O ASTRÓLOGO
Nunca houve talvez nesta boa cidade
quem melhor empunhasse a vara de almotacé que o ativo e sagaz Custódio Marques,
morador defronte da sacristia da Sé
durante o curto vice-reinado do conde de Azambuja. Era homem de seus quarenta e
cinco anos, cheio de corpo e de alma — a julgar pela atenção e fervor com que
desempenhava o cargo, imposto pela vereança da terra e pelas leis do Estado. Os
mercadores não tinham mais figadal inimigo do que esse olho da autoridade
pública. As ruas não conheciam maior vigilante. Assim como uns nascem pastores
e outros príncipes, Custódio Marques nascera almotacé; era a sua vocação e
apostolado.
Infelizmente, como todo o excesso é
vicioso, Custódio Marques, ou por natureza, ou por hábito, transpôs a fronteira
de suas atribuições, e passou do exame das medidas ao das vidas alheias, e
tanto curava de pesos como de costumes. Dentro de poucos meses, tornou-se o
maior indagador e sabedor do que se passava nas casas particulares com tanta
exação e individuação, que, uma sua comadre, assídua devota do Rosário, apesar
da fama longamente adquirida, teve de lhe ceder a primazia.
— Mas, senhor compadre — dizia ela
trespassando no alvo seio volumoso o seu lenço de algodão do tear de José Luís,
à Rua da Vala; não, senhor compadre, justiça,
justiça. Eu tinha presunção de me não escapar nada ou pouca coisa; mas confesso
que você é muito mais fino do que eu.
— E ainda não sei tudo o que queria,
comadre Engrácia, replicou ele com modéstia; há, por exemplo, uma coisa que me
quebra a cabeça há quinze dias. Pois olhe que não tenho perdido tempo!
— O que é, compadre? — disse ela
piscando-lhe os olhos de curiosidade e impaciência. Não é certamente o namoro
do sargento-mor Fagundes com a irmã daquele mercador da Rua da Quitanda...
— Isso é coisa velha e re-velha,
respondeu Custódio levantando os ombros com desdém. Se até o irmão da sujeita
já deu pela coisa, e mandou dizer ao Fagundes que fosse cuidar dos filhos, se não queria
apanhar uma sova de pau. Afinal, são lérias do mercador. Quem não sabe que a
irmã vivia, ainda há pouco tempo... Cala-te, boca!
— Diga, compadre!
— Nada, não digo. É quase meio-dia, e
o feijão lá está a minha espera.
A razão dada pelo almotacé tinha só
de verdadeira a coincidência cronológica. Era exato estar próxima a hora do
jantar. Mas o verdadeiro motivo de interromper a conversa, que se passava à
porta da casa da Sra. Engrácia foi ter visto o nosso almotacé, ao longe, a
esbelta figura do juiz de fora. Custódio Marques espediu-
se da comadre e seguiu no encalço do
juiz. Logo que se achou a umas oito braças dele, afrouxou o passo e assumiu o
ar distraído que até então ninguém pudera imitar. Olhava para o chão, para o
interior das lojas, para trás, para todos os lados, menos para a pessoa que era objeto da
espionagem e contudo não a perdia de vista, não lhe escapava um único
movimento.
O juiz, entretanto, dirigia-se pela
Rua da Mãe dos Homens abaixo até à Rua Direita, que era onde morava. Custódio
Marques viu-o entrar em casa e retrocedeu para a rua.
— Diabo! dizia ele consigo.
Naturalmente, vinha de lá... se é que lá vai de dia... Mas onde é?... Ficará para outra vez.
O almotacé seguiu a passo rápido para
casa, não sem parar alguns minutos nas esquinas, a varrer a rua transversal com
o seu par de olhos de lince. Ali chegando,
achou efetivamente o jantar na mesa, um jantar corretamente nacional, puro dos deliciosos galicismos que
nos trouxe a civilização.
Vieram para a mesa D. Esperança,
filha do almotacé, e D. Joana da Purificação, sua irmã, a quem, por morte da
mulher de Custódio Marques, coube a honra de reger a casa. Esperança possuía os
mais belos olhos negros da cidade. Haveria cabelos mais lindos, boca mais
graciosa, tez mais pura. Olhos, não; nesse particular, podia Esperança medir-se
com os mais afamados da colônia. Eram pretos, grandes, rasgados; sobretudo
tinham um certo jeito de despedir as setas, capaz de deitar abaixo o mais
destro guerreiro. A tia, que a amava em extremo, trazia-a muito abençoada e
coberta de mimos; servia-lhe de mãe, camareira e mestra; levava-a às igrejas e
procissões, a todas as festas, quando porventura o irmão, por motivo do cargo
oficial ou do cargo oficioso, não as podia acompanhar.
Esperança beijou a mão ao pai, que a
contemplou com olhos cheios de ternura e projetos. Eram estes casá-la, e
casá-la nada menos que com um sobrinho do juiz de fora, homem da nobreza da
terra, e noivo muito ambicionado de solteiras e viúvas. O almotacé não
alcançara até então enredar o moço nas graças da filha; mas forcejava por isso.
Uma coisa o tranqüilizava: é que de suas pesquisas não colhera notícia de
nenhuma pretensão amorosa da parte do rapaz. Era já muito não ter adversários
que combater.
Esperança, entretanto, fazia cálculos
muito diferentes, e tratava igualmente de os pôr em execução. Seu coração, ao
passo que se não rendia à nobreza do sobrinho do juiz, sentia notável inclinação para o
filho do boticário José Mendes — o jovem Gervásio Mendes, com quem se carteava
e palestrava à noite, à janela, quando o pai andava em suas indagações por fora, e a
tia jogava a bisca com o sacristão da Sé. Esse namoro de uns quatro meses não
tinha ares de ceder aos planos de Custódio Marques.
Abençoada a filha, e comido o jantar,
foi Custódio Marques cochilar a sesta durante meia hora. A tarde gastou-a ao
gamão, na botica vizinha, cujo dono, mais insigne naquele jogo que no preparo
das drogas, estatelava igualmente os parceiros e os fregueses. A diferença
entre os dois é que para o boticário o gamão era um fim, e para o almotacé um
meio. Os dedos corriam e o almotacé ia misturando
os remoques próprios do jogo com mil perguntas, ora claras, ora disfarçadas,
acerca das coisas que lhe convinha saber; o boticário não hesitava em lhe dar
conta das novidades.
Naquela tarde não havia nenhuma. Em
compensação, havia um pedido.
— Você, Sr. Custódio, é que me podia
fazer um grande favor, disse o boticário.
— Qual?
— Aquele negócio dos chãos da Lagoa.
Sabe que o senado da Câmara embirra em os tomar para si, quando é positivo que
pertencem a meu filho José. Se o juiz de fora quisesse, podia fazer muito neste
negócio; e você que é tão íntimo dele...
— Homem, amigo sou, disse Custódio
Marques lisonjeado com as palavras do boticário; mas seu filho, deixe-me que
lhe diga... sei tudo.
— Tudo o quê?
— Ora! Sei que quando o conde da
Cunha tinha de organizar os terços de infantaria
auxiliar, seu filho José, não alcançando a nomeação de oficial que desejava, e
vendo-se ameaçado de ser alistado na tropa, foi lançar-se aos pés daquela
mulher espanhola, que morou na Rua dos Ourives... Pois deveras não sabe?
— Diga, diga, Sr. Custódio.
— Lançou-se-lhe aos pés para lhe
pedir proteção. A sujeita namorou-se dele; e, não lhe digo nada, foi ela quem
lhe emprestou o dinheiro com que ele comprou um privilégio da redenção dos
cativos, mediante o qual seu filho livrou-se da farda.
— Que peralta! A mim disse-me ele que
o cônego Vargas...
— Isto, Sr. José Mendes, foi muito
malvisto pelos poucos que o souberam. Um deles é o juiz de fora, que é homem
severo, apesar...
Custódio Marques engoliu o resto da
frase, concluiu-a por outro modo, e saiu prometendo que, em todo caso, iria
falar ao juiz. Efetivamente ao anoitecer lá estava em casa deste. O juiz de
fora tratava o almotacé com particular distinção. Era ele o melhor remédio das
suas melancolias, o mais serviçal sujeito para tudo quanto fosse de seu agrado.
Logo que ele entrou, disse-lhe o dono da casa:
— Ora, venha cá, Sr. espião, porque
me andou você hoje a acompanhar um longo pedaço de tempo?
Custódio Marques empalideceu; mas foi
rápida a impressão.
— O que havia de ser? disse ele
sorrindo. Aquilo... aquilo que eu lhe disse uma vez, há dias..
— Há dias?
— Sim, senhor. Ando a ver se descubro
uma coisa. Vossa Senhoria, que sempre gostou tanto de moças, é impossível que
não tenha por aí alguma aventura...
— Deveras? perguntou rindo o juiz de
fora.
— Há de haver alguma coisa; e eu hei
de descobri-la. Vossa Senhoria sabe se eu tenho faro para tais empresas. Só se
me jurar que...
— Não juro, que não é caso disso; mas
posso tirar-te o trabalho da pesquisa. Vivo com recato, como todos sabem; tenho
deveres de família...
— Qual! tudo isso é nada quando um
rosto bonito... que ele há de ser bonito por força; nem Vossa Senhoria é pessoa
que se deixe aí levar por qualquer figura... Eu verei o que há. Olhe, o que eu
posso afiançar é que o que descobrir cá vai comigo para a sepultura. Nunca fui homem de
dar com a língua nos dentes.
O juiz de fora riu muito, e Custódio
Marques passou daquele assunto para o do filho do boticário, mais por descargo de
consciência que por verdadeiro interesse. Contudo, é força confessar que a
vaidade de mostrar ao vizinho José Mendes que ele podia influir alguma coisa,
sempre lhe afiou a língua um pouco mais do que queria. A conversa foi interrompida por um
oficial que trazia ao juiz de fora um recado do conde de Azambuja. O magistrado
leu a cartinha do vice-rei e empalideceu
um pouco. Não escapou esta circunstância ao almotacé, cuja atenção
encarapitou-se toda nos seus olhinhos vivos e perspicazes, enquanto o juiz
dizia ao oficial que não tardaria em obedecer às ordens de S. Exª.
— Alguma importunação, naturalmente,
disse Custódio Marques com ar de quem queria ser discreto. São as obrigações do
cargo; ninguém foge a elas. Vossa Senhoria precisa de mim?
— Não, Sr. Custódio.
— Se precisa, não tenha cerimônia.
Bem sabe que eu nunca estou melhor do que ao seu serviço. Se quiser um recado
qualquer...
— Um recado? repetiu o magistrado
como quem efetivamente precisava de mandar
algum.
— O que quiser; fale Vossa Senhoria,
que há de ser logo obedecido.
O juiz de fora refletiu um instante,
e recusou. O almotacé não teve outro remédio senão deixar a companhia de seu
amigo e protetor. Eram nove horas dadas. O juiz de fora preparou-se para acudir
ao chamado do vice-rei; dois escravos, com lanternas, o precederam na rua,
enquanto Custódio Marques volvia para casa, sem lanterna, apesar das instâncias do
magistrado para que aceitasse uma.
A lanterna era um obstáculo para o
funcionário municipal. Se a iluminação pública, que só começou no vice-reinado
do conde de Resende, fosse naquele tempo sujeita ao voto do povo, pode-se
afirmar que o almotacé lhe seria contrário. A escuridão era uma das vantagens
de Custódio Marques. Ele a aproveitava em escutar às portas ou surpreender as
entrevistas dos namorados às janelas. Naquela noite, porém, mais que tudo o
preocupava o chamado do vice-rei e a impressão que ele fez ao juiz de fora. Que
seria? Custódio Marques ia cogitando
nisso e pouco no resto da cidade. Ainda assim, pôde ouvir alguma coisa da
conspiração de vários devotos do Rosário, em casa do barbeiro Matos, para derribar
a atual mesa da Irmandade, e viu sair cinco ou seis indivíduos da casa de D.
Emerenciana, à Rua da Quitanda, onde ele já havia descoberto que se jogava todas
as noites. Um deles, pela fala, pareceu-lhe que era o filho de José Mendes.
— Nisso é que se ocupa aquele
peralta! dizia ele consigo.
Mas enganava-se o almotacé.
Justamente à hora em que da casa de D. Emerenciana
saíam os tais sujeitos, despedia-se Gervásio Mendes da formosa Esperança, com
quem conversara à janela, desde as sete horas e meia. Gervásio queria prolongar
a conversa, mas a filha do almotacé pediu-lhe instantemente que fosse, visto
ser hora de voltar o pai. Além disso, a tia de Esperança, irritada com cinco ou seis capotes que lhe dera o
sacristão, jurava pelas bentas setas do mártir padroeiro nunca mais pegar em
cartas. Verdade é que o sacristão, filósofo e prático, baralhava as cartas com
exemplar modéstia, e vencia o despeito de D. Joana, à força de lhe dizer que a
fortuna anda e desanda, e que a partida seguinte
bem lhe podia ser adversa. D. Joana entre as cartas e as setas escolheu o que
lhe parecia ser menos mortífero.
Gervásio cedeu também às rogativas de
Esperança.
— Sobretudo, dizia esta, não fiques
zangado com papai por ele haver dito...
— Oh! se tu souberes o que foi!
interrompeu o filho do boticário. Foi uma calúnia, mas tão torpe que não te
posso repetir. Estou certo de que o Sr. Custódio Marques não a inventou;
repetiu-a somente e fez mal. E foi por culpa dele que meu pai me ameaçou hoje com uma sova de pau.
Pau, a mim! E por causa do Sr. Custódio
Marques!
— Mas ele não te quer mal...
— Eu sei lá!
— Não quer, não, insistiu a moça com
meiguice.
— Pode ser que não; mas com os
projetos que tem a teu respeito, se vier a saber que tu gostas de mim... E daí
pode ser que tu mesma cedas e cases com o...
— Eu! Nunca! Antes meter-me freira.
— Juras?
— Gervásio!
Estalou um beijo que fez levantar a
cabeça à tia Joana, e o sacristão explicou dizendo que lhe parecia o chiar de
um grilo. O grilo arrancou-se, enfim, à companhia da gentil Esperança, e tinha
já tempo de estar acomodado na sua alcova, quando Custódio Marques chegou a
casa. Achou tudo em paz. D. Joana levantava a banca do jogo, o sacristão despedia-se,
Esperança recolhera-se ao seu quarto. O almotacé encomendou-se aos santos de
sua devoção, e dormiu na paz do Senhor.
A palidez do juiz de fora não saiu,
talvez, da cabeça do leitor; e, tanto como o almotacé, está ele curioso de
saber a causa do fenômeno. A carta do vice-rei dizia respeito a negócio do
Estado. Era lacônica; mas terminava com uma frase mortal para o magistrado:
“Pode ser que o serviço de S. Majestade exija de Vossa Senhoria uma jornada de
algumas semanas. Venha ter comigo imediatamente”. Se o juiz de fora fosse
obrigado ao serviço extraordinário de que lhe falava o conde de Azambuja,
interrompia-se um romance, começado cerca de dois meses antes, em que era
protagonista uma interessante viuvinha de vinte e seis stios. Esta viuvinha era da província de Minas
Gerais; descera da terra natal para entregar em mão do vice-rei uns papéis que
queria submeter a Sua Majestade, e ficou presa nas maneiras obsequiosas do juiz
de fora.
Alugou casa perto do convento da
Ajuda, e ali estava morando, a título de ver a Capital. O romance assumiu
proporções grandes, complicou-se o enredo, avultaram as descrições e as
peripécias, e a obra ameaçava estender-se a muitos volumes. Nestas
circunstâncias exigir do magistrado que se alongasse da Capital algumas semanas,
era exigir o mais difícil e aspérrimo. Imagine-se com que alma saiu dali o
magistrado.
Qual fosse o negócio de Estado que
obrigou aquele chamado noturno, não o sei eu, nem importa sabê-lo. O essencial
é que durante três dias ninguém arrancou um sorriso aos lábios do magistrado, e que no
terceiro dia volveu-lhe a alegria mais espontânea e viva, que até ali tivera.
Adivinha-se que a necessidade da jornada
desapareceu e que o romance não ficava truncado.
O almotacé foi dos primeiros que
viram esta mudança. Preocupado com a tristeza do juiz de fora, não menos o
ficou ao vê-lo novamente satisfeito.
— Não sei qual foi o motivo da
tristeza de Vossa Senhoria, disse ele, mas espero mostrar-lhe quanto me alegro
com vê-lo tornado às suas usuais venturas.
Efetivamente, o almotacé tinha dito à
filha que era necessário dar um mimo qualquer,
de suas mãos, ao juiz de fora, com quem, se a fortuna a ajudasse, viria a ser
aparentada. Custódio Marques não viu o golpe que a filha recebeu com esta palavra; exigia o cargo municipal que ele
fosse dali a serviço, e foi, deixando a alma da menina doente de maior aflição.
Entretanto, a alegria do juiz de
fora era tal, e tão
agudo se ia
tornando o romance, que já o feliz magistrado observava
menos as costumadas cautelas. Um dia, cerca das seis horas da tarde, passando o
almotacé pela Rua da Ajuda, viu sair de uma casa, de nobre aparência, a
venturosa figura do magistrado. Sua atenção encrespou as orelhas;
e os olhos perspicazes faiscaram de contentamento. Haveria ali um fio? Logo
que viu longe o juiz de fora, aproximou-se da casa, como farejando; dali foi à
loja mais próxima, onde soube que na dita casa morava a interessante viúva mineira. A
eleição de vereador ou um presente de
quatrocentos africanos, não o contentaria mais.
— Tenho o fio! dizia ele consigo.
Resta-me ir ao fundo do labirinto.
Daí em diante, não houve assunto que
distraísse o espírito investigador do almotacé. De dia e de noite, vigiava a
casa da Rua da Ajuda, com pertinácia e dissimulação raras; e tão feliz foi que,
no fim de cinco dias, tinha certeza de tudo. Auxiliou-o nisso a indiscrição de alguns
escravos. Uma vez sabedor da aventura, deu-se
pressa em correr à casa do juiz de fora.
— Ainda agora aparece! exclamou este
logo que o viu entrar.
— Vossa Senhoria fez-me a honra de
mandar chamar?
— Há meia hora que andam dois
emissários em sua procura.
— Eu estava em serviço de Vossa
Senhoria.
— Como?
— Não lhe dizia eu que havia de
descobrir alguma coisa? perguntou o almotacé piscando os olhos.
— Alguma coisa!
— Sim, aquilo... Vossa Senhoria sabe
a que me refiro... Meteu-se-me em cabeça que Vossa Senhoria não podia
escapar-me.
— Não compreendo.
— Não compreende Vossa Senhoria outra
coisa, disse Custódio Marques deliciando-se com o repassar do ferro na
curiosidade do protetor.
— Mas, Sr. Custódio, trata-se...
Trate-se do que se tratar; declaro a
Vossa Senhoria que sou de segredo, e por isso nada direi a ninguém. Que havia
de haver algum bico d’obra, era verdade; andei à espreita, e afinal descobri a
moça... a moça da Rua da Ajuda.
— Sim?
— É verdade. Fiz a descoberta há
dias; mas não vim logo porque queria certificar-me bem. Agora, posso dizer-lhe
que... sim, senhor... aprovo. É muito bonita.
— Andou então na investigação dos meus
passos?
— Vossa Senhoria compreende que não
há outra intenção...
Pois, Sr. Custodio Marques, mandei-o
chamar por toda a parte, visto que há cerca de três quartos de hora tive
notícia de que sua filha fugiu de casa...
O almotacé deu um pulo; seus dois
olhinhos cresceram desmesuradamente; a boca, aberta, não ousava proferir uma só
palavra.
— Fugiu de casa, continuou o
magistrado, segundo notícia que tenho, e creio que...
— Mas com quem? para onde? articulou
enfim o almotacé.
— Fugiu com o Gervásio Mendes. Vão na
direção da Lagoa da Sentinela...
— Sr. Dr.... Peço-lhe perdão, mas,
bem sabe... bem sabe...
— Vá, vá...
Custódio Marques não atinava com o
chapéu. Deu-lho o juiz de fora.
— Corra...
— Olhe a bengala!
O almotacé recebeu a bengala.
— Obrigado! Quem tal diria! Ah! nunca
pensei... que minha filha, e aquele peralta... Deixe-os comigo...
— Não perca tempo.
— Vou... vou.
— Mas, olhe cá, antes de ir. Um
astrólogo contemplava os astros, com tamanha atenção, que caiu num poço. Uma
velha da Trácia, vendo-o cair, soltou esta exclamação: “Se ele não via o que
lhe estava aos pés, para que havia de investigar o que lá fica tão em cima!”
O almotacé compreenderia o apólogo,
se pudesse ouvi-lo. Mas não ouviu nada. Desceu as escadas a quatro e quatro
bufando como um touro.
Il
court encore.
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