O ESCRIVÃO COIMBRA
Aparentemente há poucos espetáculos
tão melancólicos como um ancião comprando um bilhete de loteria. Bem
considerado, é alegre; essa persistência
em crer, quando tudo se ajusta ao descrer, mostra que a pessoa é ainda forte e
moça. Que os dias passem e com eles os bilhetes
brancos, pouco importa; o ancião estende os dedos para escolher o número que há
de dar a sorte grande amanhã — ou depois — um dia enfim, porque todas as coisas podem
falhar neste mundo, menos a sorte grande
a quem compra um bilhete com fé.
Não era a fé que faltava ao escrivão
Coimbra. Também não era a esperança. Uma
coisa não vai sem outra. Não confundas a fé na Fortuna com a fé religiosa.
Também tivera esta em anos verdes e maduros,
chegando a fundar uma irmandade, a irmandade de S. Bernardo, que era o santo de seu nome; mas aos
cinqüenta, por efeito do tempo ou de leituras, achou-se incrédulo. Não deixou
logo a irmandade; a esposa pôde contê-lo
no exercício do cargo de mesário e levava-o às festas do santo; ela, porém,
morreu, e o viúvo rompeu de vez com o
santo e o culto. Resignou o cargo da mesa e fez-se irmão remido para não tornar lá. Não buscou
arrastar outros nem obstruir o caminho da oração; ele é que já não rezava por
si nem por ninguém. Com amigos, se eram
do mesmo estado de alma, confessava o
mal que sentia da religião. Com familiares, gostava de dizer pilhérias sobre devotas e padres.
Aos sessenta anos já não cria em
nada, fosse do céu ou da terra, exceto a loteria. A loteria, sim, tinha toda a
sua fé e esperança. Poucos bilhetes comprava a princípio, mas a idade, e depois
a solidão, vieram apurando aquele
costume e o levaram a não deixar passar loteria
sem bilhete.
Nos primeiros tempos, não vindo a
sorte grande, prometia não comprar mais
bilhetes, e durante algumas loterias cumpria a promessa. Mas lá aparecia alguém que o
convidava a ficar com um bonito número,
comprava o número e esperava. Assim veio andando pelo tempo fora até chegar aquele em que
loterias rimaram com dias, e passou a comprar seis bilhetes por semana;
repousava aos domingos. O escrevente juramentado, um Amaral que ainda vive, foi
o demônio tentador nos seus desfalecimentos. Tão depressa descobriu a devoção
do escrivão, começou a animá-lo nela, contando-lhe lances de pessoas que tinham
enriquecido de um momento para outro.
— Fulano foi assim, Sicrano assim,
dizia-lhe Amaral expondo a aventura de
cada um.
Coimbra ouvia e cria. Já agora cedia
às mil maneiras de convidar a sorte, a que a superstição pode emprestar
certeza, número de uns autos, soma de umas custas, um arranjo casual de
algarismos, tudo era combinação para encomendar bilhetes, comprá-los e esperar.
Na primeira loteria de cada ano comprava o número do ano; empregou este método desde 1884. Na última loteria de
1892 inventou outro, trocou os algarismos da direita para a esquerda e comprou
o número 2981. Já então não cansava por duas razões fundamentais e uma acidental.
Sabeis das primeiras, a necessidade e o costume, a última é que a Fortuna
negaceava com gentileza. Nem todos os bilhetes saíam brancos. Às vezes (parecia
de propósito) Coimbra dizia de um bilhete que era o último e não compraria
outro se lhe saísse branco; corria a
roda, tirava cinqüenta mil-réis, ou cem, ou vinte, ou ainda o mesmo dinheiro. Quer dizer que também podia
tirar a sorte grande; em todo caso, aquele dinheiro dava para comprar de graça
alguns bilhetes. “Comprar de graça” era a sua própria expressão. Uma vez a sorte
grande saiu dois números adiante do dele, 7377; o dele era 7375. O escrivão criou alma nova.
Assim viveu os últimos anos do
império e os primeiros da república, sem já crer em nenhum dos dois regimes.
Não cria em nada. A própria justiça em que era oficial, não tinha a sua fé;
parecia-lhe uma instituição feita para conciliar ou perpetuar os desacordos
humanos, mas por diversos e contrários
caminhos, ora à direita, ora à esquerda. Não conhecendo as Ordenações do Reino,
salvo de nome, nem as leis imperiais e republicanas, acreditava piamente que
tanto valiam na boca de autores como de réus, isto é, que formavam um
repositório de disposições avessas e
cabidas a todas as situações e pretensões. Não lhe atribuas nenhum ceticismo
elegante; não era dessa casta de espíritos
que temperam a descrença nos homens e nas coisas com um sorriso fino e amigo. Não, a descrença era
nele como uma capa esfarrapada.
Uma só vez saiu do Rio de Janeiro;
foi para ir ao Espírito Santo à cata de
uns diamantes que não achou. Houve quem dissesse que essa aventura é que lhe pegou o gosto e a fé na
loteria; também não faltou quem
sugerisse o contrário, que a fé na loteria é que lhe dera a vista antecipada dos diamantes. Uma e outra
explicação é possível. Também é possível
terceira explicação, alguma causa comum a diamantes e prêmios. A alma humana é tão sutil
e complicada que traz confusão à vista
nas suas operações exteriores. Fosse como fosse, só daquela vez saiu do Rio de
Janeiro. O mais do tempo viveu nesta
cidade, onde envelheceu e morreu. A irmandade de S. Bernardo tomou a si dar-lhe
cova e túmulo, não que lhe faltassem a ele meios disso, como se vai ver, mas
por uma espécie de obrigação moral com o seu fundador.
Morreu no começo da presidência
Campos Sales, em 1899, fins de abril. Vinha de assistir ao casamento do
escrevente Amaral, na qualidade de testemunha, quando foi acometido de uma
congestão, e antes da meia-noite era defunto. Os conselhos que se lhe acharam
no testamento podem todos resumir-se nesta palavra: persistir. Amaral requereu traslado daquele documento para uso e guia do
filho, que vai em cinco anos, e entrou para o colégio. Fê-lo com sinceridade, e
não sem tristeza, porque a morte de Coimbra sempre lhe pareceu efeito de seu
caiporismo; não dera tempo a nenhuma lembrança afetuosa do velho amigo,
testemunha do casamento e provável compadre.
Antes do golpe que o levou, Coimbra
não padecia nada, não tinha a menor lesão, apenas algum cansaço. Todos os seus
órgãos funcionavam bem, e o mesmo
cérebro, se nunca foi grande coisa, não era agora menos que dantes. Talvez a
memória acusasse alguma debilidade, mas ele consolava-se do mal dizendo que
“com a memória lhe saíram muitas coisas ruins da cabeça”. No foro era benquisto
e no cartório respeitado. Em 1897, pelo S. João, o escrevente Amaral insinuou-lhe a conveniência de descansar e
propôs-se a ficar à testa do cartório para seguir “o exemplo fortificante do
amigo”. Coimbra recusou, agradecendo. Entretanto, não deixava de temer que
viesse a fraquear e cair de todo, sem
mais corpo nem alma que dar ao ofício. Já
não saía do cartório, às tardes, sem um olhar de saudades prévias.
Chegou o Natal de 1898. Desde a
primeira semana de dezembro foram postos à venda os bilhetes da grande loteria
de quinhentos contos, chamada por alguns
cambistas, nos anúncios, loteria-monstro. Coimbra comprou um. Parece que dessa
vez não cedeu a nenhuma combinação de algarismos; escolheu o bilhete dentre os
que lhe apresentaram no balcão. Em casa,
guardou-o na gaveta da mesa e esperou.
— Desta vez, sim, disse ele no dia
seguinte ao escrevente Amaral, desta vez cesso de tentar fortuna; se não tirar
nada, deixo de jogar na loteria.
Amaral ia aprovar a resolução, mas
uma idéia contrária suspendeu a palavra antes que ela lhe caísse da boca, e ele
trocou a afirmação por uma consulta. Por
que deixar para sempre? Loteria é mulher, pode acabar cedendo um dia.
— Já não estou em idade de esperar,
retrucou o escrivão.
— Esperança não tem idade, sentenciou
Amaral, recordando uns versos que fizera outrora, e concluiu com este velho
adágio: Quem espera sempre alcança.
— Pois eu não esperarei e não
alcançarei, teimou o escrivão; este bilhete é o último.
Tendo afirmado a mesma coisa tantas vezes,
era provável que ainda agora desmentisse a afirmação, e, malogrado no dia de
Natal, voltaria à sorte no dia de Reis.
Foi o que Amaral pensou e não insistiu em convencê-lo de um vício que estava no
sangue. A verdade, porém, é que Coimbra
era sincero. Tinha aquela tentação por última. Não pensou no caso de ser
favorecido, como de outras vezes, com alguns cinqüenta ou cem mil-réis, quantia mínima para
os efeitos da ambição, mas bastante para convidá-lo a reincidir. Pôs a alma
nos dois extremos: nada ou quinhentos
contos. Se fosse nada, era o fim. Faria como fez com a irmandade e a religião;
deitaria o hábito às urtigas, remia-se
de freguês e iria ouvir a missa do Diabo.
Os dias começaram a passar, como eles
costumam, com as suas vinte e quatro horas iguais umas às outras, na mesma
ordem, com a mesma sucessão de luz e trevas, trabalho e repouso. A alma do escrivão aguardava o dia 24, véspera do Natal,
quando devia correr a roda, e continuou os traslados, juntadas e conclusões dos
seus autos. Convém dizer, em louvor
deste homem, que nenhuma preocupação estranha lhe tirara o gosto à escrivania,
por mais que preferisse a riqueza ao
trabalho.
Só quando o dia 20 alvoreceu e pôs a
menor distância à data fatídica é que a imagem dos quinhentos contos veio
interpor-se de vez aos papéis do foro. Mas não foi só a maior proximidade que
trouxe este efeito, foram as conversas na rua e no mesmo cartório acerca de sortes
grandes, e, mais que conversas, a própria figura de um homem beneficiado com
uma delas, cinco anos antes. Coimbra recebera um tal Guimarães, testamenteiro
de um importador de sapatos, que ali foi assinar um termo. Enquanto se lavrava o termo,
alguém que ia com ele perguntou-lhe se estava “habilitado para a loteria do
Natal”.
— Não, disse Guimarães.
— Também nem sempre há de ser feliz.
Coimbra não teve tempo de perguntar
nada; o amigo do testamenteiro deu-lhe
notícia de que este, em 1893, tirara duzentos contos. Coimbra fitou o testamenteiro cheio de
espanto. Era ele, era o próprio, era
alguém que, mediante uma pequena quantia e um bilhete numerado, entrara na
posse de duzentos contos de réis. Coimbra olhou bem para o homem. Era um homem,
um feliz.
— Duzentos contos? disse ele para
ouvir a confirmação do próprio.
— Duzentos contos, repetiu Guimarães.
Não foi por meu esforço nem desejo, explicou; não costumava comprar, e daquela
vez quase quebro a cabeça ao pequeno que me queria vender o bilhete; era um italiano.
Guardate, signore, implorava ele metendo-me o bilhete à cara. Cansado de ralhar, entrei num corredor e
comprei o bilhete. Três dias depois tinha o dinheiro na mão. Duzentos contos.
O escrivão não errou o termo porque
nele já os dedos é que eram escrivães; realmente, não pensou em nada mais que
decorar esse homem, reproduzi-lo na memória, escrutá-lo, bradar-lhe que também tinha
bilhete para os quinhentos contos do dia 24 e exigir-lhe o segredo de os tirar. Guimarães assinou o termo
e saiu; Coimbra teve ímpeto de ir atrás
dele, apalpá-lo, ver se era mesmo gente, se era carne, se era sangue... Então
era verdade? Havia prêmios? Tiravam-se prêmios grandes? E a paz com que aquele
sujeito contava o lance da compra! Também ele seria assim, se lhe saíssem os
duzentos contos, quanto mais os
quinhentos!
Essas frases cortadas que aí ficam dizem
vagamente a confusão das idéias do
escrivão. Até agora trazia em si a fé, mas já reduzida a costume só, um costume longo e forte, sem
assombros nem sobressaltos. Agora via um homem que passara de nada a duzentos contos
com um simples gesto de fastio. Que ele nem sequer tinha o gosto e a comichão da loteria; ao contrário,
quis quebrar a cabeça da Fortuna; ela, porém, com olhos de namorada, fê-lo
trocar a impaciência em condescendência, pagar-lhe cinco ou dez mil-réis, e três dias depois... Coimbra fez todo o mais
trabalho do dia automaticamente.
De tarde, caminhando para casa,
foi-se-lhe metendo na alma a persuasão dos quinhentos contos. Era mais que os
duzentos do outro, mas também ele merecia mais, teimando como vinha de anos estirados,
desertos e brancos, mal borrifados de algumas centenas, raras, de mil-réis.
Tinha maior direito que o outro, talvez maior que ninguém. Jantou, foi à casa
pegada, onde nada contou pelo receio de não tirar coisa nenhuma e rirem-se
dele. Dormiu e sonhou com o bilhete e o prêmio; foi o próprio cambista que lhe
deu a nova da felicidade. Não se
lembrava bem, de manhã, se o cambista o procurou ou se ele procurou o cambista; lembrava-se bem
das notas, eram parece que verdes,
grandes e frescas. Ainda apalpou as mãos ao acordar; pura ilusão!
Ilusão embora, deixara-lhe nas palmas
a maciez do sonho, o fresco, o verde, o avultado dos contos. Ao passar pelo
Banco da República pensou que poderia levar ali o dinheiro, antes de o empregar
em casas, títulos e outros bens. Esse dia 21 foi pior, em ânsia, que o dia 20.
Coimbra estava tão nervoso que achou o trabalho demasiado, quando de ordinário ficava alegre com a
concorrência de papéis. Melhorou um pouco, à tarde; mas, ao sair, entrou a
ouvir meninos que vendiam bilhetes de
loteria, e esta linguagem, gritada da grande banca pública, novamente lhe fez
agitar a alma.
Ao passar pela igreja onde era
venerada a imagem de S. Bernardo, cuja
irmandade ele fundou, Coimbra deitou olhos saudosos ao passado. Tempos em que ele cria! Outrora faria
uma promessa ao santo; agora...
— Infelizmente, não! suspirou
consigo.
Sacudiu a cabeça e guiou para casa.
Não jantou sem que a imagem do santo viesse espreitá-lo duas ou três vezes, com
o olhar seráfico e o gesto de imortal bem-aventurança. Ao pobre escrivão vinha
agora mais esta mágoa, este outro deserto árido e maior. Não cria; faltava-lhe
a doce fé religiosa, dizia consigo. Saiu a passeio, à noite e, para encurtar caminho, enfiou por um beco. Deixando
o beco, pareceu-lhe que alguém chamava por ele, voltou a cabeça e viu a pessoa
do santo, agora mais celeste; já não era a imagem de madeira, era a pessoa,
como digo, a pessoa viva do grande doutor cristão. A ilusão foi tão completa
que lhe pareceu ver o santo estender-lhe as mãos, e nelas as notas do sonho,
aquelas notas largas e frescas.
Imagina essa noite de 21 e a manhã de
22. Não chegou ao cartório sem passar
pela igreja da irmandade e entrar outra vez nela. A razão que deu a si mesmo foi saber se a gente local
trataria a sua instituição com o zelo do princípio. Achou lá o sacristão, um
velho zeloso que veio para ele com a
alma nos olhos, exclamando:
— Vossa senhoria por aqui!
— Eu mesmo, é verdade. Passei,
lembrou-me saber como é aqui tratado o meu hóspede.
— Que hóspede? perguntou o sacristão
sem entender a linguagem figurada.
— O meu velho S. Bernardo.
— Ah! S. Bernardo! Como há de ser
tratado um santo milagroso como ele é? Vossa Senhoria veio à festa deste ano?
— Não pude.
— Pois esteve muito bonita. Houve
muitas esmolas e grande concorrência. A
mesa foi reeleita, sabe?
Coimbra não sabia, mas disse que sim,
e sinceramente achou que devia sabê-lo; chamou-se descuidado, relaxado, e
voltou para a imagem olhos que supôs contritos e pode ser que o fossem. Ao sacristão
pareceram devotos. Também este elevou os seus à imagem e fez a reverência habitual, inclinando meio
corpo e dobrando a perna. Coimbra não foi tão extenso, mas imitou o gesto.
— A escola vai bem, sabe? disse o
sacristão.
— A escola? Ah! sim. Ainda existe?
— Se existe? Tem setenta e nove
alunos.
Tratava-se de uma escola que ainda em
tempo da esposa do escrivão, a irmandade
fundara com o nome do santo, a escola de S. Bernardo. O desapego religioso do
escrivão chegara ao ponto de não acompanhar
a prosperidade do estabelecimento, quase esquecê-lo de todo. Ouvindo a notícia, ficou pasmado. No
tempo dele não houve mais de uma dúzia
de alunos, agora eram setenta e nove. Por algumas perguntas sobre a administração, soube
que a irmandade pagava a um diretor e três professores. No fim do ano ia haver
a distribuição dos prêmios, grande festa
a que esperavam trazer o arcebispo.
Quando saiu da igreja, trazia Coimbra
não sei que ressurreições vagas e cinzentas. Propriamente não tinham cor, mas
esta expressão serve a indicar uma feição nem viva, como dantes, nem totalmente
morta. O coração não é só berço e
túmulo, é também hospital. Guarda algum doente,
que um dia, sem saber como, convalesce do mal, sacode a paralisia e dá um salto
em pé. No coração de Coimbra o enfermo não deu salto, entrou a mover os dedos e
os lábios, com tais sinais de vida que
pareciam chamar o escrivão e dizer-lhe coisas de outro tempo.
— O último! Quinhentos contos!
bradavam os meninos, quando ele ia a
entrar no cartório. Quinhentos contos! O último!
Estas vozes entraram com ele e
repetiram-se várias vezes durante o dia, ou da boca de outros vendedores ou dos
ouvidos dele mesmo. Quando voltou para
casa, passou novamente pela igreja mas não
entrou; um diabo ou o que quer que era desviou o gesto que ele começou a
fazer.
Não foi menos inquieto o dia 23.
Coimbra lembrou-se de passar pela escola
de S. Bernardo; já não era na casa antiga; estava em outra, uma boa casa assobradada, de sete janelas,
portão de ferro ao lado e jardim. Como é que ele fora um dos primeiros autores
de obra tão conspícua? Passou duas vezes por ela, chegou a querer entrar, mas não
saberia que dissesse ao diretor e temeu o riso dos meninos. Foi para o cartório
e, de caminho, mil recordações lhe restituíam o tempo em que aprendia a ler. Que ele também andou na
escola, e evitou muita palmatoada com
promessas de orações a santos. Um dia, em casa, ameaçado de apanhar por haver tirado ao
pai um doce, aliás indigesto, prometeu
uma vela de cera a Nossa Senhora. A mãe pediu por ele, e alcançou perdoá-lo;
ele pediu à mãe o preço da vela e cumpriu
a promessa. Reminiscências velhas e amigas que vinham temperar o árido preparo dos papéis. Ao mesmo
S. Bernardo fizera mais de uma promessa, quando era irmão efetivo e mesário, e cumpriu-as
todas. Onde iam tais tempos?
Enfim, surdiu a manhã de 24 de
dezembro. A roda tinha de correr ao meio-dia.
Coimbra acordou mais cedo que de costume, mal começava a clarear. Conquanto
trouxesse de cor o número do bilhete, lembrou-se de o escrever na folha da
carteira para havê-lo bem fixo, e no caso de tirar a sorte grande... Esta idéia fê-lo
estremecer. Uma derradeira esperança
(que o homem de fé nunca perde) lhe perguntou sem palavras: que é que lhe
impedia tirar os quinhentos contos? Quinhentos contos! Tais coisas viu neste
algarismo que fechou os olhos deslumbrados. O ar, como um eco, repetiu:
Quinhentos contos! E as mãos apalparam a
mesma quantia.
De caminho, foi à igreja, que achou
aberta e deserta. Não, não estava deserta.
Uma preta velha, ajoelhada diante do altar de S. Bernardo, com um rosário na
mão, parecia pedir-lhe alguma causa, se não é que lhe pagava em orações o
beneficio já recebido. Coimbra viu a postura e o gesto. Advertiu que ele era o
autor daquela consolação da devota e
olhou também para a imagem. Era a mesma do seu tempo. A preta acabou beijando a cruz do rosário,
persignou-se, levantou-se e saiu.
Ia a sair também, quando duas figuras
lhe passaram pelo cérebro: a sorte grande, naturalmente, e a escola. Atrás
delas veio uma sugestão, depois um
cálculo. Este cálculo, por mais que digam do escrivão que ele amava o dinheiro
(e amava), foi desinteressado; era dar
de si muita coisa, contribuir para elevar mais e mais a escola, que era também obra sua. Prometeu dar cem contos
de réis para o ensino, para a escola,
Escola de S. Bernardo, se tirasse a sorte grande. Não fez a promessa
nominalmente, mas por estas palavras sem sobrescrito, e todavia sinceras:
“Prometo dar cem contos de réis à Escola
de S. Bernardo, se tirar a sorte grande”. Já na rua, considerou bem que não
perdia nada se não tirasse a sorte, e ganharia quatrocentos contos, se a
tirasse. Picou o passo e ainda uma vez
penetrou no cartório, onde buscou enterrar-se no trabalho.
Não se contam as agonias daquele dia
24 de dezembro de 1898. Imagine-as quem já esperou quinhentos contos de réis.
Nem por isso deixou de receber e contar
as quantias que lhe eram devidas por atos
judiciais. Parece que entre onze horas e meio-dia, depois de uma autuação
e antes de uma conclusão, repetiu a promessa de cem contos à Escola: “Prometo
dar, etc.” Bateu meio-dia e o coração do Coimbra não bateu menos, com a
diferença que as doze pancadas do relógio
de S. Francisco de Paula foram o que elas são desde que se inventaram relógios,
uma ação certa, pausada e acabada, e as do coração daquele homem foram precipitadas,
convulsas, desiguais, sem acabar nunca.
Quando ele ouviu a última de S. Francisco, não se pôde ter que não pensasse
mais vivo na roda ou o que quer que era que faria sair os números e os prêmios
da loteria. Era agora... Teve idéia de ir dali saber notícias, mas recuou. Mal
se concebe tanta impaciência em jogador
tão velho. Parece que estava adivinhando o que lhe ia acontecer.
Desconfias o que lhe aconteceu? Às
quatro horas e meia, acabado o trabalho, saiu com a alma nas pernas e correu à
primeira casa de loterias. Lá estavam,
escritos a giz em tábua preta, o número do bilhete dele e os quinhentos contos. A alma,
se ele a tinha nas pernas, era de
chumbo, porque elas não andaram mais, nem a luz lhe tornou aos olhos senão
alguns minutos depois. Restituído a si, consultou
a carteira, era o número exato. Ainda assim, podia ter-se enganado, ao
copiá-lo. Voou num tílburi a casa; não se enganara, era o número dele.
Tudo se cumpriu com lealdade. Cinco
dias depois, a mesa da irmandade recebia os cem contos de réis para a Escola de
S. Bernardo e expedia um oficio de
agradecimento ao fundador das duas instituições,
entregue a este por todos os membros da mesa em comissão.
No fim de abril, casara o escrevente
Amaral, servindo-lhe Coimbra de testemunha, e morrendo na volta, como ficou
dito atrás. O enterro que a irmandade lhe fez e o túmulo que lhe mandou
levantar no cemitério de S. Francisco Xavier corresponderam aos benefícios que lhe
devia. A escola tem hoje mais de cem alunos e os cem contos dados pelo escrivão
receberam a denominação de patrimônio Coimbra.
---
Nota:
Texto-fonte: Relíquias de Casa
Velha, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson, 1938. Publicado
originalmente em Almanaque Brasileiro Garnier, 1906.
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