
UMA CARTA
Celestina acabando de almoçar, voltou
à alcova, e, indo casualmente à cesta de costura, achou uma cartinha de papel
bordado. Não tinha sobrescrito, mas estava aberta. Celestina, depois de hesitar um pouco,
desdobrou-a e leu:
Meu anjo adorado,
Perdoe-me esta audácia, mas não posso
mais resistir ao desejo de lhe abrir o
meu coração e dizer que a adoro com todas as forças da minha alma. Mais de uma
vez tenho passado pela rua, sem que a senhora me dê a esmola de um olhar, e há
muito tempo que suspiro por lhe dizer isto e pedir-lhe que me faça o ente mais
feliz do mundo. Se não me ama, como eu a amo, creia que morrerei de desgosto.
Os seus olhos lindos como as estrelas do céu são para mim as luzes da existência,
e os seus lábios, semelhantes às pétalas da rosa, têm toda a frescura de um jardim de Deus...
Não copio o resto; era longa a carta,
e no mesmo estilo composto de trivialidade e imaginação. Apesar de longa,
Celestina leu-a duas vezes, e, em alguns lugares, três e quatro; naturalmente
eram os que falavam da beleza dela, dos olhos, dos lábios, dos cabelos, das
mãos. Estas pegavam trêmulas na carta, tão comovida ficara a dona, tão
assombrada de um tal achado. Quem poria ali a carta? Provavelmente, a escrava —
a única escrava da casa, peitada pelo autor. E quem seria este? Celestina não
tinha a menor lembrança que pudesse ligar ao autor da carta; mas, como ele
dizia que ela mesma não lhe dera a esmola de um olhar, estava explicado o caso,
e só restava agora reparar bem nos homens da rua.
Celestina foi ao espelho, e lançou um
olhar complacente sobre si. Não era bonita, mas a carta deu-lhe uma alta idéia
de suas graças. Contava então trinta e nove anos, parece mesmo que mais um; mas
este ponto não está averiguado de modo que possa entrar na história. Era
simples opinião da mãe; esta senhora, porém, contando sessenta e quatro anos,
podia confundir as coisas. Em todo o caso, qualquer que fosse o exato número, a
própria dona dos anos não os discutiu, e limitava-se a parecer bem. Não parecia
mal, nem fazia má figura, todas as tardes, à janela.
Esquecia-me dizer que isto acontecia
aqui mesmo, no Rio de Janeiro, entre 1860 e 1862. Celestina era filha de um
antigo comerciante, que morreu pobre, tendo apenas feito para a família um
pequeno pecúlio. Era dele que esta vivia e mais de algumas costuras para fora.
A idéia de casar entrou na cabeça de
Celestina, desde os treze anos, e ali se
conservou até os
trinta e sete, pode ser mesmo que até os trinta e oito; mas ultimamente ela a
perdera de todo, e só se enfeitava para não desafiar o destino. Solteirona e
pobre, não contava que ninguém se enamorasse dela. Era boa e laboriosa, e isto
podia compensar o resto; mas ainda assim não lhe dava esperanças.
conservou até os
trinta e sete, pode ser mesmo que até os trinta e oito; mas ultimamente ela a
perdera de todo, e só se enfeitava para não desafiar o destino. Solteirona e
pobre, não contava que ninguém se enamorasse dela. Era boa e laboriosa, e isto
podia compensar o resto; mas ainda assim não lhe dava esperanças.
Foi neste ponto da vida que Celestina
deu com a carta na cesta de costura. Compreende-se
o alvoroço do pobre coração. Afinal, recebia o prêmio da demora; aí aparecia um namorado, por seu próprio pé,
sem ela dar por ele, e dispunha-se a fazê-la feliz.
Já vimos que ela atribuía à escrava
da casa a intervenção naquele negócio, e o primeiro impulso foi ir ter com ela;
mas recuou. Era difícil tratar diretamente um tal assunto, não estando nos seus
quinze anos estouvados que tudo explicassem; era arriscar a autoridade. Mas,
por outro lado, se se calasse, arriscava o namorado, que, não tendo resposta,
poderia desesperar e ir embora. Celestina vacilou muito no que faria, até que
resolveu consultar a irmã. A irmã, Joaninha, tinha vinte anos, e era pessoa de
muita gravidade; podia dar-lhe um conselho.
— O quê? Não ouço.
— Queria consultar você sobre uma
coisa.
— Que coisa? Você hoje está assim
esquisita, tão alegre, e tão acanhada. Que é que você quer, Titina? Diga. Já
adivinhei.
— O que é?
— É sobre aquele vestido da baronesa.
Celestina fez um gesto de desgosto, e
ia negar, mas não conseguindo abrir-se com
a irmã, preferiu mentir, e foi buscar o vestido. Na verdade, podia ser mãe dela,
viu-a nascer, ajudou-a a criar. Nunca entre ambas trocaram nenhuma confidência
de namoro; e não é que ambas os não tivessem tido. Mas as relações eram de
respeito e discrição.
Não sabendo como sair da dificuldade,
Celestina adotou um plano intermédio; procuraria primeiro descobrir a pessoa
que lhe mandara a carta, e se a merecesse, como era de supor, à vista da
linguagem da carta, abrir-se-ia com a escrava, e depois com a irmã. Nessa mesma
tarde, ela foi mais cedo para a janela, e mais enfeitada, esteve menos
distraída com outras coisas. Não tirou os olhos da rua, abaixo e acima; não
apontava rapaz ao longe, que não o seguisse com curiosidade inquieta e
esperançosa. Joaninha, ao pé dela, notava que a irmã não estava como de
costume; e pode ser mesmo que lhe atribuísse algumprincípio de namoro. A mãe é
que não via nada. Sentada na outra janela (era uma casa assobradada), ora
cochilava, ora perguntava às filhas quem era que ia passando.
— Celestina, aquele não é o Dr.
Norberto?
— Joaninha, parece que lá vai a
família do Alvarenga.
Perto das ave-marias, viu Celestina
surdir da esquina um rapaz, que, tão depressa entrara na rua, pôs os olhos na
casa.
Passou pelo lado oposto, lento, evidentemente
abalado, olhando ora para o chão, ora para a janela. Foi até o fim da rua,
atravessou-a, e voltou pelo lado da casa. Já então era um pouco escuro, não
tanto, porém, que encobrisse a gentileza do rapaz, que era positivamente um rapagão.

Celestina ficou realmente fora de si.
A irmã não viu o que era, mas concluiu que alguém teria passado na rua, que
enchera a alma de Celestina de uma vida desusada. Com efeito, durante a noite,
esteve ela como nunca, alegre, e ao mesmo tempo pensativa, esquecendo-se de si
e dos outros. Quase que não quis tomar
chá, e só a muito custo se recolheu para dormir.
“Titina viu passarinho verde” pensou
Joaninha ao deitar-se.
Celestina, recolhida ao quarto,
meteu-se na cama, e releu a carta do rapaz, lentamente, saboreando as palavras
de amor, e os elogios à beleza dela. Interrompia a leitura, para pensar nele,
vê-lo surdir de uma esquina, ir pela rua fora do lado oposto, e tornar depois
do lado dela. Via-lhe os olhos, o andar, a figura... Depois tornava à carta, e
beijava-a muitas vezes, e numa delas, sentiu a pálpebra molhada. Não se vexou
da lágrima; era das que se confessam. Quando cansou de ler a carta, meteu-a debaixo do
travesseiro, e dispôs-se a dormir.
Mas qual dormir! Fechava os olhos,
mas o sono andava pelas casas dos indiferentes, não queria nada com uma pessoa
em quem as esperanças mortas reviviam com o vigor da adolescência. Celestina
recorria a todos os estratagemas para dormir; mas o rapaz da carta fincava-lhe
os olhos ardentes, e ia de um lado para outro; não tinha mais que contemplá-lo.
Não era ele o namorado, o apaixonado, o noivo próximo? Que ela planeara tudo:
no dia seguinte escreveria uma resposta ao rapaz, e dá-la-ia à escrava, para
que a entregasse. Estava disposta a não perder tempo.
Era meia-noite, quando Celestina
conseguiu adormecer; e antes o fizesse há mais tempo, porque sonhou ainda com o rapaz, e não
perdeu nada.
Sonhou que ele tornara a passar,
recebera a resposta e escrevera de novo. No fim de alguns dias, pediu-lhe autorização para
solicitar a sua mão. Viu-se logo casada. Foi uma festa brilhante, concorrida, à
qual todas as pessoas amigas foram, cerca de dezoito carros. Nada mais lindo
que o vestido dela, de cetim branco, um ramalhete de flores de laranjeira, ao
peito, algumas outras nos apanhados da saia. A grinalda era lindíssima. Toda a
vizinhança nas janelas. Na rua gente, na igreja muita gente, e ela entrando por
meio de alas, ao lado da madrinha... Quem seria a madrinha? D. Mariana Pinto ou
a baronesa? A baronesa... A mãe talvez quisesse D. Mariana, mas a baronesa...
Em sonhos mesmo discutiu isso, interrompendo a entrada triunfal no templo.
O padrinho do noivo era o próprio
Ministro da Justiça, que ia ao lado dele fardado, condecorado, brilhante, e que, no fim da
cerimônia, veio cumprimentá-la com grande atenção. Celestina estava cheia de
si, a mãe também, a irmã também, e ela prometia a esta um casamento igual.
— Daqui a três meses, você está
também casada, dizia-lhe ao receber dela os parabéns.
Muitas rosas desfolhadas sobre ela.
Eram caídas da tribuna. O noivo deu-lhe o braço, e ela saiu como se fosse
entrando no céu. Os curiosos eram agora em maior número. Gente e mais gente.
Chegam os carros; lacaios aprumados abrem as portinholas. Lá vai depois o
cortejo devagar e brilhante, todos aqueles cavalos brancos pisando o chão com
uma gravidade fidalga. E ela, ela, tão feliz! ao lado do noivo!
A fada branca dos sonhos continuou
assim a fazer surdir do nada uma porção de coisas belas. Celestina descobriu,
no fim de uma semana de casada, que o marido era príncipe. Celestina princesa!
A prova é que aqui está um palácio, e todas as portas, louça, cadeiras, coches,
tudo tem armas principescas, no escudo, uma águia ou leão, um animal qualquer,
mas soberano.
— Vossa Alteza se quiser...
— Rogo a Vossa Alteza.
— Perdão, Alteza...
E tudo assim, até quase de manhã.
Antes do sol acordou, esteve alguns minutos esperta, mas tornou a dormir para
continuar o sonho, que então já não era de príncipe. O marido era um grande poeta, viviam
ao pé de um lago, ao pôr-do-sol, cisnes nadando, um princípio da lua, e a
felicidade entre eles. Foi esta a última
fase do delírio.
Celestina acordou tarde; ergueu-se
ainda com o sabor das coisas imaginadas, e o pensamento no namorado, noivo
próximo. Embebida na imagem dele, foi às suas abluções matinais. A escrava
entrou-lhe na alcova.
— Nhã Titina...
— Que é?
A preta hesitou.
— Fala, fala.
— Nhã Titina achou na sua cesta uma
carta?
— Achei.
— Vosmecê me perdoe, mas a carta era
para nhã Joaninha...
Celestina empalideceu. Quando a preta
a deixou só, Celestina deixou cair uma lágrima — e foi a última que o amor lhe
arrancou.
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Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol.
II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente em A Estação, 15/12/1884.
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