O CALIFA DE PLATINA
O califa Schacabac era muito estimado
de seus súditos, não só pelas virtudes
que o adornavam, como pelos talentos que faziam dele um dos varões mais capazes de Platina. Os
benefícios de seu califado, aliás curto, eram já grandes. Ele iniciara e
fundara a política de conciliação entre
as facções do Estado, animava as artes e as letras, protegia a indústria e o comércio. Se havia
alguma rebelião, tratava de vencer os
rebeldes; em seguida perdoava-lhes. Finalmente, era moço, crente, empreendedor
e patriota.
Uma noite, porém, estando a dormir,
apareceu-lhe em sonhos um anão amarelo,
que, depois de o encarar silenciosamente alguns minutos, proferiu estas palavras singulares:
— Comendador dos crentes, teu
califado tem sido um modelo de príncipes; falta-lhe, porém, originalidade; é
preciso que faças alguma coisa original. Dou-te um ano e um dia para cumprir
este preceito: se o não cumprires, voltarei e irás comigo a um abismo, que há
no centro da Tartaria, no qual morrerás de fome, sede, desespero e solidão.
O califa acordou sobressaltado,
esfregou os olhos e reparou que era apenas
um sonho. Contudo, não pôde dormir mais; levantou-se e foi ao terraço contemplar as últimas estrelas e os
primeiros raios da aurora. Ao almoço,
serviram-lhe peras de Damasco. Tirou uma e quando ia a trincá-la, a pêra
saltou-lhe das mãos e saiu de dentro o mesmo anão amarelo, que lhe repetiu as
mesmas palavras da noite. Imagina-se o terror com que Schacabac as ouviu. Quis
falar, mas o anão desaparecera. O eunuco que lhe servira a pêra estava ainda diante dele, com o prato nas mãos.
— Viste alguma coisa? perguntou o
califa, desconfiado e pálido.
— Vi que Vossa Grandeza comeu uma
pêra, muito tranqüilo, e, ao que parece, com muito prazer.
O califa respirou; depois recolheu-se
ao mais secreto de seus aposentos, onde não falou a ninguém durante três
semanas. O eunuco levava-lhe a comida, com exclusão das peras. Não lhe aproveitou a exclusão, porque no fim de três
semanas, apetecendo-lhe comer tâmaras, viu sair de dentro de uma o mesmo anão amarelo,
que lhe repetiu as mesmíssimas palavras de intimação e ameaça. Schacabac não se
pôde ter; mandou chamar o vizir.
— Vizir, disse o califa, logo que
este acudiu ao chamado, quero que convoques para esta noite os oficiais do meu
conselho, a fim de lhes propor alguma coisa de grande importância e não menor
segredo.
O vizir obedeceu prontamente à ordem
do califa. Naquela mesma noite, reuniram-se os oficiais, o vizir e o chefe dos
eunucos; todos estavam curiosos de saber o motivo da reunião; o vizir, porém,
mais curioso ainda que os outros, simulava tranqüilamente achar-se na posse do
segredo.
Schacabac mandou vir caramelos,
cerejas, e vinhos do Levante; os oficiais do conselho refrescaram as goelas,
avivaram o intelecto, sentaram-se comodamente
nos sofás e cravaram os olhos no califa, que depois de alguns minutos de
reflexão, falou nestes termos:
— Sabeis que tenho feito alguma coisa
durante o meu curto califado; contudo,
ainda não fiz nada que verdadeiramente se possa dizer original. Foi o que me observou um anão
amarelo, que me apareceu há três semanas e ainda hoje de manhã. O anão
ameaçou-me com a mais afrontosa das mortes, em um abismo da Tartaria, se no fim
de um ano e um dia, eu não tiver feito
alguma coisa positivamente original.
Tenho cogitado dia e noite, e confesso que ainda não achei coisa que merecesse essa qualificação. Por
isso vos convoquei; espero de vossas luzes o concurso necessário à minha
salvação e à glória da nossa pátria.
O conselho ficou boquiaberto, ao
passo que o vizir, a mais e mais espantado,
não movia um único músculo do rosto. Cada oficial do conselho fincou a cabeça
nas mãos, a ver se descobria uma idéia original. Schacabac interrogava o
silêncio de todos, e sobre todos, o do vizir, cujos olhos, fitos no magnífico
tapete da Pérsia que forrava o chão da sala, parecia ter perdido a vida
própria, tal era a grande concentração dos pensamentos.
Ao cabo de meia
hora, um dos oficiais,
Muley-Ramadan, encomendando-se a Allah, falou nestes termos:
— Comendador dos crentes, se quereis
uma idéia extremamente original, mandai
cortar o nariz a todos os vossos súditos, adultos ou menores, e ordenai que a
mesma operação seja feita a todos os que nascerem de hoje em diante.
O chefe dos eunucos e diversos
oficiais protestaram logo contra semelhante
idéia, que lhes pareceu excessivamente original. Schacabac, sem a rejeitar de todo, objetou que
o nariz era um órgão interessante e útil ao Estado, porquanto fazia florescer a
indústria dos lenços e ministrava anualmente alguns defluxos à medicina.
— Que razão poderia levar-me a privar
o meu povo desse natural ornamento? concluiu o califa.
— Saiba Vossa Grandeza, respondeu
Muley-Ramadan, que, fundado na predição de um sábio astrólogo de meu
conhecimento, tenho por certo que, daqui a um século, há de ser descoberta uma
erva fatal ao gênero humano. Essa erva, que se chamará tabaco, será usada de duas
formas — em rolo ou em pó. O pó servirá para entupir o nariz dos homens e
prejudicar a saúde pública. Desde que os vossos súditos não tenham nariz serão
preservados de tão pernicioso costume...
Esta razão foi triunfalmente
combatida pelo vizir e todo o conselho, a tal ponto que o califa, aliás inclinado a ela,
deixou-a inteiramente de mão. Então o chefe dos eunucos, depois de pedir
licença a Schacabac para exprimir um voto, que lhe parecia muito mais original
que o primeiro, propôs que dali em
diante o pagamento dos impostos passasse a ser voluntário, clandestino e
anônimo. Desde que assim for, concluiu
ele, estou certo de que o erário regurgitará de sequins; o contribuinte
crescerá cem côvados ante a própria consciência; algum haverá que, levado de legítimo excesso, pague
duas e três vezes a mesma taxa; e
afinado deste modo o sentimento cívico, melhorarão, e muito, os costumes
públicos.
A maioria do conselho concordou em
que a idéia era prodigiosamente original, mas o califa achou-a prematura, e
aventou a conveniência de a estudar e pôr em execução nas proximidades da vinda
do Anticristo. Cada um dos oficiais propôs a sua idéia, que foi julgada
original, mas não tanto que merecesse ser aceita de preferência a todas. Um propôs
a invenção da clarineta, outro a proscrição dos legumes, até que o vizir falou
nestes termos:
— Seja-me dado, comendador dos
crentes, propor uma idéia que vos salvará
dos abismos da Tartaria. É esta: mandai trancar as portas de Platina a todas as
caravanas que vierem de Brasilina; que nenhum camelo, se ali recebeu mercadoria ou somente
bebeu água, que nenhum camelo, digo eu, possa penetrar as portas da nossa
cidade.
Espantado com a proposta, o califa
ponderou ao vizir:
— Mas que motivo... sim, é preciso
que haja um motivo... para...
— Nenhum, tornou o vizir, e nisto
consiste a primeira originalidade da minha idéia. Digo a primeira, porque há
outra maior. Peço-vos, e ao conselho,
que acompanheis atentamente o meu raciocínio...
Todos ficaram atentos.
— Logo que a notícia de semelhante
medida chegar a Brasilina, haverá grande
reboliço e estupefação. Os mercadores ficarão pesarosos com o ato, porque são os que mais
perdem. Nenhuma caravana, nem ainda as
que vêm de Meca, quererá mais parar naquela cidade maldita, a qual (permita-me
o conselho uma figura de retórica)
ficará bloqueada pelo vácuo. Que acontece? Condenados os mercadores a não mercar para cá, serão
obrigados a fechar as portas, ao menos aos domingos. Ora, como há em Brasilina
uma classe caixeiral, que suspira pelo
fechamento das portas aos domingos, para ir fazer suas orações nas mesquitas,
acontecerá isto: o fechamento das portas
de cá produzirá o fechamento das portas de lá, e Vossa Grandeza terá assim a
glória de inaugurar o calembour nas relações internacionais.
Apenas o vizir concluiu este
discurso, todo o conselho reconheceu, unânime,
que a idéia era a mais profundamente original de quantas tinham sido propostas. Houve abraços,
expansões. O chefe dos eunucos disse
poeticamente que a idéia do vizir era “o loto da sapiência brotando junto ao
Nilo das necessidades públicas”. O califa manifestou o seu entusiasmo ao vizir,
dando-lhe de presente uma cimitarra, uma bolsa com cinco mil sequins e a
patente de coronel da guarda nacional.
No dia seguinte, todos os cadis leram
ao povo o decreto que mandava fechar as
portas da cidade às caravanas de Brasilina. A notícia excitou a curiosidade
pública e causou certa estranheza, mas o vizir tivera o
cuidado de espalhar pela boca pequena
a anedota do anão amarelo, e a opinião pública aceitou a medida como um sinal
visível da proteção de Allah.
Daí em diante, por espaço de alguns
meses, um dos recreios da cidade era
subir às muralhas a ver chegar as caravanas. Se estas vinham de Damasco, de
Jerusalém, do Cairo ou de Bagdá, abriam-se-lhe as portas, e elas entravam sem a
mínima objeção; mas se alguma confessava
que tocara em Brasilina, o oficial das portas dizia-lhe que passasse de largo.
A caravana voltava no meio dos apupos da multidão.
Entretanto o califa indagava todos os
dias do vizir se constava que em Brazilina
se houvesse procedido ao fechamento das portas aos domingos; ao que o vizir invariavelmemte
respondia que não, mas que a medida não tardaria a ser proclamada como
conseqüência rigorosa da idéia que havia
proposto. Nessa esperança, iam voando as semanas e os meses.
— Vizir, disse um dia Schacabac,
quer-me parecer que estamos enganados.
— Descanse Vossa Grandeza, retorquiu
friamente o vizir; o fato vai consumar-se; assim o exige a ciência.
Pela sua parte, o povo cansou de
apupar as caravanas e começou a notar
que a idéia do vizir era simplesmente amoladora. Não vinham da Brasilina as
mercadorias do costume, nem o povo mandava para lá
as suas cerejas, os seus vinagres e
os seus colchões. Ninguém ganhava com o
decreto. Começou-se a murmurar contra ele. Um boticário (ainda não havia farmacêutico)
arengou ao povo, dizendo que a idéia do
vizir era simplesmente vã; que jamais o trocadilho das portas fechadas chegaria
a ter a mínima sombra de realidade científica. Os doutores eclesiásticos não
acharam no Corão um só versículo que pudesse justificar tais induções e
esperanças. Lavrava a descrença e
descontentamento; começava a soprar uma aragem de revolução.
O vizir não teve só de lutar contra o
povo, mas também contra o califa, cuja boa fé começou a desconfiar do acerto do
decreto. Três dias antes de chegar o
prazo fatal, o califa intimou o vizir a dar-lhe notícia do resultado que
prometera ou a substituí-lo por uma idéia verdadeiramente original.
Nesse apertado lance, o vizir chegou
a desconfiar de si, e a persuadir-se que aventara aquela idéia, levado do único
desejo de desbancar os outros oficiais. Disso mesmo o advertiu Abracadabro,
varão exímio na geomancia, a quem
consultou sobre o que lhe cumpria fazer.
— Esperar, disse Abracadabro, depois
de traçar algumas linhas no chão; esperar até o último dia do prazo fatal
marcado ao califa. O que há de acontecer nesse dia, não o pode descortinar a
ciência, porque há muita coisa que a
ciência ignora. Mas faze isso. No último dia do prazo, à noite, tu e o califa
deveis recolher-vos ao mais secreto aposento, onde vos serão servidos três
figos de Alexandria. O resto lá saberás; e podes ficar certo de que será coisa
boa.
Deu-se pressa o vizir em contar ao
califa as palavras de Abracadabro, e, fiados na geomancia, aguardaram o dia
último. Veio este, e depois dele a
noite. Sós os dois, no mais secreto aposento de Schacabac, mandaram vir três
figos de Alexandria. Cada um dos dois tirou o seu e abriu-o; o do califa deu um
pulo, subiu ao teto e caiu logo no chão, sob a forma do famoso anão amarelo. Vizir e
califa tentaram fugir, correndo às portas; mas o anão os deteve com gesto
amigo.
— Não é preciso fugir, disse ele; não
venho buscar-te; venho somente declarar que achei verdadeiramente original a
idéia do fechamento das portas. Certo é
que não deu de si tudo o que o vizir esperava; mas nem por isso perdeu de
originalidade. Allah seja convosco.
Livre da ameaça, o califa mandou logo
que todas as portas se abrissem às
caravanas de Brasilina. O povo aquietou-se; o comércio votou mensagens de agradecimento. E porque o
califa e o vizir eram homens instruídos, práticos e dotados de boas intenções,
e apenas tinham cedido ao medo, sentiram-se contentes com repor as coisas no
antigo pé, e não se encontravam nunca sem dizer ao outro, esfregando as mãos:
— Aquele anão amarelo!
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Nota:
Texto-fonte: Páginas Recolhidas,
Machado de Assis. Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson, 1938. Publicado
originalmente em O Cruzeiro, 9 de abril de 1878.
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