
ELOGIO DA VAIDADE
I
Logo que a Modéstia acabou de falar,
com os olhos no chão, a Vaidade
empertigou-se e disse:
Damas e cavalheiros, acabais de ouvir
a mais chocha de todas as virtudes, a
mais peca, a mais estéril de quantas podem reger o coração dos homens; e ides
ouvir a mais sublime delas, a mais fecunda, a mais sensível, a que pode dar
maior cópia de venturas sem contraste.
Que eu sou a Vaidade, classificada
entre os vícios por alguns retóricos de
profissão; mas na realidade, a primeira das virtudes. Não olheis para este
gorro de guizos, nem para estes punhos carregados de braceletes, nem para estas
cores variegadas com que me adorno. Não olheis, digo eu, se tendes o
preconceito da Modéstia; mas se o não
tendes, reparai bem que estes guizos e tudo mais, longe de ser uma casca ilusória
e vã, são a mesma polpa do fruto da sabedoria; e reparai mais que vos chamo a
todos, sem os biocos e meneios daquela senhora, minha mana e minha rival.
Digo a todos, porque a todos cobiço,
ou sejais formosos como Páris, ou feios como Tersites, gordos como Pança,
magros como Quixote, varões e mulheres,
grandes e pequenos, verdes e maduros, todos os que compondes este mundo, e
haveis de compor o outro; a todos falo, como a galinha fala aos seus pintinhos, quando os convoca à refeição, a
saber, com interesse, com graça, com amor. Porque nenhum, ou raro, poderá
afirmar que eu o não tenha alçado ou consolado.
II
Onde é que eu não entro? Onde é que
eu não mando alguma coisa? Vou do salão do rico ao albergue do pobre, do
palácio ao cortiço, da seda fina e roçagante ao algodão escasso e grosseiro.
Faço exceções, é certo (infelizmente!); mas, em geral, tu que possuis, busca-me
no encosto da tua otomana, entre as porcelanas da tua baixela, na portinhola da
tua carruagem; que digo? busca-me em ti mesmo,
nas tuas botas, na tua casaca, no teu bigode; busca-me no teu próprio coração. Tu, que não possuis nada,
perscruta bem as dobras da tua estamenha, os recessos da tua velha arca; lá me acharás
entre dois vermes famintos; ou ali, ou no fundo dos teus sapatos sem graxa, ou
entre os fios da tua grenha sem óleo.
Valeria a pena ter, se eu não
realçasse os teres? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que mandaste vir de tão
longe esse vaso opulento? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que encomendaste à
melhor fábrica o tecido que te veste, a safira que te arreia, a carruagem que
te leva? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que ordenaste esse festim babilônico, e pediste ao pomar os
melhores vinhos? E tu, que nada tens, por que aplicas o salário de uma semana
ao jantar de uma hora, senão porque eu
te possuo e te digo que alguma coisa deves parecer melhor do que és na
realidade? Por que levas ao teu casamento um coche, tão rico e tão caro, como o
do teu opulento vizinho, quando podias ir à igreja com teus pés? Por que compras
essa jóia e esse chapéu? Por que talhas o teu vestido pelo padrão mais rebuscado, e por que te remiras ao
espelho com amor, senão porque eu te consolo da tua miséria e do teu nada,
dando-te a troco de um sacrifício grande
benefício ainda maior?
III
Quem é esse que aí vem, com os olhos
no eterno azul? É um poeta; vem compondo
alguma coisa; segue o vôo caprichoso da estrofe.
— Deus te salve, Píndaro! Estremeceu; moveu a fronte, desabrochou em riso. Que
é da inspiração? Fugiu-lhe; a estrofe perdeu-se
entre as moitas; a rima esvaiu-se-lhe por entre os dedos da memória. Não
importa; fiquei eu com ele, — eu, a musa décima, e, portanto, o conjunto de todas as musas,
pela regra dos doutores de Sganarello.
Que ar beatífico! Que satisfação sem mescla! Quem dirá a esse homem que uma
guerra ameaça levar um milhão de outros
homens? Quem dirá que a seca devora uma porção do país? Nesta ocasião ele nada sabe, nada ouve.
Ouve-me, ouve-se; eis tudo.
Um homem caluniou-o há tempos; mas
agora, ao voltar à esquina, dizem-lhe
que o caluniador o elogiou.
— Não me fales nesse maroto.
— Elogiou-te; disse que és um poeta
enorme.
— Outros o têm dito, mas são homens
de bem, e sinceros. Será ele sincero?
— Confessa que não conhece poeta
maior.
— Peralta! Naturalmente arrependeu-se
da injustiça que me fez. Poeta enorme, disse ele?
— O maior de todos.
— Não creio. O maior?
— O maior.
— Não contestarei nunca os seus
méritos; não sou como ele que me caluniou; isto é, não sei, disseram-mo. Diz-se
tanta mentira! Tem gosto o maroto; é um pouco estouvado às vezes, mas tem gosto. Não contestarei nunca os seus méritos.
Haverá pior coisa do que mesclar o ódio às opiniões? Que eu não lhe tenho ódio.
Oh! nenhum ódio. É estouvado, mas imparcial.
Uma semana depois, vê-lo-eis de braço
com o outro, à mesa do café, à mesa do
jogo, alegres, íntimos, perdoados. E quem embotou esse ódio velho, senão eu? Quem verteu
o bálsamo do esquecimento nesses dois
corações irreconciliáveis? Eu, a caluniada amiga do gênero humano.
Dizem que o meu abraço dói. Calúnia,
amados ouvintes! Não escureço a verdade;
às vezes há no mel uma pontazinha de fel; mas como eu dissolvo tudo! Chamai aquele mesmo
poeta, não Píndaro, mas Trissotin. Vê-lo-eis derrubar o carão, estremecer, rugir,
morder-se, como os zoilos de Bocage. Desgosto, convenho, mas desgosto curto.
Ele irá dali remirar-se nos próprios livros. A justiça que um atrevido lhe
negou, não lha negarão as páginas dele. Oh! a mãe que gerou o filho, que o
amamenta e acalenta, que põe nessa frágil criaturinha o mais puro de todos os
amores, essa mãe é Medéia, se a
compararmos àquele engenho, que se consola da injúria, relendo-se; porque se o amor de
mãe é a mais elevada forma do altruísmo, o dele é a mais profunda forma de
egoísmo, e só há uma coisa mais forte que o amor materno, é o amor de si próprio.
IV
Vede estoutro que palestra com um
homem público. Palestra, disse eu? Não; é o outro que fala; ele nem fala, nem
ouve. Os olhos entornam-se-lhe em roda, aos que passam, a espreitar se o vêem, se
o admiram, se o invejam. Não corteja as palavras do outro; não lhes abre sequer as portas da atenção
respeitosa. Ao contrário, parece ouvi-las com familiaridade, com indiferença,
quase com enfado. Tu, que passas, dizes
contigo:
— São íntimos; o homem público é
familiar deste cidadão; talvez parente.
Quem lhe faz obter esse teu juízo, senão eu? Como eu vivo da opinião e para a opinião, dou àquele
meu aluno as vantagens que resultam de uma boa opinião, isto é, dou-lhe tudo.
Agora, contemplai aquele que tão
apressadamente oferece o braço a uma
senhora. Ela aceita-lho; quer seguir até a carruagem, e há muita gente na rua. Se a Modéstia animara o
braço do cavalheiro, ele cumprira o seu
dever de cortesania, com uma parcimônia de palavras, uma moderação de maneiras, assaz
miseráveis. Mas quem lho anima sou eu, e
é por isso que ele cuida menos de guiar à dama, do que de ser visto dos outros
olhos. Por que não? Ela é bonita,
graciosa, elegante; a firmeza com que assenta o pé é verdadeiramente senhoril.
Vede como ele se inclina e bamboleia! Riu-se?
Não vos iludais com aquele riso familiar, amplo, doméstico; ela disse apenas que o calor é grande. Mas é
tão bom rir para os outros! é tão bom fazer supor uma intimidade elegante!
Não deveríeis crer que me é vedada a
sacristia? Decerto; e contudo, acho meio de lá penetrar, uma ou outra vez, às escondidas, até às meias roxas daquela grave
dignidade, a ponto de lhe fazer esquecer
as glórias do céu, pelas vanglórias da terra. Verto-lhe o meu óleo no coração, e ela
sente-se melhor, mais excelsa, mais
sublime do que esse outro ministro subalterno do altar, que ali vai queimar o
puro incenso da fé. Por que não há de ser
assim, se agora mesmo penetrou no santuário esta garrida matrona, ataviada das
melhores fitas, para vir falar ao seu Criador? Que farfalhar! que voltear de
cabeças! A antífona continua, a música não cessa; mas a matrona suplantou
Jesus, na atenção dos ouvintes. Ei-la que dobra as curvas, abre o livro, compõe
as rendas, murmura a oração, acomoda o
leque. Traz no coração duas flores, a fé e eu; a celeste, colheu-a no
catecismo, que lhe deram aos dez anos; a terrestre colheu-a no espelho, que lhe
deram aos oito; são os seus dois Testamentos; e eu sou o mais antigo.
V
Mas eu perderia o tempo, se me
detivesse a mostrar um por um todos os
meus súditos; perderia o tempo e o latim. Omnia vanitas. Para que citá-los,
arrolá-los, se quase toda a terra me pertence? E digo quase, porque não há
negar que há tristezas na terra e onde há tristezas aí governa a minha irmã
bastarda, aquela que ali vedes com os olhos no chão. Mas a alegria sobrepuja o
enfado e a alegria sou eu. Deus dá um anjo guardador a cada homem; a natureza
dá- lhe outro, e esse outro é nem mais nem menos esta vossa criada, que recebe o homem no berço, para deixá-lo
somente na cova. Que digo? Na
eternidade; porque o arranco final da modéstia, que aí lês nesse testamento, essa recomendação de ser
levado ao chão por quatro mendigos, essa
cláusula sou eu que a inspiro e dito; última e genuína vitória do meu poder, que é imitar
os meneios da outra.
Oh! a outra! Que tem ela feito no
mundo que valha a pena de ser citado?
Foram as suas mãos que carregaram as pedras das Pirâmides? Foi a sua arte que
entreteceu os louros de Temístocles? Que vale
a charrua do
seu Cincinato, ao
pé do capelo
do meu cardeal de Retz? Virtudes de cenóbios, são
virtudes? Engenhos de gabinete, são engenhos? Traga-me ela uma lista de seus
feitos, de seus heróis, de suas obras duradouras; traga-ma, e eu a suplantarei,
mostrando-lhe que a vida, que a história, que os séculos nada são sem mim.
Não vos deixeis cair na tentação da
Modéstia: é a virtude dos pecos. Achareis decerto, algum filósofo, que vos
louve, e pode ser que algum poeta, que vos cante. Mas, louvaminhas e cantarolas
têm a existência e o efeito da flor que a Modéstia elegeu para emblema; cheiram
bem, mas morrem depressa. Escasso é o prazer que dão, e ao cabo definhareis na
soledade. Comigo é outra coisa: achareis, é verdade, algum filósofo que vos
talhe na pele; algum frade que vos dirá que eu sou inimiga da boa consciência.
Petas! Não sou inimiga da consciência, boa ou má; limito-me a substituí-la,
quando a vejo em frangalhos; se é ainda nova, ponho-lhe diante de um espelho de
cristal, vidro de aumento. Se vos parece preferível o narcótico da Modéstia,
dizei-o; mas ficai certos de que excluireis
do mundo o fervor, a alegria, a fraternidade.
Ora, pois, cuido haver mostrado o que
sou e o que ela é; e nisso mesmo revelei a minha sinceridade, porque
disse tudo, sem vexame, nem reserva; fiz o meu próprio elogio, que é vitupério,
segundo um antigo rifão; mas eu não faço
caso de rifões. Vistes que sou a mãe da
vida e do contentamento, o vínculo da sociabilidade,
o conforto, o vigor, a ventura dos homens; alço a uns, realço a outros, e a todos amo; e quem é
isto é tudo, e não se deixa vencer de
quem não é nada.
E reparai que nenhum grande vício se
encobriu ainda comigo; ao contrário, quando Tartufo entra em casa de Orgon, dá
um lenço a Dorina para que cubra os seios. A modéstia serve de conduta a seus intentos. E por que não seria assim, se
ela ali está de olhos baixos, rosto
caído, boca taciturna? Poderíeis afirmar que é Virgínia e não Locusta? Pode ser uma ou outra, porque
ninguém lhe vê o coração. Mas comigo?
Quem se pode enganar com este riso franco, irradiação do meu próprio ser; com
esta face jovial, este rosto satisfeito, que um quase nada obumbra, que outro
quase nada ilumina; estes olhos, que não se escondem, que se não esgueiram por entre as pálpebras, mas fitam serenamente
o sol e as estrelas?
VI
O quê? Credes que não é assim? Querem
ver que perdi toda a minha retórica, e
que ao cabo da pregação, deixo um auditório de relapsos? Céus! Dar-se-á caso
que a minha rival vos arrebatasse outra vez? Todos o dirão ao ver a cara com
que me escuta este cavalheiro; ao ver o
desdém do leque daquela matrona. Uma levanta
os ombros; outro ri de escárnio. Vejo ali um rapaz a fazer-me figas: outro
abana tristemente a cabeça; e todas, todas as pálpebras parecem baixar, movidas por um
sentimento único. Percebo, percebo! Tendes a volúpia suprema da vaidade, que é
a vaidade da modéstia.
---
Nota:
Obra
Completa de Machado de Assis,Vol. III Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em O Cruzeiro, 28 de maio de 1878.
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