
VINTE ANOS! VINTE ANOS!
Gonçalves, despeitado, amarrotou o
papel, e mordeu o beiço. Deu cinco ou seis passos no quarto, deitou-se na cama,
de barriga para o ar, pensando; depois foi à janela, e esteve ali durante dez
ou doze minutos, batendo o pé no chão e olhando para a rua, que era a rua
detrás da Lapa.
Não há leitor, menos ainda leitora,
que não imagine logo que o papel é uma carta,
e que a carta é de amores, alguma zanga de moça, ou notícia de que o pai os
ameaçava, que a intimou a ir para fora, para a roça, por exemplo. Vão conjecturas!
Não se trata de amores, não é mesmo carta, posto que haja embaixo algumas
palavras assinadas e datadas, com endereço a ele. Trata-se disto. Gonçalves é estudante, tem a família na
província e um correspondente na corte, que lhe dá a mesada. Gonçalves recebe a
mesada pontualmente; mas tão depressa a recebe como a dissipa. O que acontece é
que a maior parte do tempo vive sem dinheiro; mas os vinte anos formam um dos
primeiros bancos do mundo, e Gonçalves
não dá pela falta. Por outro lado, os vinte anos são também confiados e cegos;
Gonçalves escorrega aqui e ali, e cai em desmandos. Ultimamente, viu um
sobretudo de peles, obra soberba, e uma linda bengala, não rica, mas de gosto; Gonçalves não tinha
dinheiro, mas comprou-os fiado. Não queria, note-se; mas foi um colega que o
animou. Lá se vão quatro meses; e instando o credor pelo dinheiro, Gonçalves
lembrou-se de escrever uma carta ao correspondente, contando-lhe tudo, com tais
maneiras de estilo, que enterneceriam a mais dura pedra do mundo.
O correspondente não era pedra, mas
também não era carne; era correspondente, aferrado à obrigação, rígido, e
possuía cartas do pai de Gonçalves, dizendo-lhe que o filho tinha uma grande
queda para gastador, e que o reprimisse. Entretanto, estava ali uma conta; era
preciso pagá-la. Pagá-la era animar o moço a outras. Que fez o correspondente?
Mandou dizer ao rapaz que não tinha dúvida em saldar a dívida, mas que ia
primeiro escrever ao pai, e pedir-lhe ordens; dir-lhe-ia na mesma ocasião que
pagara outras dívidas miúdas e dispensáveis. Tudo isso em duas ou três linhas
embaixo da conta, que devolveu.
Compreende-se o pesar do rapaz. Não
só ficava a dívida em aberto, mas, o que era pior, ia notícia dela ao pai. Se
fosse outra coisa, vá; mas um sobretudo de peles, luxuoso e desnecessário, uma
coisa que realmente ele achou depois que era um trambolho, pesado, enorme e quente...
Gonçalves dava ao diabo o credor, e ainda mais o correspondente. Que necessidade
era essa de ir contá-lo ao pai? E que carta que o pai havia de escrever! que
carta! Gonçalves estava a lê-la de antemão. Já não era a primeira: a última
ameaçava-o com a miséria.
Depois de dizer o diabo do
correspondente, de fazer e desfazer mil planos,
Gonçalves
assentou no que lhe pareceu melhor, que era ir à casa dele, na Rua do Hospício,
descompô-lo, armado de bengala, e dar-lhe com ela, se ele replicasse alguma
coisa. Era sumário, enérgico, um tanto fácil, e, segundo lhe dizia o coração, útil
aos séculos.
Gonçalves
assentou no que lhe pareceu melhor, que era ir à casa dele, na Rua do Hospício,
descompô-lo, armado de bengala, e dar-lhe com ela, se ele replicasse alguma
coisa. Era sumário, enérgico, um tanto fácil, e, segundo lhe dizia o coração, útil
aos séculos.
— Deixa estar, patife! quebro-te a
cara.
E, trêmulo, agitado, vestiu-se às
carreiras, chegando ao extremo de não pôr a gravata; mas lembrou-se dela na
escada, voltou ao quarto, e atou-a ao pescoço. Brandiu no ar a bengala para ver
se estava boa; estava. Parece que deu três ou quatro pancadas nas cadeiras e no
chão — o que lhe mereceu não sei que palavra de um vizinho irritadiço. Afinal
saiu.
— Não, patife! não me pregas outra.
Eram os vinte anos que irrompiam
cálidos, férvidos, incapazes de engolir a afronta e dissimular. Gonçalves foi
por ali fora, Rua do Passeio, Rua da Ajuda, Rua dos Ourives, até à Rua do
Ouvidor. Depois lembrou-se que a casa do correspondente, na Rua do Hospício, ficava
entre as de Uruguaiana e dos Andradas; subiu, pois, a do Ouvidor para ir tomar
a primeira destas. Não via ninguém, nem as moças bonitas que passavam, nem os
sujeitos que lhe diziam adeus com a mão. Ia andando à maneira de touro. Antes
de chegar à Rua de
Uruguaiana, alguém chamou por ele.
— Gonçalves! Gonçalves!
Não ouviu e foi andando. A voz era de
dentro de um café. O dono dela veio à porta, chamou outra vez, depois saiu à
rua, e pegou-o pelo ombro.
— Onde vais?
— Já volto...
— Vem cá primeiro.
E tomando-lhe o braço, voltou para o
café, onde estavam mais três rapazes a uma mesa. Eram colegas dele, — todos da
mesma idade. Perguntaram-lhe onde ia;
Gonçalves respondeu que ia castigar um pelintra, donde os quatro colegas concluíram
que não se tratava de nenhum crime público, inconfidência ou sacrilégio, — mas
de algum credor ou rival. Um deles chegou mesmo a dizer que deixasse o Brito em
paz.
— Que Brito? perguntou o Gonçalves.
— Que Brito? O preferido, o tal, o
dos bigodes, não te lembras? Não te lembras mais da Chiquinha Coelho?
Gonçalves deu de ombros, e pediu uma
xícara de café. Tratava-se nem da Chiquinha Coelho nem do Brito! Há coisa muito
séria. Veio o café, fez um cigarro, enquanto um dos colegas confessava que a
tal Chiquinha era a pequena mais bonita que tinha visto desde que chegara. Gonçalves
não disse nada; entrou a fumar e a beber o café, aos goles, curtos e demorados.
Tinha os olhos na rua; no meio da conversa dos outros, declarou que
efetivamente a pequena era bonita, mas não era a mais bonita; e citou outras,
cinco ou seis. Uns concordaram em absoluto, outros em parte, alguns discordaram
inteiramente. Nenhuma das moças citadas valia a Chiquinha Coelho. Debate longo,
análise das belezas.
— Mais café, disse Gonçalves.
— Não quer cognac?
— Traga... não... está bom, traga.
Vieram ambas as coisas. Uma das
belezas citadas passou justamente na rua, de braço com o pai, deputado. Daqui
um prolongamento de debate, com desvio para a política. O pai estava prestes a
ser ministro.
— E o Gonçalves genro do ministro!
— Deixa de graças, redargüiu rindo o
Gonçalves.
— Que tinha?
— Não gosto de graças. Eu genro?
Demais, vocês sabem as minhas opiniões políticas; há um abismo entre nós. Sou
radical...
— Sim, mas os radicais também se
casam, observou um.
— Com as radicais, emendou outro.
— Justo. Com as radicais...
— Mas você não sabe se ela é radical.
— Ora bolas, o café está frio!
exclamou Gonçalves. Olhe lá; outro café. Tens um cigarro? Mas então parece a
vocês que eu chegue a ser genro do ***. Ora que caçoada! Vocês nunca leram
Aristóteles?
— Não.
— Nem eu.
— Deve ser um bom autor.
— Excelente, insistiu Gonçalves. Ó
Lamego, tu lembras-te daquele sujeito que uma vez quis ir ao baile de máscaras, e nós
lhe pusemos um chapéu, dizendo que era de Aristóteles?
E contou a anedota, que na verdade
era alegre e estúrdia; todos riram, começando por ele, que dava umas
gargalhadas sacudidas e longas, muito longas. Veio o café, que era quente, mas
pouco; pediu terceira xícara, e outro cigarro. Um dos colegas contou então um
caso análogo, e, como falasse de passagem em Wagner, conversaram da revolução
que o Wagner estava fazendo na Europa. Daí passaram naturalmente à ciência
moderna; veio Darwin, veio Spencer, veio Büchner, veio Moleschott, veio tudo.
Nota séria, nota graciosa, uma grave, outra aguda, e café, cigarro, troça,
alegria geral, até que um relógio os surpreendeu batendo cinco horas.
— Cinco horas! exclamaram dois ou
três.
— No meu estômago são sete, ponderou
um dos outros.
— Onde jantam vocês?
Resolveram fazer uma revista de
fundos e ir jantar juntos. Reuniram seis mil- réis; foram a um hotel modesto, e
comeram bem, sem perder de vista as adições e o total. Eram seis e meia, quando
saíram. Caía a tarde, uma linda tarde de verão. Foram até o Largo de S.
Francisco. De caminho, viram passar na Rua do Ouvidor algumas moças
retardatárias; viram outras no ponto dos bonds de S. Cristóvão. Uma delas
desafiou mesmo a curiosidade dos rapazes. Era alta e fina, recentemente viúva. Gonçalves achou que era
muito parecida com a Chiquinha Coelho; os outros divergiram. Parecida ou não,
Gonçalves ficou entusiasmado. Propôs irem todos no bond em que ela
fosse; os outros ouviram rindo.
Nisto a noite foi chegando; eles
tornaram à Rua do Ouvidor. Às sete e meia caminharam para um teatro, não para
ver o espetáculo (tinham apenas cigarros e níqueis no bolso), mas para ver
entrar as senhoras. Uma hora depois vamos achá-los, no Rocio, discutindo uma
questão de física. Depois recitaram versos, deles e de outros. Vieram anedotas,
trocadilhos, pachuchadas; muita alegria em todos, mas principalmente no
Gonçalves que era o mais expansivo e ruidoso, alegre como quem não deve nada. Às nove horas
tornou este à Rua do Ouvidor, e, não tendo charutos, comprou uma caixa por
vinte e dois mil-réis, fiado. Vinte anos! Vinte anos!
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Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. Publicado originalmente em A Estação, de
15/7/1884.
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