
FILOSOFIA DE UM PAR DE BOTAS
Uma destas tardes, como eu acabasse de jantar, e muito, lembrou- me dar um passeio à Praia de Santa Luzia, cuja solidão é propícia a todo homem que ama digerir em paz. Ali fui, e com tal fortuna que achei uma pedra lisa para me sentar, e nenhum fôlego vivo nem morto. — Nem morto, felizmente. Sentei-me, alonguei os olhos, espreguicei a alma, respirei à larga, e disse ao estômago: — Digere a teu gosto, meu velho companheiro. Deus nobis haec otia fecit.
Digeria o estômago, enquanto o
cérebro ia remoendo, tão certo é, que tudo neste mundo se resolve na
mastigação. E digerindo, e remoendo, não reparei logo que havia, a poucos
passos de mim, um par de coturnos velhos e imprestáveis. Um e outro tinham a sola
rota, o tacão comido do longo uso, e tortos, porque é de notar que a
generalidade dos homens camba, ou para um ou para outro ado. Um dos coturnos
(digamos botas, que não lembra tanto a tragédia), uma das botas tinha um rasgão
de calo. Ambas estavam maculadas de lama
velha e seca; tinham o couro ruço, puído, encarquilhado.
Olhando casualmente para as botas,
entrei a considerar as vicissitudes humanas, e a conjeturar qual teria sido a
vida daquele produto social. Eis senão quando, ouço um rumor de vozes surdas; em
seguida, ouvi sílabas, palavras, frases, períodos; e não havendo ninguém, imaginei que era eu, que eu era
ventríloquo; e já podem ver se fiquei
consternado. Mas não, não era eu; eram as botas que falavam entre si, suspiravam e riam, mostrando
em vez de dentes, umas pontas de tachas enferrujadas. Prestei o ouvido; eis o
que diziam as botas:
BOTA ESQUERDA.- Ora, pois, mana,
respiremos e filosofemos um pouco.
BOTA DIREITA.- Um pouco? Todo o resto
da nossa vida, que não há de ser muito
grande; mas enfim, algum descanso nos trouxe a velhice. Que destino! Uma praia!
Lembras-te do tempo em que brilhávamos na vidraça da Rua do Ouvidor?
BOTA ESQUERDA.- Se me lembro! Quero
até crer que éramos as mais bonitas de todas. Ao menos na elegância...
BOTA DIREITA.- Na elegância, ninguém
nos vencia.
BOTA ESQUERDA.- Pois olha que havia
muitas outras, e presumidas, sem contar aquelas botinas cor de chocolate...
aquele par...
BOTA DIREITA.- O dos botões de
madrepérola?
BOTA ESQUERDA.- Esse.
BOTA DIREITA.- O daquela viúva?
BOTA ESQUERDA.- O da viúva.
BOTA DIREITA.- Que tempo! Éramos
novas, bonitas, asseadas; de quando em
quando, uma passadela de pano de linho, que era uma consolação. No mais, plena ociosidade. Bom
tempo, mana, bom tempo! Mas, bem dizem
os homens: não há bem que sempre dure, nem mal que se não acabe.
BOTA ESQUERDA.- O certo é que ninguém
nos inventou para vivermos novas toda
vida. Mais de uma pessoa ali foi experimentar-nos; éramos calçadas com cuidado,
postas sobre um tapete, até que um dia, o Dr. Crispim passou, viu-nos, entrou e
calçou-nos. Eu, de raivosa, apertei-lhe um pouco os dois calos.
BOTA DIREITA.- Sempre te conheci
pirracenta.
BOTA ESQUERDA.- Pirracenta, mas
infeliz. Apesar do apertão, o Dr. Crispim levou-nos.
BOTA DIREITA.- Era bom homem, o Dr.
Crispim; muito nosso amigo. Não dava
caminhadas largas, não dançava. Só jogava o voltarete, até tarde, duas e três horas da
madrugada; mas, como o divertimento era
parado, não nos incomodava muito. E depois, entrava em casa, na pontinha dos
pés, para não acordar a mulher. Lembras-te?
BOTA ESQUERDA.- Ora! por sinal que a
mulher fingia dormir para lhe não tirar
as ilusões. No dia seguinte ele contava que estivera na maçonaria. Santa
senhora!
BOTA DIREITA.- Santo casal! Naquela
casa fomos sempre felizes, sempre! E a gente que eles freqüentavam? Quando não
havia tapetes, havia palhinha; pisávamos o macio, o limpo, o asseado. Andávamos
de carro muita vez, e eu gosto tanto de carro! Estivemos ali uns quarenta dias,
não?
BOTA ESQUERDA.- Pois então! Ele
gastava mais sapatos do que a Bolívia gasta constituições.
BOTA DIREITA.- Deixemo-nos de
política.
BOTA ESQUERDA.- Apoiado.
BOTA DIREITA (com força).- Deixemo-nos de política, já disse!
BOTA ESQUERDA (sorrindo).- Mas um
pouco de política debaixo da mesa?... Nunca te contei... contei, sim... o caso
das botinas cor de chocolate... as da viúva...
BOTA DIREITA.- Da viúva, para quem o
Dr. Crispim quebrava muito os olhos?
Lembra-me que estivemos juntas, num jantar do Comendador Plácido. As botinas
viram-nos logo, e nós daí a pouco as vimos também, porque a viúva, como tinha o
pé pequeno, andava a mostrá-lo a cada passo. Lembra-me também que, à mesa, conversei muito com uma das botinas. O
Dr. Crispim sentara-se ao pé do comendador e defronte da viúva; então, eu fui direita a uma delas, e falamos, falamos pelas
tripas de Judas... A princípio, não; a princípio ela fez-se de boa; e
toquei-lhe no bico, respondeu-me zangada: “Vá-se, me deixe!” Mas eu insisti, perguntei-lhe por onde tinha andado, disse-lhe
que estava ainda muito bonita, muito conservada; ela foi-se amansando, buliu
com o bico, depois com o tacão, pisou em
mim, eu pisei nela e não te digo mais...
BOTA ESQUERDA.- Pois é justamente o
que eu queria contar...
BOTA DIREITA.- Também conversaste?
BOTA ESQUERDA.- Não; ia conversar com
a outra. Escorreguei devagarinho, muito devagarinho, com cautela, por causa da
bota do comendador.
BOTA DIREITA.- Agora me lembro:
pisaste a bota do comendador.
BOTA ESQUERDA.- A bota? Pisei o calo.
O comendador: Ui! As senhoras: Ai! Os homens: Hein? E eu recuei; e o Dr.
Crispim ficou muito vermelho, muito
vermelho...
BOTA DIREITA.- Parece que foi
castigo. No dia seguinte o Dr. Crispim deu-nos de presente a um procurador de
poucas causas.
BOTA ESQUERDA.- Não me fales! Isso
foi a nossa desgraça! Um procurador! Era o mesmo que dizer: mata-me estas
botas; esfrangalha-me estas botas!
BOTA DIREITA.- Dizes bem. Que roda
viva! Era da Relação para os escrivães,
dos escrivães para os juízes, dos juízes para os advogados, dos advogados para as partes
(embora poucas), das partes para a
Relação, da Relação para os escrivães...
BOTA
ESQUERDA.- Et coetera. E as chuvas! e as lamas! Foi o procurador quem primeiro me deu este corte
para desabafar um calo. Fiquei asseada
com esta janela à banda.
BOTA DIREITA.- Durou pouco; passamos
então para o fiel de feitos, que no fim de três semanas nos transferiu ao
remendão. O remendão (ah! já não era a Rua do Ouvidor!) deu-nos alguns pontos, tapou-nos este buraco, e impingiu-nos
ao aprendiz de barbeiro do Beco dos Aflitos.
BOTA DIREITA.- Com esse havia pouco
que fazer de dia, mas de noite...
BOTA ESQUERDA.- No curso de dança;
lembra-me. O diabo do rapaz valsava como quem se despede da vida. Nem nos
comprou para outra coisa, porque para os passeios tinha um par de botas novas, de verniz e bico fino. Mas para as
noites... Nós éramos as botas do curso...
BOTA DIREITA.- Que abismo entre o
curso e os tapetes do Dr. Crispim...
BOTA ESQUERDA.- Coisas!
BOTA DIREITA.- Justiça, justiça; o
aprendiz não nos escovava; não tínhamos
o suplício da escova. Ao menos, por esse lado, a nossa vida era tranqüila.
BOTA ESQUERDA.- Relativamente, creio.
Agora, que era alegre não há dúvida; em
todo caso, era muito melhor que a outra que nos esperava.
BOTA DIREITA.- Quando fomos parar às
mãos...
BOTA ESQUERDA.- Aos pés.
BOTA DIREITA.- Aos pés daquele
servente das obras públicas. Daí fomos atiradas à rua, onde nos apanhou um
preto padeiro, que nos reduziu enfim a este último estado! Triste! triste!
BOTA ESQUERDA.- Tu queixas-te, mana?
BOTA DIREITA.- Se te parece!
BOTA ESQUERDA.- Não sei; se na
verdade é triste acabar assim tão miseravelmente, numa praia, esburacadas e
rotas, sem tacões nem ilusões, — por outro lado, ganhamos a paz, e a
experiência.
BOTA DIREITA.- A paz? Aquele mar pode
lamber-nos de um relance.
BOTA ESQUERDA.- Trazer-nos-á outra
vez à praia. Demais, está longe.
BOTA DIREITA.- Que eu, na verdade,
quisera descansar agora estes últimos
dias; mas descansar sem saudades, sem a lembrança do que foi. Viver tão
afagadas, tão admiradas na vidraça do autor dos nossos dias; passar uma vida
feliz em casa do nosso primeiro dono, suportável na casa dos outros; e agora...
BOTA ESQUERDA.- Agora quê?
BOTA DIREITA.- A vergonha, mana.
BOTA ESQUERDA.- Vergonha, não. Podes
crer, que fizemos felizes aqueles a quem calçamos; ao menos, na nossa mocidade.
Tu que pensas? Mais de um não olha para suas idéias com a mesma satisfação com que olha para suas botas. Mana,
a bota é a metade da circunspecção; em todo o caso é a base da sociedade
civil...
BOTA DIREITA.- Que estilo! Bem se vê
que nos calçou um advogado.
BOTA ESQUERDA.- Não reparaste que, à
medida que íamos envelhecendo, éramos
menos cumprimentadas?
BOTA DIREITA.- Talvez.
BOTA ESQUERDA.- Éramos, e o chapéu
não se engana. O chapéu fareja a bota...
Ora, pois! Viva a liberdade! viva a paz! viva a velhice! (A Bota Direita abana tristemente o cano). Que tens?
BOTA DIREITA.- Não posso; por mais
que queira, não posso afazer-me a isto. Pensava que sim, mas era ilusão... Viva
a paz e a velhice, concordo; mas há de ser sem as recordações do passado...
BOTA ESQUERDA.- Qual passado? O de
ontem ou de anteontem? O do advogado ou o do servente?
BOTA DIREITA.- Qualquer; contanto que
nos calçassem. O mais reles pé de homem é sempre um pé de homem.
BOTA ESQUERDA.- Deixa-te disso;
façamos da nossa velhice uma coisa útil
e respeitável.
BOTA DIREITA.- Respeitável, um par de
botas velhas! Útil, um par de botas velhas! Que utilidade? que respeito? Não
vês que os homens tiraram de nós o que podiam, e quando não valíamos um caracol mandaram deitar-nos à margem? Quem é
que nos há de respeitar? — aqueles
mariscos? (olhando para
mim) Aquele sujeito que está ali com os olhos assombrados?
BOTA ESQUERDA.- Vanitas! Vanitas!
BOTA DIREITA.- Que dizes tu?
BOTA ESQUERDA.- Quero dizer que és
vaidosa, apesar de muito acalcanhada, e que devemos dar-nos por felizes com
esta aposentadoria, lardeada de algumas recordações.
BOTA DIREITA.- Onde estarão a esta
hora as botinas da viúva?
BOTA ESQUERDA.- Quem sabe lá! Talvez
outras botas conversem com outras
botinas... Talvez: é a lei do mundo; assim caem os Estados e as instituições.
Assim perece a beleza e a mocidade. Tudo botas, mana; tudo botas, com tacões ou
sem tacões, novas ou velhas; direita ou
acalcanhadas, lustrosas ou ruças, mas botas, botas botas!
Neste ponto calaram-se as duas
interlocutoras, e eu fiquei a olhar para uma e outra, a esperar se diziam
alguma coisa mais. Nada; estavam pensativas.
Deixei-me ficar assim algum tempo,
disposto a lançar mão delas, e levá-las para casa com o fim de as estudar,
interrogar, e depois escrever uma
memória, que remeteria a todas as academias do mundo. Pensava também em as apresentar nos
circos de cavalinhos, ou ir vendê-las a Nova Iorque. Depois, abri mão de todos
esses projetos. Se elas queriam a paz, uma velhice sossegada, por que motivo
iria eu arrancá-las a essa justa paga de uma vida cansada e laboriosa? Tinham
servido tanto! tinham rolado todos os
degraus da escala social; chegavam ao último, a praia, a triste Praia de Santa
Luzia... Não, velhas botas! Melhor é que fiqueis aí no derradeiro descanso.
Nisto vi chegar um sujeito
maltrapilho; era um mendigo. Pediu-me uma esmola; dei-lhe um níquel.
MENDIGO.- Deus lhe pague, meu senhor!
(Vendo as botas) Um par de botas! Foi um
anjo que as pôs aqui...
EU (ao mendigo).- Mas,
espere...
MENDIGO.- Espere o quê? Se lhe digo
que estou descalço! (Pegando
nas botas) Estão bem boas! Cosendo-se isto
aqui, com um barbante...
BOTA DIREITA.- Que é isto, mana? que
é isto? Alguém pega em nós... Eu
sinto-me no ar...
BOTA ESQUERDA.- É um mendigo.
BOTA DIREITA.- Um mendigo? Que
quererá ele?
BOTA DIREITA (alvoroçada).- Será possível?
BOTA ESQUERDA.- Vaidosa!
BOTA DIREITA.- Ah! mana! esta é a
filosofia verdadeira: — Não há bota
velha que não encontre um pé cambaio.
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Nota:
Texto-fonte: Obra Completa de Machado de Assis,Vol. III Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em O Cruzeiro, 23 de abril de 1878.
Texto-fonte: Obra Completa de Machado de Assis,Vol. III Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em O Cruzeiro, 23 de abril de 1878.
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