Ele aparecera um belo dia na casa de pensão de Dona Eugênia,
acompanhado de três baús e um pequeno cofre de ferro. Pedira o aposento mais
barato, e regateara o preço da comida, porque, dizia ele, estava habituado a
tomar uma única refeição por dia, e parca, muito parca.
Ninguém sabia de onde vinha aquele velho, nem ele o dizia,
conquanto não fosse precisamente um taciturno. Gostava de dar à língua, mas
quando algum abelhudo o interrogava sobre a sua vida, ele não respondia, dando
a entender apenas, por meias palavras, que passara por sérios dissabores, que
tinha sofrido muito
e mudara de
terra para que
ninguém lhe lembrasse
o passado.
Sabia-se apenas que se chamava Andrade, era português, e emigrara
muito criança para uma das nossas províncias onde viveu perto de sessenta anos.
Não consentia entrassem no seu quarto que ele próprio varria e
espanava, deixando-se ficar horas e horas sozinho, fechado à chave, abrindo e
remexendo o cofre e os baús.
Um dos hóspedes,
o Braguinha, guarda-livros de
uma casa importante,
afirmou ouvir no aposento do velho o tilintar de moedas de
ouro.
- Aquilo é uma espécie de tio Gaspar, dos Sinos de Corneville
- afirmava o dito Braguinha com uma convicção que se comunicou aos outros
hóspedes.
***
Mas podia lá ser! O velho Andrade tinha a roupa no fio, o chapéu
surrado, os sapatos a rir, e era com um suspiro doloroso e profundo que pagava,
no fim do mês, a sua módica pensão.
***
A dona da casa, que era viúva, e tinha três filhos, três bonitos
rapazes, o mais velho dos quais contava apenas treze anos, também se convenceu
de que o seu novo hóspede era um avarento sórdido; intimá-lo-ia, talvez, a
procurar cômodo noutra parte, se ele não se tivesse afeiçoado desde logo
aos três meninos,
mostrando-lhes uma simpatia
fora do comum,
contando-lhes histórias que os divertiam. Quem meus filhos beija minha
boca adoça.
- Adoro as crianças - dizia o velho a Dona Eugênia. - Que quer?
Não tenho mais ninguém sobre a terra: sou completamente só.
- Só? Pois nem um parente?...
- Nem um aderente, minha senhora! A morte levou-me quantos eu
amava, e esqueceu-se de mim neste mundo de atribulações e misérias.
***
Havia um negociante, o Barbosa, sujeito de meia idade, compadre da
Dona Eugênia, que a visitava miúdo e a assistia com os seus conselhos de homem
prático. As más línguas diziam que esse amigo do defunto era alguma coisa mais
que um simples conselheiro, porém sobre esse ponto não tenho nenhuma indicação
exata, nem ele importa à minha narrativa.
A verdade é
que, com a
morte do marido,
Dona Eugênia se
achou numa situação
muito precária, e foi o compadre quem lhe forneceu o capital necessário
para o estabelecimento da casa de pensão, que prosperava.
Um dia em que Dona Eugênia lhe disse que a presença do misterioso
velhote a aborrecia, e ela já o teria posto a andar, se ele se não mostrasse
tão amigo dos rapazes, o Barbosa retorquiu:
- Pô-lo a andar? Que lembrança! Pelo contrário: conserve-o. Este
hóspede foi a fortuna que lhe entrou em casa!
- A fortuna?
- A fortuna, sim! É um
velho rico e avarento, que não tem herdeiros... Pô-lo fora! Que idéia! Trate-o com todo o carinho, e faça
com que seus filhos o respeitem e o amem.
Naquela casa o Barbosa tinha sempre razão. Poucos dias depois,
Dona Eugênia oferecia ao velho Andrade, pelo mesmo preço, um aposento maior,
mais espaçoso, mais arejado, com boa mobília, colchão de arame e duas janelas
dizendo para o jardim.
Fez mais: obrigou-o,
com bons modos,
a tomar duas
refeições por dia,
como os demais hóspedes, e pela manhã mandava-lhe
chocolate ou café com leite e biscoitos.
O velho derramava lágrimas de reconhecimento, admirando-se, dizia
ele, de tanta bondade para com um pobre diabo inútil, que não tinha onde cair
morto.
Dona Eugênia conseguiu, com a habilidade de um diplomata, saber o
dia em que fazia anos o velho, e nesse dia o pobre homem foi presenteado pelos
menos com roupa e calçado. Agora não lhe faltava nada.
O Braguinha, vendo que o velho simpatizava com ele, e na esperança
de ser contemplado por sua morte, começou também a mimoseá-lo com guloseimas,
charutos finos, livros interessantes, jornais ilustrados, etc.
Entretanto, o velho não modificou os seus hábitos de solidão.
Ninguém lhe entrava no quarto onde continuava diariamente, durante horas e
horas - a abrir e fechar o cofre e os baús.
Um dia, quando ele ia pagar a Dona Eugênia a sua pensão, esta disse-lhe:
- Não se ofenda com ~ que lhe vou pedir: guarde o seu dinheiro;
não tem que pagar coisa alguma; a sua mensalidade não me faz ficar mais rica
nem mais pobre; quero que o senhor seja considerado nesta casa como pessoa da
família.
***
A situação durou assim muito tempo. O velho Andrade passava uma
vida de lorde, tratado a vela de libra.
Agora manifestava desejos, apetecia coisas, e bastava a mais leve
insinuação para ser logo presenteado tanto pela viúva como pelo Braguinha.
Este foi afastado
a conselho do
prudente Barbosa. Era
um concorrente perigoso.
Tantas 'fizeram que o guarda-livros foi obrigado a mudar-se, não
deixando, contudo, de visitar o velho todas as vezes que o podia fazer, porque
a viúva seqüestrava o seu precioso hóspede.
***
Já estava o Andrade havia dois anos na casa de pensão, quando uma
noite, achando-se a sós com Dona Eugênia, disse-lhe:
- Quero fazer-lhe urna comunicação, minha santa protetora. Estou
velho ~ posso morrer de um momento para outro...
- Não diga isso; o senhor tem para dar e levar!
- Há lá no meu quarto um cofre de ferro cuja chave está sempre
comigo. Esse cofre é um absurdo, uma fantasia, porque nada tenho senão quatro
patacas e umas bugigangas sem valor. Pois
bem; previno-a de
que lá dentro
está o meu testamento... - O seu
testamento! dirá a senhora; mas você não tem o que
deixar! - Pois tenho. sim, senhora -
tendo naqueles baús muitos objetos, de nenhum valor, é verdade, mas que, se eu
fechasse os olhos sem ter feito as minhas disposições testamentárias, seriam
arrecadados pelo consulado português e vendidos em hasta pública. É isso que
desejo evitar, dando destino ao que é meu.
Essa revelação fez com que redobrassem os carinhos que cercavam o
velho. Levavam-no aos teatros, às festas,
aos passeios; enchiam-no
de marmeladas e
vinhos finos. Os
meninos habituaram-se a chamar-lhe "vovô Andrade".
E o hóspede tornou-se caro. Só não lhe davam médico e botica,
porque tinha uma saúde de ferro, e nunca precisou disso.
E sempre a mesma reserva, sempre o mesmo mistério sobre o seu
passado; não havia meio de lhe arrancar uma confidência!
***
Dona Eugênia começou a impacientar-se:
- Este velho é capaz de nos enterrar a todos!
- Tenha paciência; ature-o, que há de receber capital e juros
acumulados - dizia o Barbosa. - Naquela idade o homenzinho não pode ir muito
longe.
E não foi.
Justamente no dia em que se completavam cinco anos que era hóspede
da casa de pensão, vovô Andrade caiu fulminado por uma apoplexia. Para festejar
o quinto aniversário das suas relações, Dona Eugênia obsequiara-o com um
opíparo jantar, abundantemente regado e ele comeu e bebeu demais.
Os meninos que
já estavam crescidos
(o mais velho
ia fazer dezoito
anos) choraram sinceramente. A
viúva, insofrida, quis abrir logo o cofre, e tê-lo-ia feito se o discreto
Barbosa lho não obstasse.
- Não mexa em cousa alguma. Vou chamar quem de direito.
Veio a autoridade
consular, que abriu
o cofre.
Este continha, efetivamente, um
invólucro subscritado com estas palavras: "Meu testamento", e
cerca de trezentos mil réis em notas do Tesouro e moedas de prata e ouro, as
tais que tilintavam aos ouvidos do Braguinha.
Dois baús estavam cheios de ferros velhos, trapos, coisas inúteis,
e o outro continha objetos que representavam
algum valor: a roupa e os demais presentes com que o vovô Andrade tinha sido durante
cinco anos obsequiado na casa de pensão.
O testamento dizia:
"Achando-me septuagenário e reduzido à miséria, sem um
parente, sem um amigo, depois de uma vida inteira de trabalhos e infortúnios,
tinha que optar entre a mendicidade e o suicídio.
Não optei por uma nem por outra coisa: mudei de terra, fingi-me
rico e avarento, bastante para isso dois velhos baús e um cofre de ferro,
último vestígio de melhores tempos.
Graças a esse ardil, encontrei tudo quanto me faltava, e mais
alguma coisa.
Uns dirão que fui tratante; dirão outros que fui filósofo. Para
mim é o mesmo.
Dentro do cofre encontrarão a quantia necessária para o meu
enterro".
***
Quem se lavou em água de rosas foi o Braguinha.
---
Nota:
Texto-fonte: Artur de
Azevedo: Contos Diversos, data não identificada
Nenhum comentário:
Postar um comentário