
UM PARA O OUTRO
I
— Vivam um para o outro, foi a última
palavra do coronel Trindade no leito da morte.
Ouviram-lhe, com religioso respeito,
seus dois filhos Henriqueta e Julião, ela de 18 anos, ele de 20; mas nada lhe
puderam responder. Cabia a vez ao soluço: a dor de perder o pai era mais que
tudo naquela ocasião.
Também nada mais disse o moribundo;
foi aquela a última palavra, se palavra se pode chamar um som mal expresso e já
tingido da descor da morte. Poucos minutos depois morreu o coronel, e morreu
sobre a tarde do dia 4 de outubro de 1862. A casa em que se
finava era situada no Engenho Velho, e fora mandada construir por ele mesmo,
alguns anos antes.
— Já sei que te pretendes casar,
disse-lhe por essa ocasião o mais galhofeiro de seus amigos, o desembargador Tinoco.
— Não, retorquiu ele; a minha vida é
cair com a casa — cairmos de velhos.
Mas a idéia falhou, e o coronel
morreu com pouco mais de cinqüenta anos, viúvo qual era desde os quarenta,
entre seus dois filhos e alguns parentes, mais ou menos chegados. Julião e
Henriqueta deram ao morto as lágrimas do mais sincero desespero: não houve
consolações, naquele lance, que pudessem entorpecer a dor íntima e profunda, nem
minguar-lhes a manifestação ruidosa; não as podia haver. Desde longos anos, o
velho coronel era para eles pai e mãe; era
quem lhes substituía a esposa extinta e nunca deslembrada. Acresce que a doença que levava o pai fora
rápida, e destruíra em poucos dias um organismo que parecia destinado a
enterrar ainda muitos anos; e, ao cabo, o enterrado era ele, com todo o vigor
de que dispunha.
Não era pobre o coronel Trindade, mas
abastado, e sobre abastado, econômico; de maneira que, ao menos, não teve a dor
de deixar os filhos ao desamparo — e digo
ao desamparo, porque Julião não completara ainda os estudos, não tinha posição
ou emprego, donde tirasse a subsistência, se precisasse de a ganhar. Estudava
na Escola Central, diziam ser bom estudante, e assim provou ser em todos os
exames que fez, e dos quais se saiu com aprovação plena, e não raras vezes com
louvor. A esperança do coronel era ver o filho engenheiro, louvado e procurado
— o engenheiro Trindade — filho do coronel Trindade; era a sua esperança e
seria a sua glória. A realidade foi outra — tão certo é que a esperança é nada.
II
Um ano depois do acontecimento,
apenas indicado no outro capítulo, recebeu Julião o seu diploma de engenheiro —
e esse remate de alguns anos de honrado labor, de estudos sérios, não lhe deu a
alegria com que contava; faltava uma pessoa. A irmã, que não menos do que ele
sentia aquela ausência, buscou ainda assim
dissimulá-la; e ele, pela sua parte, tratou de esconder o que sentia. Esses dois
corações possuíam o melindre dos sentimentos, a discrição das dores repartidas,
que não desejam agravar-se mutuamente, e portavam-se com a habilidade que a
natureza não concede a muitos, talvez a raros.
— Julião, disse Henriqueta três dias
antes deste tomar o grau de engenheiro — tive uma idéia.
— Que é?
— Quero primeiro que você aprove.
— Mas que é?
— Aprova?
Julião sorriu.
— Se não é enforcar-me, aprovo, disse
ele.
— Não é enforcar, é jantar; é jantar
no dia em que você receber o seu diploma de engenheiro.
— Ora!
— Qual ora! Já tenho a lista dos
convidados; são os nossos parentes.
— Só?
—Só.
— Titia, que diz? perguntou Julião a
uma senhora idosa que estava na sala, a poucos passos, com um jornal na mão.
— Digo que Henriqueta pensa muito
bem.
A tia de que se trata era-o por parte
de mãe; tinha os seus cinqüenta anos, chamava-se D. Antonica; vivia com eles
desde a morte do irmão.
Não havia remédio: Julião aceitou o
jantar; limitou-se, todavia, a pedir que não fosse lauto nem ruidoso; queria
uma coisa puramente de família, porque o acontecimento era de família.
Já sabemos que Julião fora bom
estudante; sabemos também que era excelente rapaz; acrescentemos que não era feio, antes
bonito, gravemente bonito, másculo e sério. Não se imagine um jarreta, enfronhando
a sua mocidade numa gravata de sete
voltas; não: sabia ser elegante, gostava de andar à moda; não usava, porém,
pedir à moda todas as suas extravagâncias e excessos; era discreto até no
vestir.
Henriqueta pertencia à classe de
mulheres que sabem ornar-se, qualquer que
seja a qualidade do estofo ou o corte do
vestido; tinha a elegância nativa. Era alta, cheia, musculosa, talhada com amor
no mais belo mármore humano. Talvez não
agradassem a alguns os olhos pardos e pequeninos; mas o olhar que chispava
deles devia por força angariar adoradores ou amigos; amigos sim, que eram da
natureza dos que falam mais aos sentimentos do que aos sentidos. Eram pequenos
de si, e pequenos porque a testa era larga, uma testa serena e pura; tão pura e
tão serena como o pensamento que ardia no interior. Nunca esse pensamento cogitara no mal; ignorava-o, que é
o melhor meio de o não atrair. A boca, que era delicadamente fendida sobre um
queixo macio e redondo, não conhecera ou não pronunciara jamais uma só palavra
de cólera, porque a própria travessura de Henriqueta, quando criança, era das
que se acomodam sem gritos nem lágrimas. Henriqueta era o tipo da complacência,
da bondade, da resignação branda e modesta. Quem lho não lesse na figura e nas
maneiras, compreendê-lo-ia no fim de alguns dias de trato.

A pontualidade com que ela obedeceu
ao desejo do irmão provava o que já sabemos — isto é, que era de sua parte
dócil, e que também sentia a ausência do chefe da família. O jantar foi
simples, modesto e tranqüilo; nenhum tumulto, nenhuma excessiva alegria. Os
donos da casa deram o tom aos convivas; cada um destes compreendeu que faltava
alguém pessoa e que era acertado não acordá-lo do sono.
— Esteve a teu gosto? perguntou
Henriqueta de noite quando o último convidado tinha saído.
— Tu és um anjo!
— Um anjo de cozinha, concluiu
Henriqueta rindo.
A casa em que moravam era a mesmo do
Engenho Velho. Tinham-na deixado logo
depois da morte do coronel; mas três meses depois voltaram para ali, menos por
motivo econômico que de piedade filial. Queriam ter presente a lembrança do pai
— agora que a dor podia suportá-la, havendo já o tempo feito a sua ação inevitável e benéfica. Julião poucas semanas
depois de receber o diploma de engenheiro,
alcançou uma nomeação do governo, que o obrigou a ir à província do Rio durante
poucas semanas; dali veio, tendo concluído a comissão mais depressa do que se
esperava. Logo depois obteve outra nomeação que o não obrigava a sair, mas a
ficar na Corte. Era muito melhor para ele e para ela; e nisto chegamos aos
primeiros dias de 1864.
III
Naqueles primeiros dias de 1864, veio
do Norte um parente de Julião, que lá estivera alguns anos como inspetor da
Alfândega, e agora tornava, exonerado a seu pedido, porque tinha de ir liquidar
uma herança em S. Paulo. Não se demorou muito
tempo nesta Corte, mas em um dos poucos dias em que aqui esteve convidou Julião
a jantar, e jantaram efetivamente juntos, eles e mais um rapaz, também do Norte, que o acompanhava a passeio e
devia regressar no fim de poucas semanas. Era bacharel este rapaz, exercera já
um lugar de promotor público, no sertão da Bahia, e tinha mais ou menos desejo
de vir para a Câmara dos Deputados: ambição que não destoava da pessoa e dos
talentos, antes parecera seu natural caminho.
— O Pimentel é o melhor orador que
tenho ouvido, disse o ex-inspetor da alfândega.
— Sim?, perguntou Julião com
interesse e cortejando o conviva.

— Pode ser, disse este, mas é porque
você me ouviu sempre e com as orelhas do coração. A cabeça, se me ouvisse,
seria de outro parecer.
O parente de Julião contestou
energicamente; Pimentel, vendo-se objeto de uma conversa laudatória, desviou
habilmente as atenções: dentro de poucos minutos falavam da situação política.
Como Julião empregasse uma comparação matemática, a conversa descambou de
repente nas matemáticas; depois, enveredaram pela literatura, e se não acaba o
jantar, não era impossível que penetrassem
na teologia. Ora, Pimentel, ainda nos assuntos estranhos à ciência do Direito,
mostrava-se discreto e lido, sem afetação, nem temeridade, dizendo somente o
que sabia, e dizendo-o com modesta segurança do saber. Julião separou-se dele
levando a melhor impressão do mundo; ofereceu-lhe a casa; Pimentel ofereceu-lhe
os seus serviços na província.
— Deixa-nos breve?
— Daqui a um mês.
— Mas tornará como deputado? disse
Julião rindo.
— Isso...
— Isso há de ser certo, clamou o
ex-inspetor da alfândega.
Três dias depois encontrou-os Julião
no teatro; num dos intervalos conversaram muito; noutro levou-os Julião ao
camarote, onde estavam a irmã e a tia. A apresentação foi fácil, a conversa
interessante, a recíproca impressão excelente. Uma
semana mais tarde,
encontraram-se em uma
loja da rua
do Ouvidor,
a família Trindade e o dr.
Pimentel; este noticiou que acompanhava o parente da família a S. Paulo, mas
que esperava voltar sozinho, para regressar à província natal. Na véspera de
sair, dirigiu-se ao Engenho Velho, e deixou lá um cartão de despedida.
Foi Henriqueta que o recebeu, e, para
ser sincero, devo dizer que o recebeu de má cara. Notem que não me refiro ao
bacharel, mas ao cartão; o bacharel é provável que tivesse agasalho mais
benigno. Talvez a razão da diferença esteja na circunstância de que um cartão,
por melhor que o litógrafo o atavie, não possui um par de olhos negros como os
que alumiavam o rosto de Pimentel, uns olhos que na noite do teatro pareceram a
Henriqueta singularmente graciosos e dignos
de estima. Também se pode dizer que um cartão de visita, se é um sinal de
atenção, não tem em si essa qualidade, ao passo que o dr. Pimentel possuía aquele
gênero de atenção delicada, que melhor fala ao espírito das mulheres. Enfim, o cartão queria dizer despedida,
separação, ausência; e Henriqueta confessava de si para si que a convivência do
Pimentel devia ser muito agradável ao... Julião.
Dizia isto, e não me é dado
atribuir-lhe outra coisa — ao menos por agora, que os olhos do Pimentel tiveram
o mesmo destino de, todos os olhos que passam depressa: a lembrança deles foi
amortecendo devagar, até que de todo se apagou. No fim de três semanas estava
tudo acabado; foi justamente a ocasião em que o Pimentel desembarcou de Santos.
IV
— Sabes quem chegou hoje? perguntou
Julião a Henriqueta, um dia ao jantar.
— Quem?

— O Dr. Pimentel.
Henriqueta teve uma impressão leve, e
não duradoura; o ex-promotor estava esquecido. Contudo, não pôde reprimir o
sentimento da curiosidade Julião, que nada
percebera até ali, continuou a falar do bacharel, com um entusiasmo, facilmente
comunicativo. Henriqueta ouvia-o com interesse; perguntou-lhe se não viera
também o ex-inspetor da Alfândega, e, dizendo-lhe ele que não, hesitou se devia
indagar da demora do Pimentel; mas cedeu, e perguntou:
— O Pimentel demora-se ou volta já
para o Norte?
— Não sei; é provável que volte.
— Estiveste com ele?
— Não, mas hei de ir lá amanhã.
Tinham acabado de jantar; Henriqueta
sentiu que estava muito calor, mas em vez de ir para o portão da chácara, como
lhe propusera Julião, foi tocar piano; tocou
meia valsa, depois meia sinfonia, enfim, meio romance; não acabou nada.
— Que tens tu hoje? disse-lhe a tia.
— Nada; aborrece-me o piano.
— Queres ir ao teatro? perguntou
Julião.
Henriqueta ia a dizer sim, mas
recuou.
— É tarde; iremos n'outro dia.
— Um passeio?
— Estou cansada.
— Não é porque tocasses com os pés,
disse rindo o irmão.
Ouvindo esta palavra, Henriqueta
ficou amuada, como se a frase em si, e, quando não a frase, como se a intenção pudesse
ser-lhe ofensiva. Ficou amuada, sem que
lho percebesse a família; e porque a família não lho percebeu, recolheu-se à alcova
dentro de poucos minutos. Quando Julião não a viu, e soube que se recolhera,
não pôde dissimular o espanto.
— Que tem Henriqueta? disse à tia.
— Não sei; depois do jantar ficou
assim. Talvez esteja doente; vou ver o que é.
D. Lúcia (era este o seu nome), foi
achar a sobrinha, enterrada numa poltrona, com um livro nas mãos, a ler, ou
fingir que lia; foi o que a tia pensou; mas a verdade é que Henriqueta
iludia-se a si mesma, supondo que lia alguma coisa; tinha os olhos na página, e
até corriam de palavra em palavra, e de linha em linha. Corriam somente; não
apreendiam o sentido do escrito, que lá ficava, mudo, e quedo, e impenetrado.
Não tinha D. Lúcia a sagacidade que
fareja as comoções morais; para ela tudo era dores, ânsias, calafrios, ou
quaisquer outros fenômenos de comoção física. Conseguintemente, não mentiu, não
dissimulou nada quando perguntou à sobrinha se lhe doía a cabeça.
— Bastante, disse esta.
— Mas então por que lês?
— Para distrair-me.
— Que idéia! Isso é pior; dá cá o
livro.
Tirou-lhe o livro das mãos; depois
propôs-lhe fazer alguma mesinha, ao que Henriqueta se recusou, dizendo que era
melhor não fazer nada; havia de passar por si.
—Tens febre?
— Ora, febre! disse Henriqueta rindo.
E rindo estendeu o pulso à tia, que
lho tomou com o ar mais doutoral que pôde ter uma senhora; e foi rindo também
que a tia lhe declarou:
— Tens febre para amanhã. Anda cá
fora; aqui está muito abafado. O ar livre há de fazer-te bem.
Não resistiu a moça; nem sequer cedeu
de má vontade. Ao contrário, era aquilo mesmo o que queria, porque, tendo
obedecido a um impulso de mal cabido ressentimento, doía-lhe agora o que
fizera, e ardia, por ler nos olhos do irmão, — ou a ignorância ou desculpa do
que se passara. Julião, que não percebera nada, acolheu a irmã com a maior
naturalidade do mundo, — um pouco ansioso, é certo, por saber se estava doente,
mas quando ela lhe disse que era uma simples dor de cabeça, já agora quase
extinta, abraçou-a radiante, e a noite acabou numa palestra de família.
Vulgar é o episódio, simples é o
sentimento; nada aí há que mereça uma página de novela, nem que se imprima
fortemente no espírito; mas simples, mas vulgar, a vida dessas poucas horas
entre o jantar e o sono deu a Henriqueta uma série de reflexões graves. A idéia
de se ter mostrado ofendida com o irmão roeu- lhe cruelmente a consciência. Não
esqueçamos que Henriqueta possuía a docilidade entre as suas mais excelentes
virtudes. Por que motivo aquele arremesso e aquela injustiça, onde não houvera ofensa
nenhuma? A esta pergunta, que a si mesma
fazia, Henriqueta não achou que responder, — ou antes não quis achá-lo, porque
uma vaga recordação lhe alvejou no pensamento, e ela repeliu-a irritada e
envergonhada.
Já então era tarde; toda a família
dormia. Sentada ao pé de uma janela aberta, com os olhos ao longe, no eterno
impenetrável, Henriqueta relembrava, não só as últimas horas, como os últimos
dias, como as últimas semanas; fazia uma espécie de exame de consciência, sem
argüições nem desculpas, mas friamente, como
quem julga a outrem. Talvez a imagem do pai lhe aparecesse nessa ocasião; pode
ser também que lhe ouvisse a voz; mas se lhe respondeu, não falou com os
lábios, mas com o coração, e foram de paz as palavras, porque de paz lhe foi o
sono.
— Passou a dor de cabeça?
perguntou-lhe a tia no dia seguinte de manhã, quando Henriqueta lhe foi falar.
— Para sempre, foi a sua resposta.
V
Para sempre? dirá consigo a leitora,
que de certo entendeu a dor de cabeça de
Henriqueta, e provavelmente duvidara da cura.
Velhas dores, eternas dores, que tu sentiste, ou sentes, ou virás a sentir um
dia — o que já mostravam aqueles dois versinhos que Voltaire aplicou ao amor.
Quem quer que sejas — dizia — teu senhor é este. II est, le fut ou le doit être. É o teu caso, morena ou loura que me lês, foi o caso de tua avó, era o da nossa
Henriqueta; e é por isso que a leitora tem muita razão de duvidar que tão cedo
lhe morresse a dor — ou ao menos, que morresse para sempre.

Não obstante, foi o que ela disse, e
mostrou galhardamente em todo esse dia e nos outros. Voltara a alegria habitual
— a princípio nimio ruidosa, como se a assoprasse um pouco de oculto propósito,
mas logo depois natural e sincera. Uma nuvem apenas — pesada, mas nuvem, e já
agora extinta.
Um dia, seis ou sete depois daquele
incidente, foi convidado o Pimentel a jantar em casa de Julião; lá foi, lá o
receberam com as mais sensíveis mostras de afeto, e não houve outro caminho de
intimidade. A intimidade que vem só do costume é frouxa e facilmente
suspeitosa; a que se funda na afeição recíproca é menos precária. Era o caso dos dois rapazes: não
tardou muito que se mostrassem quais eram e quais desejariam que fossem.
Entretanto, o Pimentel devia voltar
para o Norte: transferiu muitas vezes a viagem, mas afinal era preciso
realizá-la, e não teve outro remédio se não ir — sabe Deus com que saudade!
disse ele a Julião.
— Por que não fica mais tempo?
— Não posso; há razões de família; em
todo o caso, voltarei.
— Quando?
— Depois de alguns meses.
— Vinte ou trinta, não?
— Oh! Não! Três ou quatro.
— Promete?
— Prometo.
Henriqueta recebeu a notícia de outro
modo — uma grande tranqüilidade, quase indiferença; e realmente seria bem
curioso, quem pretendesse saber as causas do ar sombrio com que Pimentel viu a
impressão que deixava à moça o motivo de sua partida. O mais que se pode saber
é que não disse nada: boliu com a corrente do relógio, consertou a gravata,
depois olhou para a ponta da botina; depois quis dizer alguma coisa, mas
provavelmente esquecera as palavras, e achou melhor sair, e foi o que fez daí a
dois minutos.
Ora, é bem difícil que um homem se
contente com a indiferença alheia em coisas que parecem importar-lhe
grandemente; por esse ou por outro motivo, o Pimentel tornou à conversação, na
véspera da partida, acrescentando que ia acabrunhado.
— Por quê? disse Henriqueta.
— A Corte sempre deixa saudades,
ponderou ele.
— Isso é verdade; mas o senhor
voltará daqui a algum tempo; creio que já me falou em quatro meses.

— Quatro ou três.
— Quase que era melhor não ir.
— Se pudesse ficar, ficava, disse
vivamente o Pimentel; mas há razões fortes....
— Quatro meses passam-se depressa.
— Conforme, disse o Pimentel olhando
para ela...
Henriqueta não respondeu nada, nem
com a boca, nem com os olhos; falou do último espetáculo, depois do enjôo do
mar, do calor, e de Petrópolis. O Pimentel acompanhou-a por esse caminho; quis
depois tornar ao primeiro, que era para ele a estrada real; ela porém fugiu-lhe.
Não insistiu o Pimentel; tratou de coisas estranhas, e procurou até coisas
alegres; mas só as achou de uma alegria violenta, como o cômico dos atores sem
graça. De noite, entrando no hotel, tirou essa máscara do rosto, e a sós
consigo recapitulou as últimas horas, os últimos dias e as últimas semanas.
Digo que recapitulou, sem dizer primeiro que se despiu, porque assim mesmo como
estava, assim se atirou a um sofá, com o chapéu na cabeça, e os olhos em
nenhuma parte, ou longe dali. A expressão do rosto era de abatimento, de
despeito, de ânsia; coisa que ainda mais se acentuou, quando ele lançando fora
o chapéu, disse em voz alta e rude:
— Perco o meu tempo! não me ama.
Julião foi acompanhá-lo a bordo no
dia seguinte; pediu-lhe muito que voltasse e o mais cedo possível.
— Lembre-se que já me prometeu.
— Já.
— E cumpre?
— Cumpro.
— Palavra?
— Para que, se lhe digo que sim?
balbuciou o Pimentel.
Despediram-se; o vapor seguiu; Julião
veio para terra. Quando o vapor perdeu a vista da cidade, ninguém ouviu, mas é
certo que o Pimentel olhando para a água que batia no costado do navio, repetia
lá no fundo do pensamento:
— Nem quatro meses, nem quatro anos.
VI
Henriqueta deixou-se estar, nem
triste nem alegre; indiferente. A vida da família tornou a ser o que era antes:
patriarcal e quieta. Alguns recreios íntimos, poucos externos, e nenhum que
excedesse da mediana discreta e honrada. Nessa parte, como em tudo mais, eram
harmônicos os caracteres dos dois irmãos: não tinham mais nem menos exigências.
— Seu irmão parece um urso, disse um
dia a Henriqueta uma moça da vizinhança,
relacionada há pouco com eles.
— Por quê?

— Porque parece.
— Você está enganada, disse
Henriqueta. É talvez um pouco assim, calado, metido consigo, mas havendo
intimidade...
No outro dia, Henriqueta contou a
Julião o reparo da vizinha. Julião riu, sacudiu os ombros e não comentou de
outro modo o reparo.
— O que é certo que você é assim
mesmo.
— Assim como?
— Bicho do mato.
— Pode ser.
— Sabe você o que se faz com um bicho?
— Que é?
— Foge-se.
— Então, você quer fugir-me?
— E já.
Henriqueta disse esta última palavra,
dando um passo para a porta; Julião foi ter com ela, pegou-lhe na mão, e
deu-lhe um bolo. Riram-se muito: sentaram-se depois; falaram de mil várias
coisas. A tia foi achá-los ali e abanou a cabeça, rindo.
— Vocês parecem dois namorados, disse
ela.
— E somos, não é? perguntou Julião.
— Apoiado, concordou Henriqueta.
Dois namorados — eis a verdadeira
definição: não havia outra melhor. Tinham as saudades, os arrufos, as criancices dos
namorados. A afeição que os ligava, tocante
e profunda, era já um vínculo bastante; mas outros vieram reforçá-lo mais. Assim, o costume da vida comum, a índole
própria, e afinal a memória do pai. — Vivam um para o outro — foram as últimas
palavras do velho moribundo; eles não
esqueceram essa recomendação derradeira: ouviram-na como se fora um preceito da eternidade. Viviam exatamente
um para o outro; não tinham desejos diferentes, e quando os tinham, chegavam
facilmente a combiná-los. Pode-se dizer que as impressões de um eram as de
outro, e que um mesmo cérebro e um mesmo coração pensava e batia por ambos. Não
seria isto exatamente; não era; alguma vez arrufavam-se, mas essas divergências
não eram mais do que o perrexil do afeto, uma coisa que lhe dava melhor sabor.
Já vimos um desses arrufos. Poucos
dias depois da conversa da vizinha, Henriqueta
lembrou a esta para irem a passeio à Tijuca, um domingo de manha. Assentaram
que sim. Henriqueta disse-o depois ao irmão.
— Fizeste mal, disse este.
— Mal?
Julião conformou o dito com o gesto.

— Mas por quê?
— Ora, um passeio à Tijuca!
— Já o temos feito noutras ocasiões.
— É verdade, mas somos nós e titia.
Agora, uma pessoa estranha...
— Sim, uma vizinha, que sé dá comigo.
Que tem?
Julião não respondeu.
— Pois bem, disse Henriqueta; vou
mandar dizer que não podemos ir. Deu um passo para a porta da sala; Julião, que
a viu um pouco séria, deteve-a.
— Não, disse ele; não mandes dizer
nada; iremos.
— Por quê? se te incomoda?
— Iremos.
Henriqueta ainda insistiu, mas Julião
disse-lhe que já agora melhor era realizar o passeio. A tia, que assistiu ao
debate dos dois, concluiu rindo:
— Sabe o que é, Henriqueta?
— Não.
— O Julião tem ciúmes de você; não
quer que você se dê com suas amigas.
— Sim? dise Henriqueta.
— Que idéia!
VII
Henriqueta ficou um pouco abalada com
as palavras da tia. Esta saiu; ela dirigiu-se ao irmão:
— Ciúmes? perguntou.
Julião sorriu, e levantou os ombros.
— Não vê que titia está brincando? disse
ele. É uma maneira de explicar a minha hesitação em ir a esse passeio da
Tijuca. Pois eu havia de ter ciúmes de você? Dê-se com quem quiser; você sabe
que nunca lhe pus obstáculo.
— Jura? disse Henriqueta depois de um
instante de silêncio. Julião abanou a cabeça.
— Patetinha! exclamou ele a rir.
A outra riu também, e tudo acabou do
melhor modo, aliás do único, pois bem singular seria que de tal incidente
saísse outra coisa, além de muito riso. Saiu mais: saiu também o passeio à Tijuca, que se
efetuou no domingo próximo, indo Julião, Henriqueta, a amiga desta, uma prima e
o marido da prima.

— O urso vai?
— Vai.
A amiga de Henriqueta, que assim lhe
falou, à porta da casa, quando viu aparecer Julião, era uma moça de vinte anos,
alegre e inquieta como uma andorinha. Chamava-se Fernanda, era filha do
comendador Silva, que fora empregado
antigo e conceituado, em um dos bancos da Corte, e morrera dois anos antes. O
comendador deixou alguma coisa à família, que podia assim viver a coberto de
necessidades; e, porque a mãe tinha economia e prudência, era difícil que tais
necessidades sobreviessem nunca.
Fernandinha, que assim lhe chamavam a
família e as amigas, era mui graciosa e elegante. Não tinha a beleza que impõe,
nem a que eleva, nem a que faz cismar: o tipo era o da comum gentileza — um
pouco de beauté du diable. Mas, além desta vantagem,
que não era pouca, tinha as qualidades morais, que eram boas e sãs. Era dessas
criaturas lépidas, ágeis, que gostam de rir muito, e de picar também, mas picar
sem veneno nem ódio, só para ter ocasião de agitar as asas de andorinha e dar
três giros no ar. De aparência galhofeira e frívola, escondia um coração bom,
compassivo, e até alguma coisa mais, porque lance houve em que ela deu mostras
de muita constância e resolução.
Era solteira, e dizia-se que um
primo, prestes a formar-se em S. Paulo, seria o marido dela. Não se sabia bem
disso: mas dizia-se a coisa, e acreditava-se como todas as coisas que ninguém
sabe se verdadeiramente existem; basta que cheire a mistério, e se murmure ao
ouvido.
— O Juca? disse ela um dia em que
alguém lhe fez uma alusão a isso; pode ser.
— Então é?
— Pode ser.
Imagina-se o que foi o passeio à
Tijuca, com semelhante companheira, e facilmente se acreditará que a excursão
se repetisse daí a um mês ou seis semanas. Fernandinha usara de todas as
liberdades concedidas às pessoas estouvadas: embirrou com o ar sério de Julião
e não o deixou tranqüilo muito tempo; dava-lhe o braço, seguia com ele, tornava
atrás, deixava-o, chamava-lhe urso. Julião sorria, e para não justificar muito
o dito da moça, buscava também ser estouvado e alegre. Alegre pode ser, mas
estouvado é que não: tinha uma agitação afetada e sem graça.
— Deixe-se disso, murmurou ela ao
ouvido de Julião; é melhor ficar sendo urso. Eu gosto dos ursos.
— Já viu algum? perguntou ele.
— Sonho às vezes com um... Não é com
o senhor, acrescentou a moça vivamente.
Henriqueta saboreou muito o passeio;
pareceu-lhe que conciliara Julião e Fernandinha. Disse-o em casa à tia, e a ele
mesmo.
— Conciliar? replicou o irmão. Creio
que não era impossível.
— Mas difícil...
— Talvez difícil, porque a tua amiga
é simplesmente doida.
— Tem uns modos acriançados,
concordou a tia.
— Não acha? disse Julião.
— Pode ser que tenha os modos, interveio
Henriqueta, mas só os modos; é muito boa moça, muito afetuosa, muito sincera e
bonita, e eu gosto de ver uma cara bonita.
No vidro da janela, a que se
encostara, Julião rufava com os dedos, olhando para fora, assim como que
distraído ou pensativo; da maneira que Henriqueta acabou o elogio sem
contestação e sem ouvintes. A tia retirara-se antes que ela acabasse de falar;
e Julião não atendeu ao resto.
VIII
Um dia, em casa de Julião, estando já
estreitadas as relações entre as duas famílias, Fernandinha declarou ao irmão
de Henriqueta que descobrira uma coisa importante e ia revelar-lhe.
— Importante? disse ele.
— Im-por-tan-tís-si-ma, confirmou a
moça com o seu ar mais sonso.
— Que é?
— Descobri uma coisa que o senhor
sente a meu respeito.
E dizendo isto, Fernandinha chegou os
olhos ao rosto de Julião, que empalideceu. Ela não empalideceu, corou muito, e
calou-se um instante.
— Que sinto eu? Vá lá, diga.
— O senhor odeia-me, concluiu a moça.
Julião riu-se, e pareceu desabafado
de uma opressão.
— Não é verdade? perguntou ela.
— Pura verdade.
— Agora o que eu não sei é o motivo
do ódio, continuou a moça; ao menos não me lembra que lhe tivesse feito nada.
— Nem eu, mas deve ter-me feito
alguma coisa, visto que lhe tenho ódio, e ódio de morte.
— Não será de morte, mas é ódio...
Julião ouviu-a, mas sem comoção.
Fernandinha falou ainda largo tempo, mas o assunto tinha o defeito de ser
monótono. Quando se separaram, Julião acompanhou-a com os olhos, calado e
pensativo; ao cabo de alguns minutos, murmurou:
— Por que me vens tu tentar, anjo
rebelde? Deixa-me só comigo, ou espera-me; guarda contigo essa chama que te
sinto luzir nos olhos, e talvez seja amor... talvez!
Fernandinha, que se afastara
lentamente, ia a revolver as palavras escutadas e a cavar o pensamento delas.
— Creio que me ama, dizia ela
consigo; pode ser que não, mas eu creio que me ama... Aquela palidez, aquele
tremor da voz... Ama-me; diga o que quiser, mas estou certa... creio.., afirmo.., espero que
me ame...
A impetuosidade de Fernandinha era só
nas coisas de pouca monta; tratando-se da maior questão da sua vida,
Fernandinha fez-se acanhada e medrosa. Não mudou de todo, mas mudou bastante:
deixou de ser a moça frívola de costume, para se tornar às vezes séria e
meditativa. Notava-o Henriqueta, e logo que o notava, dizia-o; mas então ela
voltava logo a ser o que era, e nenhuma suspeita penetrou no espírito da outra.
Julião manteve-se no terreno que
escolhera — o de uma impassibilidade branda e amável. Tratava a moça com as
atenções do princípio, sorria com ela, e acompanhava-a nos recreios da família,
mas nada mais. Às vezes Fernandinha deixava pousar nele uns olhos maviosos, que
o rapaz não via, ou não entendia, e então a moça os recuava, e com eles um
suspiro, que chegava à flor dos lábios, e voltava depois ao coração.
— Mas deveras, não gostará de mim?
Dizia ela consigo, quando mais visível lhe parecia a indiferença de Julião.
Um dia, estando todos na chácara,
Fernandinha parecia estouvada e alegre como nos seus melhores tempos. Julião disse-lhe, e
ela respondeu que a razão era simples: esperava um namorado, um noivo. Ela
estremeceu, mas dominou-se logo.
— Seu primo, não é? disse Henriqueta.
— Não sei, um noivo, repetiu a moça
com um gesto nervoso e impaciente.
Julião encaminhou-se para o portão.
Nesse momento chegava o carteiro com uma carta do Norte. Julião abriu-a e leu:
— Uma notícia, disse ele; daqui a
quinze dias temos cá o Pimentel.
Dessa vez foi Henriqueta quem
estremeceu, mas ninguém a viu, e o efeito passou.
IX
A chegada do Pimentel veio complicar
a situação. Complicar não é a expressão exata; veio obscurecê-la ainda mais.
Havia entre aquelas quatro pessoas um drama interior, que se desenrolava todo
na consciência e no coração de cada um, sem nenhuma manifestação externa, sem
contraste visível nem palpável, e, a certos respeitos, sem notícia recíproca.
Tal era a dificuldade.
Henriqueta, sentiu uma extraordinária
impressão ao saber da volta do Pimentel; mas se era principalmente de gosto,
era também de medo, de enfado, de alguma coisa que ela mal chegava a entender; e
ninguém lha descobriu. Ao contrário, graças à arte que possuía de se dominar,
nem Fernandinha pôde perceber nenhuma mudança; aliás, Henriqueta não confiava à
outra os seus mais recônditos pensamentos.
Poder-se-ia notar, isso sim, que
Henriqueta se tornou durante aqueles quinze dias muito vigilante em relação à
amiga; buscava as ocasiões de a ter em casa, iniciara alguns passatempos em que tomava
parte o irmão; e até, quando era possível, deixava-os a sós. Fernandinha estimava
esses lances sugeridos pela
amiga; mas saía deles mais desanimada.

— Qual! Não me ama, pensava ela
consigo. Bem diz mamãe que não gosta de homens matemáticos.
Henriqueta, pela sua parte, quando
não tinha presente a outra, tinha-lhe o nome
e repetia-o muita vez, espreitando no rosto de Julião, o sinal de uma
comoção qualquer; mas o rosto dele era de mármore, — frio e duro — e Henriqueta
perdia o tempo, e ficava como quem, além do tempo, perdesse as esperanças.
A chegada do Pimentel, vindo
complicar a situação, foi também uma diversão nos primeiros dias. Julião foi
vê-lo imediatamente; levou-o no dia seguinte a jantar. Henriqueta recebeu-o com
muita afabilidade e nada mais. De véspera ensaiara-se a resistir à impressão do primeiro encontro, —
um ensaio de imaginação que lhe não valeu de cousa nenhuma no dia seguinte. O
que lhe valeu muito foi a presença do irmão; diante dele, Henriqueta venceu-se.
— Já não esperava por mim, aposto?
disse Pimentel, apertando a mão da moça, que estava um pouco fria.
Este modo jovial deu-lhe forças; ela
respondeu rindo que contava e muito; e acrescentou:
— Os senhores morrem pela Corte, não
é assim?
— Também não digo que não, concordou
ele; e posso afiançar-lhe que agora, se a Corte é a vida, viverei cem anos.
— Não vais mais? perguntou Julia.
— De visita; venho estabelecer-me
aqui.
Pimentel estabeleceu-se efetivamente
na Corte; mobiliou uma casa no Rio Comprido, meteu-se dentro; e as relações com
a família de Julião prosseguiram como d'antes, e até um pouco mais freqüentes,
se não mais íntimas. Esta situação pareceu mortificar Henriqueta e tornar-lhe
quase importunas as visitas do Pimentel. Isto mesmo lhe notou Fernandinha.
— Que tem você contra este moço?
perguntou-lhe um dia.
— Nada. Por quê?
— Parece que tem alguma coisa.
— Eu? disse Henriqueta rindo.
— Você, é verdade; noto que fica, às
vezes, um pouco aborrecida quando ele está conosco. Será porque eu estou
presente?
— Ora!
Fernandinha viu-a levantar os ombros
com tão natural desdém, que acreditou na sinceridade da resposta.
— Se não é isso, continuou ela, é
porque ele lhe pareceu aborrecido. Henriqueta hesitou um instante.
— Não digo que não, respondeu ela
enfim.
E depois de um instante.

— O que me parece também é que
você...
— Acabe! disse Fernandinha
ameaçando-a graciosamente com a mão.
— Acabo: gosta dele.
— Acertou.
O tom era de chasco, mas a idéia
acordou-lhe outra, — uma idéia má, pueril, de comédia, — uma idéia de
simulação, para o fim de obter pela inveja o que não obtivera pela sugestão de
um afeto melhor. Como a esperança é um alimento eterno, Henriqueta viu luzir no rosto da amiga
uma certa expressão, que lhe pareceu de júbilo; viu, e perguntou a si mesma —
se deveras Fernandinha amava o outro;
mas lembrou-lhe os dias passados e abanou a cabeça.
Isto passava-se de noite, pouco
depois de oito horas. Às nove retirou-se Fernandinha. Henriqueta ficando só com o
irmão, pôs-lhe as mãos nos ombros, olhou longo tempo para ele, e disse rindo.
— Urso!
Julião olhou para ela espantado.
— Urso! repetiu a irmã, e retirou-se
apressada.
X
Julião ficou muito impressionado com
a palavra da irmã. Suspeitou que Fernandinha lhe houvesse feito alguma
confidência, e que a repetição daquele nome fosse uma espécie de declaração
indireta. Era esta justamente a intenção de Henriqueta; e as coisas levariam
outro rumo, se fosse diferente o gênio de ambos.
No dia seguinte, ao encontrarem-se os
dois irmãos, trocaram um olhar interrogativo, mas nenhum deles ousou responder nada.
Henriqueta lançou mão de um recurso; mandou dizer a Fernandinha que fosse
jantar com ela. Tinha idéia de os lançar nos braços um do outro, não
literalmente, mas de um modo que chegariam, ao cabo de algum tempo, a esse
resultado. Infelizmente, o Julião não apareceu em casa; jantou na cidade com
Pimentel.
O Pimentel acompanhou-o depois à
casa, à noite, seriam oito horas. Fernandinha estava picada, com a ausência de
Julião, e recebeu-o de um modo arrufado e quase triste. Ao contrário, em
relação a Pimentel, suas maneiras foram outras, outras as palavras, outros o
gesto e o tom. Nessa mesma diferença podia Julião ler alguma coisa que lhe
seria propícia; mas ele não conhecia o coração das mulheres, não praticara jamais essa espécie de
luta das afeições; viu naquilo uma preterição.
O caso abalou-o; durante aquelas
poucas horas dissimulou como pôde, mas a nova fase das coisas parecia feri-lo
cruamente. Talvez Fernandinha lhe notou a impressão, porque recrudesceu de
afabilidade com o Pimentel, — fez-se o que era, graciosa, estouvada, alegre; —
e se a nota intencional era um pouco mais forte do que seria a natural, não deu
por isso o irmão de Henriqueta; ele próprio padecia muito.
Mas Henriqueta não padecia menos.
Certo, ela via no rosto de Pimentel, ao lado de Fernandinha, alguma coisa
parecida com a benevolência superior que se tem
com as crianças, — um certo ar que excluía
qualquer interesse de natureza mais íntima; além disso, via os olhos do
provinciano dirigirem-se muita vez para ela, com a expressão que tinham alguns meses antes,
e ela então fugia com os seus. Não obstante, padecia; tinha o ciúme exclusivo
que treme até dos mais pueris afagos.

— Urso! pensava ela olhando para o
irmão.
E, ao vê-lo tão severo, tão grave, ao
contemplar nele o chefe amante e amado da família, sempre tão desvelado e bom,
lembrava-lhe a recomendação do pai: — Vivam um para o outro; — e ia ter com
ele, e como que o consolava e se consolava daquele voluntário abandono.
Uma palavra bastava para dar à
situação um desenlace feliz e breve; ambos, porém, se obstinavam no silêncio; nenhum deles
adivinhara o outro.
Essa primeira noite foi amarga para
os dois; as seguintes não o foram menos; logo depois o foram de todo. No fim de oito
dias, Henriqueta tentou sondar ainda uma vez o irmão; via-o triste, e suspeitou
a verdade; este, que não suspeitara nada,
furtou-se à curiosidade da irmã.
Henriqueta abanou a cabeça, e depois
de um instante de reflexão, disse resolutamente:
— Você gosta de Fernandinha!
Julião fez uma careta de desdém; foi
a sua única resposta; Henriqueta contentou-se com ela. Mas se se contentou com
a resposta, não se contentou com a solução; era-lhe preciso, à fina força,
levá-los ao amor e ao casamento.
Passaram mais oito dias. Uma noite,
indo Henriqueta à casa de Fernandinha, achou lá o Pimentel, que já ali tinha
estado uma vez ou duas. Achou-os bem; pareceu-lhe sentir que era demais.
— Demais? pensou ela com um gesto de
orgulho.
Era demais. Pimentel e Fernandinha
tinham aceitado, por despeito, uma situação dúbia e dissimulada; mas o coração,
que nem sempre é bom calculista, trocara as intenções, e eles começaram a
sentir-se bem ao pé um do outro, e a descobrir que eram bonitos, capazes de
amar, e capazes de ser amados. Daí ao amor não distava um oceano, talvez um rio
estreito; e esse rio eles o transpuseram, numa noite de luar, ao pé da janela,
— tal qual numa balada romântica.
Henriqueta e Julião não gastaram
muito tempo a compreender o verdadeiro estado
das coisas; e quando compreenderam tiveram um instante de despeito, arrependeram-se
da abstenção, da resistência, da dissimulação imposta aos sentimentos que havia
neles; mas lembravam-se um do outro, e aprovavam-se.
Um dia tiveram notícia oficial de que
ia efetuar-se o casamento de Pimentel e Fernandinha.
Julião recebeu-a com impassibilidade; Henriqueta chorou muito durante a noite.
No dia seguinte viu-lhe Julião os olhos vermelhos.
— Você chorou?
— Não, murmurou a moça.
— Chorou, sim; porque foi?
Henriqueta calou-se.
— Porque foi, Henriqueta? insistiu
Julião assustado.
A resposta de Henriqueta foi
lançar-lhe os braços ao pescoço, e pousar-lhe a fronte no ombro. Julião
levantou-lhe brandamente a cabeça; olhou para ela; teve uma súbita intuição da
realidade.
— Henriqueta! disse ele. Você.., você
o amava?
A moça baixou os olhos; Julião
entendeu tudo; deixou-se cair numa cadeira, com o rosto nas mãos. Foi a vez de
Henriqueta, que se chegou a ele, arredou-lhe as mãos, viu-lhe a expressão
abatida do rosto; não lhe perguntou nada. Com as mãos cingidas, os olhos para o
azul do céu, ficaram assim longo tempo a saborear a dor de seu voluntário e
ocioso sacrifício. Compreenderam que nenhum deles quisera ser o primeiro a
deixar a família, e daí a inércia e a dissimulação. Talvez nessa hora viam, ao
longe, a figura lívida do pai; talvez lhe escutassem a palavra última: — Vivam um para o outro.
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Nota:
Texto-fonte: Contos de Machados
de Assis: Relicários e raisonnés, de Mauro Rosso, Editora PUC Rio, Edições
Loyola, Rio de Janeiro, 2008. Publicado originalmente em A Estação, de 30/07 a
15/10/1879.
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