
O CASO DO ROMUALDO
Um dia, de manhã, D. Maria Soares,
que estava em casa, descansando de um baile para ir a outro, foi procurada por
D. Carlota, companheira antiga de colégio, e sócia agora da vida elegante.
Considerou isso um benefício do acaso, ou antes um favor do céu, com o fim
único de lhe matar as horas aborrecidas. E merecia esse favor, pois de
madrugada, ao voltar do baile, não
deixou de cumprir as rezas do costume, e, logo à noite, antes de ir para o
outro, não deixará de persignar-se. D. Carlota entrou. Ao pé uma da outra
pareciam irmãs; a dona da casa era, talvez, um pouco mais alta, e tinha os
olhos de outra cor; eram castanhos, os de D. Carlota pretos. Outra diferença: esta era casada, D. Maria
Soares, viúva: — ambas possuíam alguma coisa,
e não chegavam a trinta anos; parece que a viúva contava apenas vinte e nove, posto
confessasse vinte e sete, e a casada andava nos vinte e oito. Agora, como é que
uma viúva de tal idade, bonita e abastada, não contraía segundas núpcias é o
que toda a gente ignorou sempre. Não se pode supor que fosse fidelidade ao
morto, pois é sabido que ela não o amava muito nem pouco; foi um casamento de
arranjo. Talvez não se pode crer que lhe faltassem pretendentes; tinha-os às
dúzias.
— Você chegou muito a propósito,
disse a viúva a Carlota; vamos falar de ontem... Mas que é isso? que cara é
essa?
Na
verdade, a cara
de Carlota trazia
impressa uma tempestade
interior; os olhos faiscavam,
e as narinas moviam-se deixando passar uma respiração violenta e colérica. A viúva
insistiu na pergunta, mas a outra não lhe disse nada; atirou-se a um sofá, e só
no fim de uns dez segundos, proferiu algumas palavras que explicaram a
agitação. Tratava-se de um arrufo, não briga com o marido, por causa de um
homem. Ciúmes? Não, não, nada de ciúmes. Era um homem, com que ela antipatizava
profundamente, e que ele queria fazer
amigo da casa. Nada menos, nada mais, e antes assim. Mas por que é que ele
queria relacioná-lo com a mulher?
Custa dizê-lo: ambição política.
Vieira quer ser deputado por um distrito do Ceará, e Romualdo tem ali
influência, e trata de fazer vingar a candidatura do amigo. Então este, não só
quer metê-lo em casa — e já ali o levou duas vezes — como tem o plano de lhe dar
um jantar solene, em despedida, porque o Romualdo embarca para o Norte dentro
de uma semana. Aí está todo o motivo do
dissentimento.
— Mas, Carlota, dizia ele à mulher,
repara que é a minha carreira. Romualdo é trunfo no distrito. E depois não sei que embirração é
essa, não entendo...
Carlota não dizia nada; torcia a
ponta de uma franja. — O que é que achas nele?
— Acho-o antipático, aborrecido...
— Nunca trocaram mais de oito
palavras, se tanto, e já o achas aborrecido!
— Tanto pior. Se ele é aborrecido
calado, imagina o que será falando. E depois...

— Bem, mas não podes sacrificar-me
alguma coisa? Que diabo é uma ou duas horas de constrangimento, em benefício
meu? E mesmo teu, porque, eu na Câmara, tu ficas sendo mulher de deputado, e
pode ser... quem sabe? Pode ser até que de ministro, um dia. Desta massa é que
eles se fazem.
Vieira gastou uns dez minutos em
sacudir diante da mulher as pompas de um grande cargo, uma pasta, ordenanças,
fardão ministerial, correios do paço, e as audiências, e os pretendentes, e as cerimônias... Carlota não
se abalava. Afinal, exasperada, fez ao marido
uma revelação.
— Ouviu bem? O tal seu amigo
persegue-me com os olhos de mosca morta, e das oito palavras que me disse,
três, pelo menos, foram atrevidas.
Vieira ficou alguns instantes sem
dizer nada; depois começou a mexer com a corrente do relógio, afinal acendeu um
charuto. Estes três gestos correspondiam a três momentos do espírito. O
primeiro foi de pasmo e raiva. Vieira amava a mulher, e, por outro lado, cria que os intuitos do Romualdo eram puramente
políticos. A descoberta de que a proteção da candidatura tinha uma paga, e paga
adiantada, foi para ele um assombro. Veio depois o segundo momento, que foi o
da ambição, a cadeira na Câmara, a reputação parlamentar, a influência, um
ministério... Tudo isso atenuou a primeira impressão. Então ele perguntou a si
mesmo, se, estando certo da mulher, não era já uma grande habilidade política
explorar o favor do amigo, e deixá-lo ir-se de cabeça baixa. Em rigor, a
pretensão do Romualdo não seria única; Carlota teria outros namorados in petto. Não se havia de brigar com o mundo inteiro. Aqui entrou o
terceiro momento, o da resolução. Vieira determinou-se a aproveitar o favor político do
outro, e assim o declarou à mulher, mas começou por dissuadi-la.
— Pode ser que você se engane. As
moças bonitas estão expostas a serem olhadas muita vez por admiração, e se
cuidarem que já isso é amor, então nem podem mais aparecer. Carlota sorriu com desdém.
— As palavras? disse o marido. Não
podiam ser palavras de cumprimento? Podiam, decerto...
E, depois de um instante, como lhe
visse persistir o ar desdenhoso:
— Juro que se tivesse a certeza do
que me dizes, castigava-o... Mas, por outro lado, é justamente a vingança
melhor; faço-o trabalhar, e... justamente! Querem saber uma coisa? A vida é uma combinação de
interesses... O que eu quero é fazer-te ministra de Estado, e...
Carlota deixou-o falar, à toa. Como
ele insistisse, ela prorrompeu e disse-lhe coisas duras. Estava sinceramente
irritada. Gostava muito do marido, não era loureira, e nada podia agravá-la mais do que o acordo que o marido
procurava entre a conveniência política e os sentimentos dela. Ele, afinal, saiu zangado;
ela vestiu-se e foi para a casa da amiga.
Hão de perguntar-me como se explica
que, tendo mediado algumas horas, entre a briga e a chegada à casa da amiga, Carlota
ainda estava no grau agudo da exasperação. Respondo que em alguma coisa há de uma moça
ser faceira, e pode ser que a nossa Carlota gostasse de ostentar os seus
sentimentos de amor ao marido e de honra conjugal, como outras mostram de
preferência os olhos e o método de mexer com eles. Digo que pode ser; não
afianço nada.
Ouvida a história, D. Maria Soares
concordou em parte com a amiga, em parte com o marido, posto que, realmente, só
concordasse consigo mesma, e acreditasse piamente que o maior desastre que
podia suceder a uma criatura humana, depois de uma noite de baile, era
entrar-lhe em casa uma questão daquelas.
Carlota tratou de provar que tinha
razão em tudo, e não parcialmente; e a viúva diante da ameaça de maior desastre, foi admitindo que
sim, que afinal quem tinha toda a razão era ela, mas que o melhor de tudo era
deixar andar o marido.
— É o melhor, Carlota; você não está
certa de si? Pois então deixe-o andar... Vamos nós
à Rua do Ouvidor? ou vamos mais perto, um
passeiozinho...
à Rua do Ouvidor? ou vamos mais perto, um
passeiozinho...
Era um meio de acabar com o assunto;
Carlota aceitou, D. Maria foi vestir-se, e daí a pouco saíram ambas. Vieram à Rua do Ouvidor,
onde não foi difícil esquecer o assunto, e tudo acabou ou ficou adiado.
Contribuiu para isso o baile da véspera; a viúva alcançou finalmente que falassem das impressões
trazidas, falaram por muito tempo, esquecidas do resto, e para não voltar logo para a casa,
foram comprar alguma coisa a uma loja. Que coisa? Nunca se soube claramente o
que foi; há razões para crer que foi um metro de fita, outros dizem que dois,
alguns opinam por uma dúzia de lenços. O único ponto liquidado é que estiveram
na loja até quatro horas.
Ao voltar para casa, perto da Rua
Gonçalves Dias, Carlota disse precipitadamente à amiga:
— Lá está ele!
— Quem?
— O Romualdo.
— Onde está?
— É aquele de barbas grandes, que
está coçando o queixo com a bengala, explicou a moça olhando para outra parte.
D. Maria Soares relanceou os olhos
pelo grupo, disfarçadamente, e viu o Romualdo. Não ocultou a impressão; confessou
que era, na verdade, um sujeito antipático; podia ser trunfo em política; em
amor, devia ser carta branca. Mas, além de antipático, tinha um certo ar de matuto, que não convidava a
amá-lo. Elas foram andando, e não escaparam ao Romualdo, que vira Carlota e
veio cumprimentá-la, afetuoso, posto que também acanhado; perguntou-lhe pelo
marido, e se ia naquela noite, ao baile, disse também que o dia estava fresco,
que tinha visto umas senhoras conhecidas de Carlota, e que a rua parecia mais
animada naquele dia do que na véspera. Carlota foi respondendo com palavras
frouxas, entre dentes.
— Exagerei? perguntou ela à viúva no bond.
— Qual exageraste! O sujeito é
insuportável, acudiu a viúva; mas, Carlota, não te acho razão na zanga. Pareces
criança! Um sujeito assim não faz zangar ninguém. A gente ouve o que ele diz,
não lhe responde nada, ou fala do sol e da lua, e está acabado; é até um divertimento. Já tive muitos do mesmo
gênero...
— Sim, mas não tens um marido que...
— Não tenho, mas tive; o Alberto era
do mesmo gênero; eu é que não brigava, nem lhe revelava nada; ria-me. Faze a mesma coisa; vai
rindo... Realmente, o sujeito tem um olhar espantado, e quando sorri fica mesmo
com uma cara de poucos amigos; parece que sério é menos carrancudo.
— E é...
— Bem vi que era. Ora zangar-se a
gente por tão pouca coisa! Demais, ele não vai embora esta semana? Que te custa
suportá-lo?
D. Maria Soares tinha aplacado
inteiramente a amiga; enfim, o tempo e a rua perfizeram a melhor parte da obra.
Para o fim da viagem, riam ambas, não só da figura do Romualdo, mas também das
palavras que ele dissera a Carlota, as tais palavras atrevidas, que não ponho
aqui por não haver notícia exata delas; estas, porém, confiou-as à viúva, não
as tendo dito ao marido. A viúva opinou que elas eram menos atrevidas que
burlescas. E ditas por ele deviam ser ainda piores. Era mordaz esta viúva, e
amiga de rir e brincar como se tivesse vinte anos.
A verdade é que Carlota voltou para
casa tranqüila, e disposta ao banquete. Vieira, que esperava a continuação da luta, não pôde
encobrir o contentamento de a ver mudada. Confessou que ela tinha razão em
mortificar-se, e que ele, se não estivessem as coisas
em andamento, abriria mão da candidatura; já o
não podia fazer sem escândalo.
em andamento, abriria mão da candidatura; já o
não podia fazer sem escândalo.
Chegou o dia do jantar, que foi
esplêndido, assistindo a ele vários personagens políticos e outros. De
senhoras, apenas duas, Carlota e D. Maria Soares. Um dos brindes de Romualdo
foi feito a ela; — um longo discurso, arrastado, cantado, assoprado, cheio de anjos, de um ou
dois sacrários, de caras
esposas, acabando tudo por um cumprimento ao nosso venturoso amigo. Vieira interiormente mandou-o ao diabo; mas, levantou o copo e agradeceu
sorrindo.
Dias depois, seguia Romualdo para o
Norte. A noite da véspera foi passada em casa do Vieira, que se desfez em
demonstrações de aparente consideração. De manhã, levantou-se este
cedo para ir
a bordo, acompanhá-lo; recebeu muitos cumprimentos
para a mulher, à despedida, e prometeu que daí a pouco iria ter com ele. O aperto
de mão foi significativo; um tremia de
esperanças, outro de saudades, ambos pareciam pôr naquele arranco final todo o
coração, e punham tão-somente o interesse, — ou de amor ou de política, — mas o velho interesse, tão amigo
da gente e tão caluniado.
Pouco tempo depois, seguiu o Vieira
para o Norte, a cuidar da eleição. As despedidas foram naturalmente chorosas, e
por pouco, esteve Carlota disposta a seguir também com ele; mas a viagem não duraria muito tempo, e
depois, ele teria de percorrer o distrito, cuidar de coisas que tornavam difícil a
condução da família.
Ficando só, Carlota cuidou de matar o
tempo, para torná-lo mais curto. Não foi a teatros nem bailes; mas visitas e
passeios eram com ela. D. Maria Soares continuava a ser a melhor das companheiras, rindo muito,
reparando em tudo, e mordendo sem piedade. Naturalmente, o Romualdo foi esquecido;
Carlota chegou mesmo a arrepender-se de ter ido confiar à amiga uma coisa, que
agora lhe parecia mínima. Demais, a idéia de ver o marido deputado, e
provavelmente ministro, começava a dominá-la, e a quem o deveria, senão ao
Romualdo? Tanto bastava para não torná-lo odioso nem ridículo. A segunda carta
do marido confirmou-a nesse sentimento de indulgência; dizia que a candidatura tinha
esbarrado num grande obstáculo, que o Romualdo destruíra, graças a um imenso esforço, em que até perdeu um amigo de vinte
anos.
Tudo caminhou assim, enquanto
Carlota, aqui na corte, ia matando o tempo, segundo ficou dito. Já disse também que D.
Maria Soares ajudava-a nessa empresa. Resta dizer, que não sempre, mas às vezes, tinham
ambas um parceiro, que era o Dr. Andrade, companheiro de escritório do Vieira,
e encarregado de todos os seus negócios, durante a ausência. Este era um advogado
recente, vinte e cinco anos, não deselegante, nem feio. Tinha talento, era ativo, instruído,
e não pouco sagaz, em negócios do foro; para o resto das coisas, conservava a ingenuidade
primitiva.
Corria que ele gostava de Carlota, e
mal se compreende um tal boato, pois a ninguém confiou nada, nem mesmo a ela,
por palavras ou obras. Pouco ia lá; e quando ia procedia de modo que não desse
azo a nenhuma suspeita. É certo, porém, que ele gostava dela, e muito, e se
nunca lho declarou, menos o faria agora. Evitava até ir lá; mas Carlota convidou-o algumas vezes a jantar, com outras
pessoas; D. Maria Soares, que o viu ali, também o convidou, e foi assim que ele
achou-se mais vezes do que pretendia em contato com a senhora do outro.
D. Maria Soares desconfiou
previamente do amor do Andrade. Era um dos seus princípios desconfiar dos
corações de vinte e cinco a trinta e quatro anos. Antes de ver nada, suspeitou
que o Andrade amava a amiga, e só tratou de ver se a amiga lhe correspondia. Não viu nada; mas concluiu alguma coisa. Então
considerou que esse coração abandonado,
tiritando de frio na rua, podia ela recebê-lo, agasalhá-lo, dar-lhe o principal
lugar, numa palavra, casar com ele. Pensou nisto um dia; no dia seguinte,
acordou apaixonada. Já? Já, e explica-se. D. Maria Soares gostava da vida
brilhante, ruidosa, dispendiosa, e o Andrade, além das outras qualidades, não
viera a este mundo sem uma avó, nem esta avó se deixara viver até aos setenta e
quatro anos, na fazenda sem uns oitocentos
contos. Constava estar na dependura; e foi a própria Carlota que lho disse a ela.
— Parece que até já está pateta.
— Oitocentos contos? repetiu D. Maria
Soares.

— Oitocentos; é uma boa fortuna.
D. Maria Soares olhou para um dos
quadros que Carlota tinha na saleta: uma paisagem da Suíça. Bela terra é a
Suíça! disse ela. Carlota admitiu que o fosse, mas confessou que preferia viver
em Paris, na grande cidade de Paris... D. Maria Soares suspirou, e olhou para o
espelho. O espelho respondeu-lhe sem cumprimento: “Pode tentar a empresa, ainda
está muito bonita”.
Assim se explica o primeiro convite
de D. Maria Soares ao Andrade, para ir jantar à casa dela, com a amiga, e
outras pessoas. Andrade foi, jantou, conversou, tocou piano, — pois também
sabia tocar piano, — e recebeu da viúva os mais ardentes encômios. Realmente, nunca tinha visto tocar assim; não conhecia
amador que pudesse competir com ele. Andrade gostou de ouvir isto,
principalmente porque era dito ao pé de Carlota. Para provar que a viúva não
elogiava a um ingrato, voltou ao piano, e deu sonatas, barcarolas, rêveries, Mozart,
Schubert, nomes novos e antigos. D. Maria Soares estava encantada.
Carlota percebeu que ela começava a
cortejá-lo, e sentiu não ter intimidade com ele, que lhe permitisse dizer-lho por brinco; era um
modo de os casar mais depressa, e Carlota estimaria ver a amiga em segundas
núpcias, com oitocentos contos à porta. Em compensação disse-o à amiga, que pela regra
eterna das coisas negou-o a pés juntos.
— Pode negar, mas eu bem vejo que
você anda ferida, insistiu Carlota.
— Então é ferida que não dói, porque
eu não sinto nada, replicou a viúva.
Em casa, porém, advertiu que Carlota
lhe falara com tal ingenuidade e interesse, que era melhor dizer tudo, e
utilizá-la na conquista do advogado. Na primeira ocasião, negou sorrindo e
vexada; depois, abriu o coração, previamente aparelhado para recebê-lo, cheio de amor por todos os cantos. Carlota viu tudo,
andou por ele, e saiu convencida de que, apesar da diferença de idade, nem ele podia
ter melhor esposa, nem ela melhor marido. A questão era uni-los, e Carlota
dispôs-se à obra.
Eram então passados dois meses depois
da saída do Vieira, e chegou uma carta dele com a notícia de estar de cama. A letra pareceu
tão trêmula, e a carta era tão curta, que lançou o espírito de Carlota na maior
perturbação. No primeiro instante, a sua idéia foi embarcar e ir ter com o marido; mas o advogado
e a viúva procuravam aquietá-la, dizendo-lhe que não era caso disso, e que
provavelmente já estaria bom; em todo caso, era melhor esperar outra carta.
Veio outra carta, mas do Romualdo,
dizendo que o estado do Vieira era grave, não desesperado; os médicos
aconselhavam que tornasse para o Rio de Janeiro; eles viriam na primeira
ocasião.
Carlota ficou desesperada. Começou
por não crer na carta. “Meu marido morreu, soluçava ela; estão me enganando”.
Entretanto, veio terceira carta do Romualdo, mais esperançada. O doente já
podia embarcar, e viria no vapor que dali sairia dois dias depois; ele o
acompanharia com todas as cautelas, e a mulher podia não ter cuidado nenhum. A
carta era simples, verdadeira, dedicada e pôs um calmante no espírito da moça.
Com efeito, Romualdo embarcou,
acompanhando o doente, que passou bem o primeiro dia de mar. No segundo piorou,
e o estado agravou-se de modo que, ao chegar à Bahia, pensou o Romualdo que era
melhor desembarcar; mas o Vieira recusou formalmente uma e muitas vezes,
dizendo que se tivesse de morrer, preferia vir morrer ao pé da família. Não
houve remédio senão ceder, e por mal dele, expirou vinte e quatro horas depois.
Poucas horas antes de morrer, o
advogado sentiu que era chegado o termo fatal, e fez algumas recomendações ao
Romualdo, relativamente a negócios de família e do foro; umas deviam ser
transmitidas à mulher; outras ao Andrade, companheiro de escritório, outras a
parentes. Só uma importa ao nosso caso.
— Diga à minha mulher que a última
prova de amor que lhe peço é que não se case...
— Sim... sim...

— Mas, se ela, a todo o transe
entender que se deve casar, peça-lhe que a escolha do marido recaia no Andrade,
meu amigo e companheiro, e...
Romualdo não entendeu essa
preocupação da última hora, nem provavelmente o leitor, nem eu, — e o melhor,
em tal caso, é contar e ouvir a coisa sem pedir explicação. Foi o que ele fez;
ouviu, disse que sim, e poucas horas depois, expirava o Vieira. No dia seguinte,
entrava o vapor no porto, trazendo a Carlota um cadáver, em vez do marido que daqui partira. Imaginem a dor da pobre
moça, que aliás receava isso mesmo, desde a última carta de Romualdo. Chorara em todo esse
tempo, e rezou muito, e prometeu missas,
se o pobre Vieira lhe chegasse vivo e são: mas nem rezas, nem promessas, nem lágrimas.
Romualdo veio à terra, e correu à
casa de D. Maria Soares, pedindo a sua intervenção para preparar a recente
viúva a receber a fatal notícia; e ambos passaram à casa de Carlota, que
adivinhou tudo, apenas os viu. O golpe foi o que devia ser, não é preciso narrá-lo.
Nem o golpe, nem o enterro, nem os primeiros dias. Saiba-se que Carlota retirou-se
da cidade por algumas semanas, e só voltou à antiga casa, quando a dor lhe consentiu
vê-la, mas não pôde vê-la sem lágrimas. Ainda assim não quis outra; preferia padecer,
mas queria as mesmas paredes e lugares que tinham visto o marido e a sua felicidade.
Passados três meses, Romualdo tratou
de desempenhar-se da incumbência que o Vieira lhe dera, à última hora, e nada
mais difícil para ele, não porque amasse a viúva do amigo, — realmente, tinha
sido uma coisa passageira, — mas pela natureza mesmo da incumbência.
Entretanto, era forçoso fazê-lo. Escreveu-lhe uma carta, dizendo que tinha de
dizer-lhe, em particular, coisas graves que ouvira ao marido, poucas horas
antes de morrer. Carlota respondeu-lhe com este bilhete:
Pode vir
quanto antes, e se quiser hoje mesmo, ou amanhã, depois do meio-dia; mas
prefiro que seja hoje. Desejo saber o que é, e ainda uma vezagradecer-lhe a
dedicação que mostrou ao meu infeliz marido.
Romualdo foi nesse mesmo dia, entre
três e quatro horas. Achou ali D. Maria Soares, que não se demorou muito, e os
deixou sós. Eram duas viúvas, e ambas de preto, e Romualdo pôde compará-las, e
achou que a diferença era imensa; D. Maria Soares dava a sensação de uma pessoa
que escolhera a viuvez por ofício e comodidade. Carlota estava ainda acabrunhada,
pálida e séria. Diferença de data ou de temperamento? Romualdo não pôde averiguá-lo,
não chegou sequer a formular a questão. Medíocre de espírito, este homem tinha
uma dose grande de sensibilidade, e a figura de Carlota impressionou-o de modo,
que não lhe deu lugar a mais do que à comparação das pessoas. Houve mesmo da
parte de D. Maria Soares duas ou três frases que pareceram ao Romualdo um tanto
esquisitas. Uma delas foi esta:
— Veja se persuade a nossa amiga a
conformar-se com a sorte; lágrimas não ressuscitam ninguém.
Carlota sorriu sem vontade, para
responder alguma coisa, e Romualdo rufou com os dedos sobre o joelho, olhando
para o chão. D. Maria Soares levantou-se afinal, e saiu. Carlota, que a
acompanhou até à porta, voltou ansiosa ao Romualdo, e pediu que lhe dissesse
tudo, tudo, as palavras dele, e a doença, e como foi que começou, e os cuidados
que lhe deu, e que ela soube aqui e lhe
agradecia muito. Tinha visto uma carta de pessoa da província, dizendo que a
dedicação dele não podia ser maior. Carlota falava às pressas, cheia de
comoção, sem ordem nas idéias.
— Não falemos do que fiz, disse o
Romualdo; cumpri um dever natural.
— Bem, mas eu agradeço-lhe por ele e
por mim, replicou ela estendendo-lhe a mão.
Romualdo apertou-lhe a mão, que
estava trêmula, e nunca lhe pareceu tão deliciosa. Ao mesmo tempo, olhou para
ela e viu que a cor pálida ia-lhe bem, e com o vestido preto, tinha um tom
ascético e particularmente interessante. Os olhos cansados de chorar não traziam o mesmo fulgor de outro tempo, mas
eram muito melhores assim, como uma espécie
de meia-luz de alcova, abafada pelas cortinas e venezianas fechadas.
Nisto pensou na comissão que o levava
ali, e estremeceu. Começava a palpitar, outra vez,
por ela, e agora que a achava livre, ia
levantar duas barreiras entre ambos: — que se não casasse, e que, a fazê-lo,
casasse com outro, uma pessoa determinada. Era exigir demais. Romualdo pensou
em não dizer nada, ou dizer outra coisa qualquer. Que coisa? Qualquer coisa. Podia atribuir ao marido uma
recomendação de ordem geral, que se lembrasse dele, que lhe sufragasse a alma
por certa maneira. Tudo era crível, e não prenderia assim o futuro com uma
palavra. Carlota, sentada defronte, esperava que ele falasse; chegou a repetir o pedido. Romualdo
sentiu um repelão da consciência. No momento de formular a recomendação falsa,
recuou, teve vergonha, e dispôs-se à verdade.
Ninguém sabia o que se passara entre ele e o finado, senão a consciência dele, mas
a consciência bastava, e ele obedeceu. Paciência! era esquecer o passado, e
adeus.
por ela, e agora que a achava livre, ia
levantar duas barreiras entre ambos: — que se não casasse, e que, a fazê-lo,
casasse com outro, uma pessoa determinada. Era exigir demais. Romualdo pensou
em não dizer nada, ou dizer outra coisa qualquer. Que coisa? Qualquer coisa. Podia atribuir ao marido uma
recomendação de ordem geral, que se lembrasse dele, que lhe sufragasse a alma
por certa maneira. Tudo era crível, e não prenderia assim o futuro com uma
palavra. Carlota, sentada defronte, esperava que ele falasse; chegou a repetir o pedido. Romualdo
sentiu um repelão da consciência. No momento de formular a recomendação falsa,
recuou, teve vergonha, e dispôs-se à verdade.
Ninguém sabia o que se passara entre ele e o finado, senão a consciência dele, mas
a consciência bastava, e ele obedeceu. Paciência! era esquecer o passado, e
adeus.
— Seu marido, — começou —, no mesmo
dia em que morreu, disse-me que tinha um grande favor que pedir-me, e fez-me
prometer que cumpriria tudo. Respondi-lhe que sim. Então, disse-me ele que era
um grande benefício que a senhora lhe fazia, se se conservasse viúva, e que lhe
pedisse isto, como um desejo da hora da morte. Entretanto, dado que não pudesse fazê-lo...
Carlota interrompeu-o com o gesto:
não queria ouvir nada, era penoso. Mas o Romualdo insistiu, tinha de cumprir...
Foram interrompidos por um criado; o
Dr. Andrade acabava de chegar, trazendo à viúva uma comunicação urgente.
Andrade entrou, e pediu a Carlota
para lhe falar em particular.
— Não é preciso, retorquiu a moça,
este senhor é nosso amigo, pode ouvir tudo.
Andrade obedeceu e disse ao que
vinha; este incidente é sem valor para o nosso caso. Depois, conversaram os
três durante alguns minutos. Romualdo olhava para o Andrade com inveja, e
tornou a perguntar a si mesmo se lhe convinha dizer alguma coisa. A idéia de
dizer outra coisa qualquer começou a turvar-lhe novamente o espírito. Ao ver o
jovem advogado tão gracioso, tão atraente, Romualdo concluiu, — e não concluiu
mal, — que o pedido do morto era um
incitamento; e se Carlota nunca pensara em casar, era ocasião de fazê-lo. O
pedido chegou a parecer-lhe tão absurdo, que a idéia de alguma desconfiança do
marido veio naturalmente, e atribuiu-lhe assim a intenção de punir moralmente a
mulher: — conclusão, por outro lado, não menos absurda, à vista do amor que ele
testemunhara no casal.
Carlota, na conversação, manifestou o
desejo de retirar-se para a fazenda de uma tia, logo que acabasse o inventário;
mas, se demorasse muito tempo iria em breve.
— Farei o que puder para ir depressa,
disse o Andrade.
Daí a pouco saiu este, e Carlota, que
o acompanhara até a porta, voltou ao Romualdo, para dizer-lhe:
— Não quero saber o que foi que meu
marido lhe confiou. Ele pede-me o que por mim mesmo faria: — ficarei viúva...
Romualdo podia não ir adiante, e
desejou isso mesmo. Estava certo da sinceridade da viúva, e da resolução anunciada; mas o diabo
do Andrade com os seus modos finos e olhos cálidos fazia-lhe travessuras no
cérebro. Entretanto, a solenidade da promessa tornou a aparecer-lhe como um
pacto que se havia de cumprir, custasse o que custasse. Ocorreu-lhe um
meio-termo: obedecer à viúva, e calar-se, e, um dia, se ela deveras se mostrasse
disposta a contrair segundas núpcias, completar-lhe a declaração. Mas não tardou
em ver que isto era uma infidelidade disfarçada; em primeiro lugar, ele poderia
morrer antes, ou estar fora, em serviço ou doente; em segundo lugar, poderia
ser que lhe falasse, quando ela
estivesse apaixonada por outro. Resolveu dizer tudo.
— Como ia dizendo, continuava ele,
seu marido...
— Não diga mais nada, interrompeu
Carlota; para quê?
— Será inútil, mas devo cumprir o que
prometi ao meu pobre amigo. A senhora pode dispensá-lo, eu é que não. Pede-lhe
que se conserve viúva; mas que, no caso de não lhe
ser possível, pedir-lhe-ia bem que a sua
escolha recaísse no... Dr. Andrade...
ser possível, pedir-lhe-ia bem que a sua
escolha recaísse no... Dr. Andrade...
Carlota não pôde ocultar o espanto, e
não teve só um, mas dois, um atrás do outro. Quando Romualdo concluía o pedido,
antes de dizer o nome do Andrade, Carlota imaginou que ia citar o dele mesmo;
e, rápido, tanto lhe pareceu um desejo do marido como uma astúcia do portador, que a cortejara antes.
Esta segunda suspeita entornou-lhe na alma um grande desgosto e desprezo. Tudo
isso passou como um relâmpago, e quando chegou ao fim, ao nome do Andrade,
mudou de espanto, e não foi menor. Esteve calada alguns segundos, olhando à
toa; depois, repetiu o que já dissera.
— Não pretendo casar.
— Tanto melhor, disse ele, para os
desejos últimos de seu marido. Não lhe nego que o pedido me pareceu exceder do
direito de um moribundo; mas não me cabe discuti-lo: é questão entre a senhora
e a sua consciência. Romualdo levantou-se.
— Já? disse ela.
— Já.
— Jante comigo.
— Peço-lhe que não; virei outro dia,
disse ele estendendo-lhe a mão.
Carlota estendeu-lhe a mão. Pode ser
que se ela estivesse com o espírito quieto, percebesse nos modos do Romualdo
alguma coisa que não era a audácia de outrora. Na verdade, ele estava agora
acanhado, comovido, e a mão tremia-lhe um tanto. Carlota apertou-lha cheia de agradecimento; ele saiu.
Ficando só, Carlota refletiu em tudo
o que se passara. A lembrança do marido pareceu-lhe também extraordinária; e,
não tendo ela jamais pensado no Andrade, não pôde furtar-se a pensar nele e na
simples indicação do moribundo. Tanto pensou em tudo isso, que lhe ocorreu finalmente
a posição do Romualdo. Esse homem tinha-a cortejado, parecia querê-la, recebeu
do marido, prestes a expirar, a confidência última, o pedido da viuvez e a designação
de um sucessor, que não era ele, mas outro; e, não obstante, cumpriu tudo fielmente.
O procedimento pareceu-lhe heróico. E daí pode ser que já não a amasse: e foi,
talvez, um capricho de momento; estava acabado; nada mais natural.
No dia seguinte, ocorreu a Carlota a
idéia de que Romualdo, sabendo da amizade do marido com o Andrade, podia ir
comunicar a este o pedido do moribundo, se já o não tinha feito. Mais que depressa, lembrou-se de
mandar chamá-lo, e pedir-lhe que viesse vê-la;
chegou mesmo a escrever-lhe um bilhete, mas mudou de idéia, e, em vez de pedir-
lho de viva voz, determinou fazê-lo por escrito. Eis o que escreveu:
Estou
certa de que as últimas palavras de meu marido foram apenas repetidas a mim e a
ninguém mais; entretanto, como há outra pessoa, que poderia ter interesse em
saber...
Chegando a este ponto da carta, releu-a,
e rasgou-a. Parecia-lhe que a frase tinha um tom misterioso, inconveniente na
situação. Começou outra, e não lhe agradou também; ia escrever terceira, quando
vieram anunciar-lhe a presença do Romualdo; correu à sala.
— Escrevia-lhe agora mesmo, disse ela
logo depois.
— Para quê?
— Referiu aquelas palavras de meu
marido a alguém?
— A ninguém. Não podia fazê-lo.
— Sei que não o faria; entretanto,
nós, as mulheres, somos naturalmente medrosas, e o receio de que alguém mais,
quem quer que seja, saiba do que se passou, peço-lhe que por nenhuma coisa refira a outra pessoa...
— Certamente que não.
— Era isto o que lhe dizia a carta.
Romualdo vinha despedir-se; seguia
daí três dias para o Norte. Pedia-lhe desculpa de não ter aceitado o convite de
jantar, mas na volta...
— Volta? interrompeu ela.
— Conto voltar.
— Quando?
— Daqui a dois meses ou dois anos.
— Cortemos ao meio; seja daqui a
quatro meses.
— Depende.
— Mas, então, sem jantar comigo uma
vez? Hoje, por exemplo...
— Hoje estou comprometido.
— E amanhã?
— Amanhã vou a Juiz de Fora.
Carlota fez um gesto de resignação;
depois perguntou-lhe se na volta do Norte.
— Na volta.
— Daqui a quatro meses?
— Não posso afirmar nada.
Romualdo saiu; Carlota ficou
pensativa algum tempo.
“Singular homem! pensou ela.
Achei-lhe a mão fria e, entretanto...”
Depressa passou a Carlota a impressão
que lhe deixara o Romualdo. Este seguiu, e ela retirou-se à fazenda da tia,
enquanto o Dr. Andrade continuou o inventário. Quatro meses depois, voltou Carlota
a esta corte, mais curada das saudades, e em todo caso cheia de resignação. A
amiga encarregou-se de acabar a cura, e não lhe foi difícil.
Carlota não esquecera o marido; ele
estava presente ao coração, mas o coração também cansa de chorar. Andrade que a freqüentava,
não pensara em substituir o finado marido; ao contrário, parece que
principalmente gostava da outra. Pode ser também que fosse mais cortesão com
ela, por ela ser menos recente viúva. O que toda a gente cria é que dali,
qualquer que fosse a escolhida, tinha de nascer um casamento com ele. Não
tardou que as pretensões de Andrade se inclinassem puramente à outra.
“Tanto melhor” pensou Carlota, logo
que o percebeu.
A idéia de Carlota é que, sendo
assim, não ficava ela obrigada a desposá-lo; mas esta idéia não a formulou
inteiramente; era confessar que estaria inclinada a casar.
Passaram-se ainda algumas semanas,
oito ou dez, até que um dia anunciaram os jornais a chegada de Romualdo. Ela
mandou-lhe um cartão de cumprimento, e ele deu-se pressa em pagar-lhe a visita.
Acharam-se mudados; ela pareceu-lhe menos pálida, um pouco mais tranqüila, para não dizer alegre; ele
menos áspero no aspecto, e até mais gracioso. Carlota convidou-o a jantar com
ela daí a dias. A amiga estava presente.
Romualdo foi circunspecto com ambas,
e, posto que trivial, conseguia pôr nas palavras uma nota de interesse. O que, porém, realçava
a pessoa dele era, — em relação a uma, a transmissão do recado do marido, e a respeito
da outra a paixão que sentira pela primeira,
e a possibilidade de vir a desposá-la. A verdade é que ele passou uma noite excelente, e saiu de lá encantado. A segunda
convidou-o também para jantar daí a dias, e os três reuniram-se outra vez.
— Ele ainda gosta de ti? perguntava
uma.
— Não, acabou.
— Não acabou.
— Por que não? Há tanto tempo.
— Que importa o tempo?
E teimava que o tempo era coisa
importante, mas também não valia nada, principalmente em certos casos. Romualdo parecia pertencer à
família dos apaixonados sérios. Enquanto dizia isso, olhava para ela a ver se
lhe descobria alguma coisa; mas era difícil ou impossível. Carlota levantava os
ombros.
Andrade supôs também alguma coisa,
por insinuação da outra viúva, e tratou de ver se descobria a verdade; não
descobriu coisa nenhuma. O amor de Andrade ia crescendo. Não tardou que o ciúme viesse fazer-lhe
cortejo. Pareceu-lhe que a amada via o Romualdo com olhos singulares; e a
verdade é que estava muita vez com ele.
Para quem se lembra das primeiras
impressões das duas viúvas, há de ser difícil ver na observação do nosso
Andrade; mas eu sou historiador fiel, e a verdade antes de tudo. A verdade é
que ambas as viúvas começavam a cercá-lo de especiais atenções.
Romualdo não o percebeu logo, porque
era modesto, apesar de audaz, às vezes; e da parte de Carlota não chegou mesmo a perceber
nada; a outra, porém, houve-se de maneira que não tardou em descobrir-se. Era
certo que o cortejava.
Daqui nasceram os primeiros elementos
de um drama. Romualdo não acudiu ao chamado da bela dama, e esse procedimento
não fez mais do que irritá-la e dar-lhe o gosto de teimar e vencer. Andrade, ao
ver-se posto de lado, ou quase, determinou lutar também e destruir o rival nascente, que podia ser em
breve triunfante. Já isso bastava; mas eis que Carlota, curiosa da alma do
Romualdo, sentiu que este objeto de estudo podia escapar- se-lhe, desde que a
outra o quisesse para si. Já então eram passados treze meses da morte do
marido, o luto estava aliviado, e a beleza dela, com ou sem luto, fechado ou aliviado,
estava no cume.
A luta que então começou teve
diferentes fases, e durou cerca de cinco meses mais. Carlota, no meio dela,
sentiu que alguma coisa batia no coração de Romualdo. As duas viúvas em breve descobriram as baterias;
Romualdo solicitado por ambas, não se demorou na escolha; mas o desejo do
morto? No fim de cinco meses as duas viúvas estavam brigadas, para sempre; e no
fim de mais três (custa-me dizê-lo, mas é verdade), no fim de mais três meses, Romualdo e Carlota iam
meditar juntos e unidos sobre a desvantagem de morrer primeiro.
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Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. Publicado originalmente em A Estação, de
15/9/1884 a 15/11/1884.
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