sexta-feira, 29 de março de 2013

Artur de Azevedo: "O Jaó"


O JAÓ 


Numa noite em que estávamos quatro ou cinco amigos reunidos em casa do Novais, vieram à baila os meus contos e não houve na assistência quem se não gabasse de saber casos que forneceriam magníficos assuntos para este gênero de literatura amena.

- Pode ser - disse eu - mas devo confessar-lhes que até hoje não pude aproveitar para os meus trabalhos um único assunto oferecido nessas condições. Os contos inventaram-se, o que não quer   dizer   que   não   sejam   também   o   produto   do   que   se   vê   e   observa   na   vida   real,   ou   o renovamento de qualquer anedota que corra mundo desde tempos imemoriais.

- Ora!  Eu sei a história de um jaó, que te poderia servir, disse-me o Novais, e vou contá-la enquanto minha mulher apronta o chá!

- Conta, que ele há de gostar - disse D. Emília, desaparecendo da sala.

- Vamos à história do jaó!  - exclamei, fingindo-me entusiasmado, para dar ânimo ao dono da casa.

A   cena   passa-se   em   Cataguases,   no   Estado   de   Minas,   ainda   nos   ominosos   tempos   da monarquia, começou o Novais, acomodando-se numa poltrona.

Houve um movimento geral de atenção, e todos nós aproximamos as nossas cadeiras.

- A um quarto de légua da localidade, havia "um situante", como lá dizem, homem já maduro, honrado e trabalhador, que, tendo perdido a mulher, morava sozinho com a filha.

Esta chamava-se Mimi, e era um encanto, uma perfeição; morena, esbelta, cabelos negros, e ondeados, olhos de fogo, lábios rubros e magníficos dentes. De mais não era estúpida nem de todo   ignorante:   fazia   as   quatro   operações;   cosia   admiravelmente   e   no   governo   da   casa mostrava-se expedita e asseada.

Era agente da estação da estrada de ferro um bonito rapaz de 25 anos, que tinha a paixão da caça, e, nos lazeres do seu emprego, não fazia outra coisa senão caçar.

Um dia em que as suas diligências cinegéticas o levaram lá para as bandas do sitio do velho Serrano, que assim se chamava o pai da moça, ele encontrou Mimi numa volta de estrada, e ficou impressionadíssimo por aquela surpreendente formosura do campo.

Pelos modos, o efeito foi recíproco: eles cumprimentaram-se, o que era muito natural, porque na roça não se encontram duas pessoas que não se cumprimentem, embora não se conheçam; mas sorriam um para o outro, e isso já não estava nos usos e costumes indígenas.

Durante três dias a fio houve novos encontros e novos sorrisos. O moço nunca mais caçou noutro lugar.

Afinal, chegaram à fala, e ele que talvez levasse más intenções, foi desarmado pela candura e pela ingenuidade de Mimi.

Amaram-se, amaram-se deveras; entretanto, aquelas entrevistas. na estrada eram perigosas; podia passar alguém...

- Ficaremos à vontade - disse ela com uma adorável confiança no seu amado - à sombra de uma caneleira que há nos fundos lá de casa. Entra-se por aquele atalho. e vai-se dar mesmo lá.

- E teu pai?

- Meu pai está da outra banda, fazendo o roçado; só vai pros lados da caneleira uma vez na vida e outra na morte. Estou sozinha em casa. Você dá um sinal, e eu vou ter com você.

- Qual há de ser o sinal?

- Você é caçador; deve saber piar.

- Naturalmente! Pio macuco, inhambu, jaó...

- Jaó, prefiro jaó, é triste, mas é bonito.

O namorado piou, para dar uma amostra da sua habilidade; o pio não podia ser mais perfeito.

No dia seguinte o velho Serrano sentiu-se um tanto indisposto e não quis sair de casa, o que bastante contrariou Mimi.

- Hoje nada de sol!  - disse ele; - tenho a cabeça pesada, e nesta idade o sangue sobe com facilidade. Ontem se me não engano, ouvi cantar um jaó, e tomei a coisa como agouro, porque há muito tempo esse pássaro não aparecia por cá.

- Ora papai, isso agora é tolice!

- Será, mas não vou ao roçado. Nada, que teu avô não faz outro!

E dirigindo-se a um alpendrado, que ficava na parte superior da casa, o velho Serrano tirou da parede a sua espingarda, dizendo:

- Para não ficar com as mãos vadias, vou limpar esta sujeita, que está criando ferrugem.

E, depois de descarregar a espingarda para o ar, o velho sentou-se num banco e começou a limpá-la.

O tiro foi um alívio para Mimi - em primeiro lugar, porque ouvindo-o, o rapaz saberia que o velho estava em casa, e em segundo lugar, porque uma arma carregada na mão do pai era um perigo iminente para o namorado.

Mas - oh! contrariedade! - concluindo o trabalho, o velho foi buscar o polvarinho e carregou de novo a espingarda.

No momento de pendurá-la, ouviu-se o pio do jaó.

- Ouviste, Mimi?  - perguntou Serrano  empalidecendo  de súbito,  com a arma ainda na mão; ouviste?

- Não, senhor; que foi?

- O jaó!

- Não ouvi nada; vocem'cê enganou-se.

- Não! Estes ouvidos de velho caçador não se enganam... E aquilo é agouro!...

- Que agouro, que nada!

- Há dois anos piou um jaó no sitio do João Bernardo... lembras-te?... e três dias depois o João Bernardo esticou a canela...

- Coincidência.

- Eu nunca te quis dizer nada, mas quando tua mãe morreu, tinha piado um jaó na véspera, ali mesmo, do lado da caneleira. É um pássaro da morte, pior que a coruja!

Palavras não eram ditas, ouviu-se de novo o jaó.

Serrano estremeceu dos pés à cabeça:

- Ouviste agora? Vê, minha filha, vê como tenho as mãos frias! Vou matar aquele diabo!

- Ora, papai, deixe o pobre jaó! Ele não é o que vocem'cê pensa!

- Pois sim! Aquele não há de cá voltar! Vá agourar lá pro inferno.

O velho ia sair, mas a filha, desesperada agarrou-o pelo braço:

- Não! Não faça isso, papai! Pelo bem que me quer!

E vendo que o velho forcejava para desvencilhar-se, Mimi pôs-se a gritar com toda a força dos seus pulmões:

- Jaó! Jaó! Vai te embora, que papai quer te matar!

- Espera que ele te entenda?

E, com um arremesso, o velho saltou para o terreiro e encaminhou-se para o lado da caneleira.

Mimi continuou a gritar:

- Jaó! Meu jaózinho! Foge, foge que papai lá vai à tua procura para matar-te!...

O velho voltou ao cabo de meia hora sem ter encontrado o pássaro.

- Que diabo, menina! Parece que ele te entendeu...

E pendurou tranqüilamente a espingarda.

O Novais calou-se.

- Está terminado o conto? - perguntei depois de uma pausa.

- Está; não o achas interessante?

- Não é mau, mas falta-lhe a conclusão. Que fim levou o jaó?

- Aqui o tens na tua presença, meu amigo; o jaó era eu.

- E a Mimi, esta sua criada - acrescentou D. Emília, que voltava com a bandeja do chá.
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Nota:

Texto-fonte: Artur de Azevedo: Contos cariocas, data não identificada

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