oito dias, Henriqueta tentou sondar ainda uma vez o irmão; via-o triste, e suspeitou a verdade; este, que não suspeitara  nada, furtou-se à curiosidade da irmã.

Henriqueta abanou a cabeça, e depois de um instante de reflexão, disse resolutamente:

— Você gosta de Fernandinha!

Julião fez uma careta de desdém; foi a sua única resposta; Henriqueta contentou-se com ela. Mas se se contentou com a resposta, não se contentou com a solução; era-lhe preciso, à fina força, levá-los ao amor e ao casamento.

Passaram mais oito dias. Uma noite, indo Henriqueta à casa de Fernandinha, achou lá o Pimentel, que já ali tinha estado uma vez ou duas. Achou-os bem; pareceu-lhe sentir que era demais.

— Demais? pensou ela com um gesto de orgulho.

Era demais. Pimentel e Fernandinha tinham aceitado, por despeito, uma situação dúbia e dissimulada; mas o coração, que nem sempre é bom calculista, trocara as intenções, e eles começaram a sentir-se bem ao pé um do outro, e a descobrir que eram bonitos, capazes de amar, e capazes de ser amados. Daí ao amor não distava um oceano, talvez um rio estreito; e esse rio eles o transpuseram, numa noite de luar, ao pé da janela, — tal qual numa balada romântica.

Henriqueta e Julião não gastaram muito tempo a compreender o verdadeiro  estado das coisas; e quando compreenderam tiveram um instante de despeito, arrependeram-se da abstenção, da resistência, da dissimulação imposta aos sentimentos que havia neles; mas lembravam-se um do outro, e aprovavam-se.

Um dia tiveram notícia oficial de que ia efetuar-se o casamento de Pimentel e  Fernandinha. Julião recebeu-a com impassibilidade; Henriqueta chorou muito durante a noite. No dia seguinte viu-lhe Julião os olhos vermelhos.

— Você chorou?

— Não, murmurou a moça.

— Chorou, sim; porque foi?

Henriqueta calou-se.

— Porque foi, Henriqueta? insistiu Julião assustado.

A resposta de Henriqueta foi lançar-lhe os braços ao pescoço, e pousar-lhe a fronte no ombro. Julião levantou-lhe brandamente a cabeça; olhou para ela; teve uma súbita intuição da realidade.

— Henriqueta! disse ele. Você.., você o amava?

A moça baixou os olhos; Julião entendeu tudo; deixou-se cair numa cadeira, com o rosto nas mãos. Foi a vez de Henriqueta, que se chegou a ele, arredou-lhe as mãos, viu-lhe a expressão abatida do rosto; não lhe perguntou nada. Com as mãos cingidas, os olhos para o azul do céu, ficaram assim longo tempo a saborear a dor de seu voluntário e ocioso sacrifício. Compreenderam que nenhum deles quisera ser o primeiro a deixar a família, e daí a inércia e a dissimulação. Talvez nessa hora viam, ao longe, a figura lívida do pai; talvez lhe escutassem a  palavra última: — Vivam um para o outro.


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Nota:
Texto-fonte: Contos de Machados de Assis: Relicários e raisonnés, de Mauro Rosso, Editora PUC Rio, Edições Loyola, Rio de Janeiro, 2008. Publicado originalmente em A Estação, de 30/07 a 15/10/1879.

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