Ainda há poucos anos havia, numa das capitais do Norte, uma
velhinha pobre, paupérrima que não
mendigava, mas aceitava
o agasalho que
lhe davam algumas
famílias compassivas, passando
um mês aqui, outro ali, quinze dias acolá. Uma bela manhã chegava com sua lata
de folha (tudo quanto possuía) e aboletava-se entre afagos e sorrisos de
boa-vinda.
- Seja bem aparecida, tia Aninha! O seu quarto lá está, tem sua
cama preparada! Mas desta vez demore-se mais tempo: você a ninguém incomoda
nesta casa, nem aumenta a despesa: fique o tempo que quiser.
Mas a tia Aninha, quando suspeitava que a sua presença ia se
tornando aborrecida, levantava o vôo e partia, com a sua lata de folha, para
alojar-se noutra parte.
Era uma velhinha alegre, mas de uma alegria que nenhum observador
experimentado acharia natural e sincera.
As crianças adoravam-na, porque
ela sabia contar-lhes
muitas histórias bonitas
de fadas e lobisomens - e aí está um dos motivos por
que a tia Aninha, depois de prolongada ausência, era sempre bem recebida, com a
sua lata de folha.
***
Foi numa dessas
casas hospitaleiras que
a encontrei um
dia (antes a
não encontrasse!), rodeada de
fedelhos boquiabertos e
ofegantes. Interessou-me aquele
rosto enrugado e macilento, em que julguei descobrir
vestígios de um passado cheio de peripécias e vicissitudes.
A velha boêmia simpatizou comigo, pelo que, aliás nenhum
merecimento me atribui, porque ela - coitadinha! - simpatizava com toda a
gente. Nas suas palavras, nos seus gestos e nos seus olhares, que
brilhavam ainda através
de duas pequeninas
frestas esquecidas entre
as pálpebras, nunca ninguém descobriu a menor prevenção contra pessoa
alguma.
Não pertencia ao tipo, muito comum no Brasil e creio que em toda a
parte, da velha parasita, que anda de lar em lar, de alcova a alcova, trazendo
e levando enredos, novidades e mexericos, dando fé do que se passa em casa de
Fulano para chalrar em casa de Beltrano, adulando as donas e seduzindo as
donzelas, embiocada e devotada.
Como lhe mentissem, dizendo que eu era romancista, a tia Aninha me
declarou, sorrindo, que a sua vida tinha sido um verdadeiro romance, e essa declaração
me levou (antes não levasse!) a revolver aquelas cinzas, curioso de se embaixo
delas crepitavam ainda as derradeiras brasas.
Crepitavam; mas a história da tia Aninha era vulgaríssima, sem
incidentes excepcionais nem grandes lances e surpresas do acaso. Se ela
imaginava que aquilo daria um romance, não fazia mais do que fazem todos os
indivíduos para quem o mundo não foi um mar de rosas. Não há criatura infeliz
que não esteja persuadida que da sua existência se faria a mais interessante
das novelas.
Nascera a tia
Aninha pouco depois
da independência. Era
filha única de
um negociante português,
sofrivelmente apatacado. A sua vida correu pacifica e serena até os vinte anos.
Foi nessa idade que o seu coração falou: ela apaixonou-se por um caixeiro do
pai.
A mãe que desejava ser sogra de um príncipe, descobrindo um dia
esses amores, que aliás duravam, havia já dois anos, foi ter com o marido e
disse-lhe tudo.
O negociante enfureceu-se; pôs imediatamente no andar da rua o
mísero subalterno que se atrevia a levantar os olhos tão alto, e andou por o
todo bairro comercial a pedir de porta em porta que
ninguém o arrumasse.
O rapaz ficou,
portanto, incompatibilizado com
a praça, e resolveu partir para o Rio de Janeiro,
procurando no Sul a fortuna que lhe fugia no Norte. Partiu.
Partiu, mas antes disso,
prometeu, por intermédio de uma boa amiga da moça, guardar-lhe fidelidade, e voltar um dia,
quando melhorasse de posição, e de haveres, para casar-se com ela.
Prometeu igualmente escrever-lhe por todos os correios, promessa
que cumpriu, graças ainda ao gracioso intermédio da amiga, que recebia as
cartas, embora endereçadas à tia Aninha.
Isto passava-se em
1844. Durante dois
anos vieram cartas
por todos os
correios. Nas penúltimas, o moço
queixava-se, em caracteres trêmulos, de que se sentia muito enfermo, e nas últimas
que eram lacônicas, escritas sob um esforço violento e visível já não falava um
doente mas um moribundo. "Talvez seja esta a minha última carta"
escreveu ele um dia - e a moça não recebeu mais nenhuma.
Dois ou três meses depois o pai friamente, à mesa do jantar,
deu-lhe a notícia da morte do noivo.
A pobrezinha contava
já vinte e
seis anos. Se até
então repelira todas
as propostas de casamento que lhe foram feitas pelo pai,
dali por diante não admitiu que lhe falassem mais nisso.
O velho, depois de se meter imprudentemente numa arriscada
especulação de açúcares, faliu em 1850, e alguns meses depois desaparecia,
fulminado por uma congestão.
Mãe e filha
ficaram reduzidas à
pobreza extrema. Os
amigos de outrora,
sumiram-se, afugentados pelo aspecto da miséria.
Em 1855 redobraram ainda os infortúnios de Aninha, com a morte da
mãe, vítima do cólera-morbo.
Datavam dessa época a sua vida de boêmia e a sua lata de folha.
Tinha então apenas trinta e três
anos, mas não
lhe davam menos
de cinqüenta tais
foram os estragos
causados pelo sofrimento.
***
Quando a tia Aninha acabou de me contar todas essas coisas, uma
tarde em que por acaso nos achamos sozinhos, num dos seus asilos habituais, no
jardim, à sombra de uma latada, não me atrevi a dizer-lhe que na sua existência
de viúva-virgem não havia matéria para um romance, a menos que o talento e a
imaginação do romancista suprissem o que lhe faltava. Entretanto, proferi esta
frase, que continha uma fórmula de consolação:
- A sua vida é, na realidade, um verdadeiro romance, tia Aninha;
mas creia que esse mesmo tem sido o romance de muitas mulheres.
- Oh! Se o senhor lesse as cartas que ele me escreveu! Só elas
dariam páginas e páginas. Era um simples caixeiro, mas muito inteligente. Quer
vê-las?
- O quê?
- As cartas!
- Ainda as conserva?
- Se ainda as conservo? São a minha fortuna. Vou buscá-las.
A velha ergueu-se, foi ao seu quarto, e pouco depois voltou
trazendo a sua inseparável lata de folha.
***
Li algumas das cartas: nada havia nelas de extraordinário, mas
tinham, relativamente, muito valor material,
porque estavam todas seladas
com os selos
das nossas primeiras emissões postais: o "olho de boi",
o "trezentos réis inclinados" e outros.
- Diz a senhora muito bem; a sua fortuna está nestas cartas!
Saiba, tia Aninha, que cada um destes selos vale centenas de mil réis!
A pobre velha,
que ignorava a
mania filatélica, não
compreendeu: foi preciso
que eu lho explicasse.
Ela protestou:
- Desfazer-me das minhas cartas? Nunca!
- Não se desfaça das cartas; desfaça-se dos selos.
- Estes selos podem valer milhões! Não os venderei! Para que
preciso de dinheiro?
Deveria calar-me. Tenho
remorsos de haver
revelado ao dono
da casa onde
me achava a existência dos selos da tia Aninha. Ele
foi o primeiro a querer comprá-los para negócio.
Pouco tardou que se espalhasse em toda a cidade a noticia de que a
velha possuía uma riqueza encerrada na sua lata de folha. Por fim, já não se
dizia que eram selos do correio, mas velhas moedas de ouro, jóias raras e
preciosíssimas, o diabo!
E era o
seu tesouro tão
cobiçado, tanta gente
lhe falava nele
e manifestava o
desejo de examiná-lo, que a tia
Aninha, mais ciosa da sua lata de folha que Harpagon do seu cofre, tinha pesadelos
e alucinações terríveis, vivia num contínuo sobressalto, não podia dormir duas
horas que hão despertasse
aos gritos, sonhando
que lhe roubavam
a sua querida
lata, o seu travesseiro.
Agora havia empenhos para hospedá-la; aconselhavam-na a fazer
testamento, adulavam-na, perseguiam-na com uma solicitude que a desvairou, que
lhe tirou lentamente o raciocínio e a saúde.
Mais do que
nunca não esquentava
lugar, aparecia e
logo desaparecia; já
não contava às crianças
as suas bonitas
histórias de fadas
e lobisomens; já não falava
a ninguém no seu romance, sem perceber, coitada! que o seu
romance começava agora.
Os pequeninos, que dantes a adoravam, tinham medo dela, e os
garotos apupavam-na quando a mísera passava, com a desconfiança no olhar,
desgrenhada, andrajosa, descalça, faminta, apertando nos braços esqueléticos a
sua lata de folha, o seu travesseiro, o seu tesouro.
***
Uma noite em
que a tia Aninha,
vagabundeando à-toa, atravessava
uma praça deserta
e silenciosa, foi assaltada por um malfeitor que a roubou, depois de
atordoá-la com uma paulada. Conduzida, algumas horas depois, para um hospital,
expirou pronunciando o nome do noivo, martirizada menos pela paulada assassina
que pela idéia de haver perdido as suas cartas de amor.
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Nota:
Texto-fonte: Artur de
Azevedo: Contos Diversos, data não identificada
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