
LONGE DOS OLHOS
CAPÍTULO
PRIMEIRO
Na verdade, era pena que uma moça tão
prendada de qualidades morais e físicas, como a filha do desembargador, nenhum
sentimento inspirasse ao Bacharel Aguiar. Mas não a lastime a leitora, porque o
Bacharel Aguiar nada dizia ao coração de Serafina, apesar dos seus talentos, da
rara elegância das suas maneiras, de todos quantos dotes costumam adornar um
herói de romance.
E não é romance isto, senão história
verídica e real, pelo que, vai esta narrativa com as exíguas proporções de uma
notícia, sem enfeites de estilo nem recheio de reflexões. O caso conto como o
caso foi.
Sabido que os dois se não amavam nem
pendiam para lá, convém saber mais que o gosto, o plano e não sei se também o
interesse dos pais é que eles se amassem
e casassem. Os pais punham uma coisa, e Deus dispunha outra. O comendador
Aguiar, pai do bacharel, insistia ainda mais no casamento, pelo desejo que tinha de o meter na política, o que
lhe parecia fácil desde que o filho se tornasse genro do desembargador, membro
ativíssimo de um dos partidos e por agora deputado à Assembléia Geral.
O desembargador pela sua parte achava
que lhe não fazia mal nenhum a filha participar da pingue herança que devia
receber o filho do comendador, por morte deste.
Pena era que os dois jovens,
esperanças de seus pais, derrubassem todos estes planos olhando um para o outro
com a máxima indiferença. As famílias visitavam-se freqüentemente, as reuniões
e as festas sucediam-se, mas nem Aguiar
nem Serafina pareciam dar um passo para o outro. Tão grave caso exigia pronto remédio, e foi o comendador quem tomou
a resolução de lho dar sondando o espírito do bacharel.
— João, disse o velho pai certa noite
de domingo, depois do chá, achando-se com o filho a sós no gabinete: Acaso
nunca pensaste em ser homem político?
— Oh! nunca! respondeu o bacharel
espantado com a pergunta. Por que razão pensaria eu na política?
— Pela mesma razão porque outros
pensam...
— Mas eu não tenho vocação.
— A vocação faz-se.

João sorriu.
O pai continuou.
— Não te faço esta pergunta à toa. Já
houve quem me perguntasse a mesma coisa a teu respeito, eu não tive que
responder porque a falar verdade as razões que me davam eram de peso.
— Quais eram?
— Diziam-me que tu andavas em
colóquios e conferências com o desembargador.
— Eu? Mas naturalmente converso com
ele; é pessoa da nossa amizade.
— Foi o que eu disse. A pessoa
pareceu convencer-se da razão que eu lhe dava, e então imaginou outra coisa...
O bacharel arregalou os olhos à
espera de ouvir outra coisa, enquanto o comendador acendia um charuto.
— Imaginou então, continuou o
comendador puxando uma fumaça, que tu andavas... quero dizer... que
pretendias... em suma, um namoro!
— Um namoro!
— É verdade.
— Com o desembargador?
— Velhaco! com a filha.
João Aguiar deu uma gargalhada. O pai
pareceu rir também, mas reparando bem não era um riso, era uma careta.
Depois de um silêncio:
— Mas não vejo que houvesse alguma
coisa de admirar, disse o comendador; tem-se visto namorar muito rapaz e muita
moça. Tu estás na idade do casamento, ela também; nossas famílias visitam-se
com freqüência; vocês falam-se com intimidade. Que admira que um estranho
supusesse alguma coisa?
— Tem razão; mas não é verdade.
— Pois tanto melhor... ou tanto pior.
— Pior?
— Maganão! disse o velho pai afetando
um ar galhofeiro, parece-te que a moça é algum peixe podre? Pela minha parte,
entre as moças com que temos relações de família, nenhuma acho que se lhe compare.
— Oh!
— Oh! quê!
— Protesto.
— Protestas? Achas então que ela...

— Acho que é muito formosa e
prendada, mas não acho que seja a mais formosa e prendada de todas as que
conhecemos...
— Mostra-me alguma...
— Ora, há tantas!
— Mostra-me uma.
— A Cecília por exemplo, a Cecília
Rodrigues, para o meu gosto é muito mais bonita que a filha do desembargador.
— Não digas isso; uma lambisgóia!
— Meu pai! disse João Aguiar com um
tom de ressentimento que fez pasmar o comendador.
— Que é? perguntou este.
João Aguiar não respondeu. O
comendador arrugou a testa e interrogou o rosto mudo do filho. Não leu, mas
adivinhou alguma coisa desastrosa; — desastrosa, entenda-se, para os seus
cálculos cônjugo-políticos ou político-conjugais, como melhor nome haja.
— Dar-se-á caso que... começou a
dizer o comendador.
— Que eu a namore? interrompeu
galhofeiramente o filho.
— Não era isso o que te ia perguntar,
acudiu o comendador (que aliás não ia perguntar outra coisa), mas visto que
tocaste nesse ponto, não era mau que me dissesses...
— A verdade?
— A singela verdade.
— Gosto dela, ela gosta de mim, e
aproveito esta ocasião meu pai, para...
— Para nada, João!
O bacharel fez um gesto de espanto.
— Casar, não é? perguntou o
comendador. Mas tu não vês a impossibilidade de semelhante coisa? Impossível,
não digo que seja; tudo pode acontecer neste mundo, se a natureza o pede. Mas a
sociedade tem suas leis que não devemos violar, e segundo elas esse casamento é
impossível.
— Impossível!
— Tu levas-lhe em dote os meus bens,
a tua carta de bacharel e um princípio de carreira. Que te traz ela? Nem sequer
essa beleza que só tu lhe vês. Demais, e isto é o importante, não se dizem boas
coisas daquela família.
— Calúnias!
— Pode ser, mas calúnias que correm e
se acreditam; e visto que tu não podes fazer na véspera do casamento um
manifesto aos povos desmentindo o que se diz e provando que nada é verdade,
segue-se que as calúnias triunfarão.
Era a primeira vez que o bacharel
conversava com o pai a respeito daquele grave
ponto do seu coração. Aturdido com as objeções
dele, não achou logo que responder e todo se limitou a interrompê-lo com um ou
outro monossílabo. O comendador continuou no mesmo tom e concluiu dizendo que
esperava dele não lhe desse um grave desgosto no fim da vida.
ponto do seu coração. Aturdido com as objeções
dele, não achou logo que responder e todo se limitou a interrompê-lo com um ou
outro monossílabo. O comendador continuou no mesmo tom e concluiu dizendo que
esperava dele não lhe desse um grave desgosto no fim da vida.
— Por que te não levou a fantasia à
filha do desembargador ou outra nas mesmas condições? A Cecília, não, nunca
será minha nora. Pode casar contigo, é verdade, mas então não serás meu filho.
João Aguiar não achou que responder
ao pai. Ainda que achasse, não o poderia fazer porque quando deu acordo de si
ele estava longe.
O bacharel foi para o seu quarto.
CAPÍTULO
II
Entrando no quarto, João Aguiar fez
alguns gestos de enfado e zanga e de si para si prometeu que, embora não
agradasse ao pai, havia de casar com a formosa Cecília, cujo amor era para ele
já uma necessidade da vida... O pobre rapaz tão depressa fez este protesto como
entrou a ficar frio com a idéia de uma luta, que se lhe afigurava odiosa para
ele e para o pai, em todo o caso triste para ambos. As palavras deste
relativamente à família da namorada fizeram-lhe grave impressão no espírito;
mas ele concluiu, que ainda sendo verdadeira a murmuração, nada tinha com isso
a formosa Cecília, cujas qualidades morais estavam acima de todo o elogio.
A noite correu assim nestas e noutras
reflexões até que o bacharel dormiu e na manhã seguinte alguma coisa se lhe
havia dissipado das apreensões da véspera.
— Tudo se pode vencer, disse ele; o
que é preciso é ser constante.
O comendador, porém, tinha dado o
passo mais difícil que era falar no assunto ao filho; vencido o natural acanhamento que
resultava da situação de ambos, aquele assunto tornou-se assunto obrigado de
quase todos os dias. As visitas à casa do desembargador amiudaram-se;
amiudaram-se igualmente as deste à casa do comendador. Os dois jovens foram
assim metidos à casa um do outro; mas se João Aguiar parecia frio, Serafina
parecia gélida. Os dois estimavam-se antes, e ainda se estimavam então;
entretanto, a nova situação que lhes haviam criado, estabelecera entre ambos
uma certa repulsa que a polidez mal disfarçava.
Porquanto, leitora amiga, o
desembargador fizera à filha um discurso igual ao do comendador. As qualidades
do bacharel foram postas em relevo com suma habilidade; as razões financeiras
do casamento, melhor direi as vantagens dele foram levemente indicadas de
maneira a desenhar aos olhos da moça um brilhante
futuro de pérolas e carruagens.
Infelizmente (tudo se conspirava
contra os dois pais), infelizmente havia no coração de Serafina um obstáculo
semelhante ao que João Aguiar tinha no seu, Serafina amava a outro. Não se
atreveu a dizê-lo ao pai, mas foi dizê-lo a sua mãe, que não aprovou nem
desaprovou a escolha visto que a senhora pensava pela boca do marido, a quem
foi transmitida a revelação da filha.
— Isso é uma loucura, exclamou o
desembargador; esse rapaz (o escolhido) é bom coração, tem carreira, mas a
carreira está no princípio, e demais... creio que é um pouco leviano.
Serafina soube deste juízo do pai e
chorou muito; mas nem o pai soube das lágrimas nem que soubesse mudaria de
intenção. Um homem grave, quando
resolve uma coisa, não deve expor-se ao
ridículo, resolvendo outra unicamente levado de algumas lágrimas de mulher.
Demais, a tenacidade é prova de caráter; o desembargador era e queria ser homem
austero. Conclusão; a moça chorou à toa, e só violando as leis da obediência,
poderia realizar os desejos do seu coração.
resolve uma coisa, não deve expor-se ao
ridículo, resolvendo outra unicamente levado de algumas lágrimas de mulher.
Demais, a tenacidade é prova de caráter; o desembargador era e queria ser homem
austero. Conclusão; a moça chorou à toa, e só violando as leis da obediência,
poderia realizar os desejos do seu coração.
Que fez então ela? Recorreu ao tempo.
— Quando meu pai vir que eu sou constante,
pensou Serafina, há de consentir no que pede o coração.
E dizendo isto, entrou a lembrar-se
das amigas a quem acontecera o mesmo e que à força de paciência e tenacidade
domaram os pais. O exemplo alentou-a; sua
resolução era definitiva.
Outra esperança tinha a filha do
desembargador; era que o filho do comendador se casasse, o que não era
impossível nem improvável.
Nesse caso, cumpria-lhe ser com João
Aguiar extremamente reservada a fim de que ele não viesse a conceber esperanças
a seu respeito, o que tornaria muito precária a situação e daria triunfo ao
pai. Ignorava a boa moça que João Aguiar fazia a mesma reflexão, e pelo mesmo
motivo se mostrava frio com ela.
Um dia, andando as duas famílias na
chácara da casa do comendador, em Andaraí, aconteceu encontrarem-se os dois
numa alameda, quando justamente não passava ninguém. Ambos mostraram-se
incomodados com aquele encontro e de boa
vontade teriam recuado; mas não era natural nem bonito.
João Aguiar resolveu cumprimentá-la
apenas e ir adiante, como quem levava o pensamento preocupado. Parece que isto
foi fingido demais, porque no melhor do papel, João Aguiar tropeça num pedaço
de cana que se achava no chão e cai.
A moça deu dois passos para ele, que
apressadamente se levantou:
— Machucou-se? perguntou ela.
— Não, D. Serafina, não me machuquei,
disse ele, limpando com o lenço os joelhos e as mãos.
— Papai está cansado de ralhar com o
feitor; mas é o mesmo que nada.
João Aguiar apanhou o pedaço de cana
e atirou-o para uma moita de bambus. Durante esse tempo vinha-se aproximando um
moço, visita da casa, e Serafina pareceu
um tanto confusa com a presença dele, não porque ele viesse mas por achá-la a
conversar com o bacharel. A leitora, que é perspicaz, adivinhou já que é o
namorado de Serafina; e João Aguiar, que não é menos perspicaz que a leitora,
percebeu a coisa do mesmo modo.
— Ainda bem, disse ele consigo.
E cumprimentando a moça e o rapaz ia
seguindo pela alameda fora quando Serafina amavelmente o chamou.
— Não nos acompanha? disse ela.
— Com muito gosto, balbuciou o
bacharel.
Serafina fez um sinal ao namorado
para que ele se tranqüilizasse, e os três seguiram a conversar de coisas que não
interessam à nossa história.

Não; há uma que interessa e não posso
omitir.
Tavares, o namorado da filha do
desembargador, não compreendeu que ela, chamando o filho do comendador a seguir
caminho com eles, tinha por fim evitar que o pai ou a mãe a encontrasse só com
o namorado, o que agravaria singularmente a situação. Há namorados a quem é
preciso dizer tudo; Tavares era um
deles. Inteligente e atilado em todas as outras coisas, era neste particular uma
verdadeira toupeira.
Por esse motivo, apenas ouviu o
convite da moça, a cara, que já anunciava mau tempo, passou a anunciar temporal desfeito, o
que também não escapou ao bacharel.
— Sabe que o Dr. Aguiar levou agora
uma queda? disse Serafina olhando para Tavares.
— Ah!
— Não desastrosa, disse o bacharel,
isto é, não me fez mal nenhum; mas... ridícula.
— Ah! protestou a moça.
— Uma queda é sempre ridícula, tornou
João Aguiar em tom axiomático; e podem já imaginar o que seria do meu futuro,
se eu fosse...
— O quê? perguntou Serafina.
— Seu namorado.
— Que idéia! exclamou Serafina.
— Que dúvida pode haver nisso?
perguntou Tavares com um sorriso irônico.
Serafina estremeceu e baixou os
olhos.
João Aguiar respondeu rindo:
— A coisa era possível, mas
deplorável.
Serafina lançou um olhar de
repreensão ao seu namorado e voltou-se rindo para o bacharel.
— Não diz isso por desdém, acho eu?
— Oh! por quem é! Digo isto porque...
— Aí vem Cecília! exclamou a irmã
mais moça de Serafina, aparecendo no fim da alameda.
Serafina que estava a olhar para o
filho do comendador viu-o estremecer e sorriu-se. O bacharel olhou para o lado
de onde logo apareceu a dama dos seus pensamentos. A filha do desembargador
inclinou-se para o ouvido de Tavares e murmurou:
— Ele diz isto... por causa daquilo.
Aquilo era a Cecília que chegava, não
tão formosa quanto queria João Aguiar, nem tão pouco como parecia ao comendador.

Aquele encontro casual na alameda,
aquela queda, aquela vinda de Tavares e de Cecília tão a propósito, tudo
melhorou a situação e desafogou a alma dos dois jovens destinados por seus pais
a um casamento que lhes parecia odioso.
CAPÍTULO
III
De inimigos que deviam ser os dois
condenados ao casamento passaram a ser naturalmente aliados. Esta aliança veio
devagar, porque, apesar de tudo, ainda se passaram algumas semanas sem que
nenhum deles comunicasse ao outro a situação em que se achava.
O bacharel foi o primeiro que falou,
e não ficou pouco pasmado ao saber que o desembargador nutria a respeito da
filha igual plano ao de seu pai. Haveria acordo dos dois pais? foi a primeira
pergunta que ambos fizeram consigo mesmo; mas houvesse ou não, o perigo para
eles não diminuía nem aumentava.
— Oh! sem dúvida, dizia João Aguiar,
sem dúvida que eu seria muito feliz se os desejos de nossos pais
correspondessem aos de nossos corações; mas há um abismo entre nós e a união
seria...
— Uma desgraça, concluía afoitamente
a moça. Pela minha parte, confio no tempo; confio sobretudo em mim; ninguém
leva uma moça à força para a igreja e quando tal coisa se fizesse ninguém lhe
podia arrancar dos lábios uma palavra por outra.
— Todavia, nada impede que à liga de
nossos pais, disse João Aguiar, opuséssemos
nós uma liga... nós quatro.
A moça abanou a cabeça.
— Para quê? disse ela.
— Mas...
— A verdadeira liga é a vontade.
Sente-se com força de ceder? Então é que não ama...
— Oh! amo como se pode amar!
— Ah!...
— A senhora é bela; mas Cecília
também o é, e o que eu vejo nela não é a beleza, quero dizer as graças físicas,
é a alma incomparável que Deus lhe deu!
— Amam-se há muito?
— Há sete meses.
— Admira que ela nunca me dissesse
nada.
— Talvez receio...
— De quê?
— De revelar o segredo do seu
coração... Bem sei que não há crime nisto, todavia pode ser que por um
sentimento de discrição exagerada.
— Tem razão, disse Serafina depois de
alguns instantes; também eu nada lhe
disse a meu respeito. Demais, entre nós não há
grande intimidade.
disse a meu respeito. Demais, entre nós não há
grande intimidade.
— Mas deve haver, há de haver, disse
o filho do comendador. Vê-se que nasceram para ser amigas; ambas tão igualmente
boas e belas. Cecília é um anjo... Se soubesse o que me disse quando eu lhe
contei a proposta de meu pai!
— Que disse?
— Estendeu-me a mão apenas; foi tudo
quanto me disse; mas esse gesto era tão eloqüente! Eu traduzi-o por uma
expressão de confiança.
— Foi mais feliz do que eu?
— Ah!
— Mas não falemos nisto. O essencial
é que tanto eu como o senhor tenhamos feito uma boa escolha. O céu há de
proteger-nos; estou certa disso.
A conversa continuou assim por este
modo singelo e franco. Os dois pais, que ignoravam absolutamente o objeto da
conversa deles, imaginavam que a natureza os ajudava no plano do casamento e,
longe de impedir, lhes facilitavam as ocasiões.
Graças a este equívoco, os dois
podiam repetir essas doces práticas em que cada um ouvia o seu próprio coração
e falava do objeto escolhido por ele. Não era um diálogo, eram dois monólogos,
algumas vezes interrompidos, mas, sempre longos e cheios de animação.
Com o tempo vieram eles a fazer-se
confidentes mais íntimos; esperanças, arrufos, ciúmes, todas as alternativas de
um namoro, comunicados um ao outro; um ao outro se consolavam e se aconselhavam
em casos em que eram necessários consolação e conselho.
Um dia o comendador disse ao filho
que era conhecido o namoro dele com a filha do desembargador, e que o casamento
podia ser feito naquele ano.
João Aguiar caiu das nuvens.
Compreendeu, porém, que a aparência enganava ao pai, e o mesmo podia acontecer
às pessoas estranhas.
— Mas nada há, meu pai.
— Nada?
— Juro-lhe que...
— Retira-te e lembra-te do que te
disse...
— Mas...
O comendador havia já voltado as
costas. João Aguiar ficou só a braços com a nova dificuldade. Para ele, a
necessidade de uma confidente era já invencível. E onde acharia melhor que a
filha do desembargador? Era idêntica a situação de ambos, iguais os interesses;
além disso, havia em Serafina uma soma de sensibilidade, uma reflexão, uma
prudência, uma confiança, como ele não encontraria em nenhuma outra pessoa.
Ainda quando a outra pessoa pudesse dizer-lhe as mesmas coisas que a filha do
desembargador, não lhas diria com a mesma graça, e a mesma doçura; um não sei o
que o levava a lastimar não poder fazê-la feliz.
— Meu pai, tem razão, dizia ele às
vezes consigo; se eu não amasse a outra,
devia amar a esta, que é certamente comparável
a Cecília. Mas é impossível; meu coração está preso a outros laços...
devia amar a esta, que é certamente comparável
a Cecília. Mas é impossível; meu coração está preso a outros laços...
A situação, entretanto,
complicava-se, toda a família de João Aguiar dizia-lhe que a sua verdadeira e
melhor noiva era a filha do desembargador. Para acabar com todas essas
insinuações, e seguir os impulsos do seu coração, teve o bacharel idéia de
raptar Cecília, idéia extravagante e só filha do desespero, visto que o pai e a mãe da namorada nenhum obstáculo punham ao
casamento deles. Ele mesmo reconheceu que o recurso era um despropósito. Ainda
assim disse-o a Serafina, que amigavelmente o repreendeu:
— Que idéia foi essa! exclamou a
moça, além de desnecessário, não era... não era decorosa. Olhe, se fizesse isso
nunca mais devia falar-me...
— Não me perdoaria?
— Nunca!
— Entretanto, a minha posição é dura
e triste.
— Não o é menos a minha.
— Ser amado, poder ser feliz
tranqüilamente feliz para todos os dias da minha vida...
— Oh! isso!
— Não crê?
— Quisera crer. Mas está-me a parecer
que a felicidade que sonhamos quase nunca sai à medida dos nossos desejos, e
que mais vale uma quimera que uma realidade.
— Adivinho, disse João Aguiar.
— Adivinha o quê?
— Algum arrufo.
— Oh! não! nunca estivemos melhor;
nunca andamos mais tranqüilos do que agora.
— Mas...
— Mas não permite que às vezes a
dúvida entre no coração? Não é ele do mesmo barro que os outros?
João Aguiar refletiu alguns
instantes.
— Talvez tenha razão, disse ele
enfim, a realidade não será sempre tal qual a sonhamos. Mas isto mesmo é uma
harmonia na vida, é uma grande perfeição do homem. Se víssemos logo a realidade como ela
há de ser quem daria um passo para ser feliz?...
— Isso é verdade! exclamou a moça e
deixou-se ficar pensativa enquanto o bacharel
lhe contemplava a admirável cabeça e a graciosa maneira com que ela trazia os
cabelos penteados.
A leitora há de desconfiar muita
coisa às teorias dos dois confidentes relativamente à felicidade. Pela minha
parte, posso afiançar que João Aguiar não
pensava uma só palavra que disse; não o
pensava antes, quero eu dizer; ela porém
tinha o secreto poder de lhe influir as suas idéias e sentimentos. Não poucas
vezes dizia ele que se ela fosse fada podia dispensar a vara de condão; bastava falar.
pensava uma só palavra que disse; não o
pensava antes, quero eu dizer; ela porém
tinha o secreto poder de lhe influir as suas idéias e sentimentos. Não poucas
vezes dizia ele que se ela fosse fada podia dispensar a vara de condão; bastava falar.
CAPÍTULO
IV
Um dia, Serafina recebeu uma carta de
Tavares dizendo-lhe que não voltaria mais
à casa de seu pai, por este lhe haver mostrado má cara nas últimas vezes que
ele lá estivera.
Má cara é exageração de Tavares, cuja
desconfiança era extrema e às vezes pueril; é certo que o desembargador não
gostava dele, depois que soube das intenções com que ali ia, e é possível, é
até certo que o seu modo afetuoso para com ele sofreu alguma diminuição. A
fantasia de Tavares é que fez daquilo má cara.
Eu aposto que o leitor, em caso
igual, redobrava de atenções com o pai, a ver se lhe reconquistava as boas
graças, e entretanto ia gozando a fortuna de ver e contemplar a dona dos seus
pensamentos. Tavares não fez assim; tratou logo de romper as suas relações.
Serafina sentiu sinceramente esta
resolução do namorado. Escreveu-lhe dizendo que refletisse bem e voltasse
atrás. Mas o namorado era homem teimoso; meteu os pés à parede, e não voltou.
Jurar-lhe amor isso fez ele, e não
deixava de lhe escrever todos os dias, cartas muito longas, muito repassadas de sentimento e
de esperanças.
João Aguiar soube do que se passara e
procurou por sua vez dissuadi-lo da funesta resolução.
Tudo foi baldado.
— A desconfiança é o único defeito
dele, dizia Serafina ao filho do comendador; mas é grande.
— É um defeito bom e mau, observou
João Aguiar.
— Não é sempre mau.
— Mas como não há criatura perfeita,
é justo relevar-lhe esse único defeito.
— Oh! de certo; contudo...
— Contudo?
— Preferia que o defeito fosse outro.
— Outro qual?
— Outro qualquer. A desconfiança é
uma triste companheira; arreda toda a felicidade.
— Eu a esse respeito, não tenho
motivo de queixa... Cecília tem a virtude oposta num grau que me parece
excessivo. Há nela um quê de simplória...
— Oh!

Aquele oh de Serafina foi como que um
protesto e repreensão, mas acompanhado
de um sorriso, não digo aprovador, mas benévolo. Defendia a moça ausente, mas
talvez achasse que João Aguiar tinha razão.
Dois dias depois adoeceu levemente o
bacharel. A família do desembargador foi visitá-lo. Serafina escrevia-lhe todos
os dias. Cecília, é inútil dizê-lo, escrevia-lhe também. Mas havia uma
diferença: Serafina escrevia melhor; havia mais sensibilidade na sua linguagem.
Pelo menos, as cartas dela foram relidas mais vezes que as de Cecília.
Quando ele se levantou da cama,
estava bom fisicamente, mas recebeu um golpe na alma. Cecília ia para a roça
durante dois meses; eram manias do pai.
O comendador estimou este incidente,
supondo que de uma vez para sempre o filho a esqueceria. O bacharel,
entretanto, sentiu muito a separação.
A separação efetuou-se dai a cinco
dias. Cecília e João Aguiar escreveram um ao outro grandes protestos de amor.
— Dois meses! dizia o bacharel da
última vez que lhe falara. Dois meses é a eternidade...
— Sim, mas havendo constância...
— Oh! essa!
— Essa havemos de tê-la ambos. Não te
esqueças de mim, sim?
— Juro.
— Falarás de mim muitas vezes com
Serafina?
— Todos os dias.
Cecília partiu.
— Está muito triste? disse a filha do
desembargador logo que nessa mesma tarde falou ao bacharel.
— Naturalmente.
— São apenas dois meses.
— Fáceis de suportar.
— Fáceis?
— Sim, conversando com a senhora, que
sabe tudo, e fala destas coisas de coração como senhora de espírito que é.
— Sou um eco das suas palavras.
— Quem dera que assim fosse! Eu
poderia então ter vaidade de mim.
João Aguiar disse estas palavras sem
tirar os olhos da mão de Serafina, que mui graciosamente brincava com os
cabelos.
A mão de Serafina era realmente uma
bela mão; nunca, porém, lhe pareceu mais bela do que naquele dia, nem ela a
movera nunca com tamanha graça.

Nessa noite João Aguiar sonhou com a
mão da filha de desembargador. Que lhe havia de pintar a fantasia? Imaginou
estar no alto das nuvens, a olhar pasmado o céu azul, de onde viu
repentinamente sair uma mão alva e delicada, a mão de Serafina, que se estendia
para ele, que lhe acenava, que o chamava para o céu.
Riu-se João Aguiar deste singular
sonho e foi contá-lo no dia seguinte à proprietária da mão. Também ela riu do
sonho; mas tanto ele como ela pareciam estar convencidos lá no seu interior que
a mão era efetivamente angélica e era natural vê-la em sonhos.
Quando ele se despediu:
— Não vá sonhar outra vez com ela,
disse a moça estendendo a mão ao bacharel.
— Não desejo outra coisa.
Não sonhou outra vez com a mão, mas
pensou muito nela e dormiu tarde. No dia seguinte para se castigar desta preocupação,
escreveu uma longa carta a Cecília falando muito de seu amor e dos projetos de
futuro.
Cecília recebeu a carta cheia de
contentamento, porque muito tempo havia já que ele não escrevia carta tão
longa. A resposta dela foi ainda mais comprida.
Um período da carta convém ser
transcrito aqui:
Dizia assim:
Se eu fosse ciumenta... se eu fosse
desconfiada... havia de te dizer agora muito duras coisas. Mas não digo,
descansa; amo-te e sei que me amas. Mas por que havia eu de dizer duras coisas?
Porque nada menos de catorze vezes falas no nome de Serafina. Catorze vezes!
Mas são catorze vezes em catorze páginas, que são todas minhas.
João Aguiar não se lembrava de haver
escrito tanta vez o nome da filha do desembargador;
lembrava-se, porém, de haver pensado muito nela enquanto escrevia a carta.
Felizmente nada mau resultara, e o jovem namorado achou que ela tinha razão na
queixa.
Nem por isso deixou de mostrar o
trecho acusador à namorada do Tavares, que sorriu e agradeceu a confiança. Mas
foi um agradecimento com a voz trêmula e um sorriso de íntima satisfação.
Parece que as catorze páginas deviam
servir para longo tempo, porque a seguinte carta foi apenas de duas e meia.
A moça queixou-se, mas com brandura,
e concluiu pedindo-lhe que fosse vê-la à roça, ao menos por dois dias, visto
que o pai resolvera lá ficar mais quatro meses, além do prazo marcado para a
volta.
Era difícil ao filho do comendador ir
lá ter sem oposição do pai. Imaginou porém um meio bom; inventou um cliente e
um processo, ambos os quais o digno comendador engoliu, cheio de satisfação.
João Aguiar partiu para a roça.
Ia por dois dias apenas; os dois dias
correm nas delícias que o leitor pode imaginar, mas com uma sombra, uma coisa
inexplicável. João Aguiar, ou porque aborrecesse a roça ou porque amasse demais
a cidade, sentia-se um pouco
tolhido ou não sei que seja. No fim de dois dias desejava ver-se outra vez no bulício da corte. Felizmente, Cecília procurava compensar-lhe os tédios do lugar, mas parece que era excessiva nas mostras de amor que lhe dava, pois o digno bacharel dava sinais de impaciência.
tolhido ou não sei que seja. No fim de dois dias desejava ver-se outra vez no bulício da corte. Felizmente, Cecília procurava compensar-lhe os tédios do lugar, mas parece que era excessiva nas mostras de amor que lhe dava, pois o digno bacharel dava sinais de impaciência.
— Serafina tem mais comedimento,
dizia ele.
No quarto dia escreveu uma carta à
filha do desembargador, que lhe respondeu com outra, e se eu disser à leitora
que tanto um como outro beijaram as cartas recebidas, a leitora verá que a
história se aproxima do fim e que a catástrofe está próxima.
Catástrofe, na verdade, e terrível
foi a descoberta que tanto o bacharel como a filha do desembargador fizeram de
que se amavam e já de longos dias. Foi principalmente
a ausência que lhes confirmou a descoberta. Os dois confidentes aceitaram esta
novidade um pouco perplexos, mas muito contentes.
A alegria era travada de remorso.
Havia dois embaçados, a quem eles fizeram grandes protestos e juramentos
repetidos.
João Aguiar não resistiu ao novo
impulso do coração. A imagem da moça, sempre presente, fazia-lhe tudo
cor-de-rosa.
Serafina, porém, resistiu; a dor que
ia causar no ânimo de Tavares deu-lhe forças para calar o seu próprio coração.
Em conseqüência disto, começou a
evitar toda a ocasião de encontro com o jovem
bacharel. Isto e lançar lenha ao fogo era a mesma coisa. João Aguiar sentiu um obstáculo com que não contava, o
amor cresceu-lhe e apoderou-se dele.
Não contava com o tempo e o coração
da moça.
A resistência de Serafina durou o que
duram as resistências de quem ama. Serafina amava; no fim de quinze dias abateu
as armas. Tavares e Cecília estavam vencidos.
Eu desisto de dizer ao leitor o abalo
produzido naquelas duas almas pela ingratidão e perfídia dos dois felizes
namorados. Tavares enfureceu-se e Cecília definhou longo tempo; afinal Cecília
casou e Tavares está diretor de companhia.
Não há dor eterna.
— Bem dizia eu! exclamou o comendador
quando o filho lhe impetrou licença para ir pedir a mão de Serafina. Bem dizia
eu que vocês deviam casar! Custou muito!
— Alguma coisa.
— Mas agora?
— Definitivo.
Casaram-se há alguns anos aqueles
dois confidentes. Recusaram fazer à força aquilo que o coração lhes indicou
depois.
Há de ser duradouro o casamento.
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Nota:
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, de 3/1876 a 5/1876.
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