sexta-feira, 29 de março de 2013

Artur de Azevedo: "A Tia Aninha"


A TIA ANINHA


Ainda há poucos anos havia, numa das capitais do Norte, uma velhinha pobre, paupérrima que não   mendigava,   mas   aceitava   o   agasalho   que   lhe   davam   algumas   famílias   compassivas, passando um mês aqui, outro ali, quinze dias acolá. Uma bela manhã chegava com sua lata de folha (tudo quanto possuía) e aboletava-se entre afagos e sorrisos de boa-vinda.

- Seja bem aparecida, tia Aninha! O seu quarto lá está, tem sua cama preparada! Mas desta vez demore-se mais tempo: você a ninguém incomoda nesta casa, nem aumenta a despesa: fique o tempo que quiser.

Mas a tia Aninha, quando suspeitava que a sua presença ia se tornando aborrecida, levantava o vôo e partia, com a sua lata de folha, para alojar-se noutra parte.

Era uma velhinha alegre, mas de uma alegria que nenhum observador experimentado acharia natural e sincera.

As   crianças   adoravam-na,   porque   ela   sabia   contar-lhes   muitas   histórias   bonitas   de   fadas   e lobisomens - e aí está um dos motivos por que a tia Aninha, depois de prolongada ausência, era sempre bem recebida, com a sua lata de folha.

***

Foi   numa   dessas   casas   hospitaleiras   que   a   encontrei   um   dia   (antes   a   não   encontrasse!), rodeada   de   fedelhos   boquiabertos   e   ofegantes.   Interessou-me   aquele   rosto   enrugado   e macilento, em que julguei descobrir vestígios de um passado cheio de peripécias e vicissitudes.

A velha boêmia simpatizou comigo, pelo que, aliás nenhum merecimento me atribui, porque ela - coitadinha! - simpatizava com toda a gente. Nas suas palavras, nos seus gestos e nos seus olhares,   que   brilhavam   ainda   através   de   duas   pequeninas   frestas   esquecidas   entre   as pálpebras, nunca ninguém descobriu a menor prevenção contra pessoa alguma.

Não pertencia ao tipo, muito comum no Brasil e creio que em toda a parte, da velha parasita, que anda de lar em lar, de alcova a alcova, trazendo e levando enredos, novidades e mexericos, dando fé do que se passa em casa de Fulano para chalrar em casa de Beltrano, adulando as donas e seduzindo as donzelas, embiocada e devotada.

Como lhe mentissem, dizendo que eu era romancista, a tia Aninha me declarou, sorrindo, que a sua vida tinha sido um verdadeiro romance, e essa declaração me levou (antes não levasse!) a revolver aquelas cinzas, curioso de se embaixo delas crepitavam ainda as derradeiras brasas.

Crepitavam; mas a história da tia Aninha era vulgaríssima, sem incidentes excepcionais nem grandes lances e surpresas do acaso. Se ela imaginava que aquilo daria um romance, não fazia mais do que fazem todos os indivíduos para quem o mundo não foi um mar de rosas. Não há criatura infeliz que não esteja persuadida que da sua existência se faria a mais interessante das novelas.

Nascera   a   tia   Aninha   pouco   depois   da   independência.   Era   filha   única   de   um   negociante português, sofrivelmente apatacado. A sua vida correu pacifica e serena até os vinte anos. Foi nessa idade que o seu coração falou: ela apaixonou-se por um caixeiro do pai.

A mãe que desejava ser sogra de um príncipe, descobrindo um dia esses amores, que aliás duravam, havia já dois anos, foi ter com o marido e disse-lhe tudo.

O negociante enfureceu-se; pôs imediatamente no andar da rua o mísero subalterno que se atrevia a levantar os olhos tão alto, e andou por o todo bairro comercial a pedir de porta em porta   que  ninguém   o   arrumasse.  O   rapaz  ficou,  portanto,  incompatibilizado   com   a  praça,   e resolveu partir para o Rio de Janeiro, procurando no Sul a fortuna que lhe fugia no Norte. Partiu.

Partiu, mas antes  disso, prometeu,  por intermédio  de uma boa amiga da moça,  guardar-lhe fidelidade, e voltar um dia, quando melhorasse de posição, e de haveres, para casar-se com ela.

Prometeu igualmente escrever-lhe por todos os correios, promessa que cumpriu, graças ainda ao gracioso intermédio da amiga, que recebia as cartas, embora endereçadas à tia Aninha.

Isto   passava-se   em   1844.   Durante   dois   anos   vieram   cartas   por   todos   os   correios.   Nas penúltimas, o moço queixava-se, em caracteres trêmulos, de que se sentia muito enfermo, e nas últimas que eram lacônicas, escritas sob um esforço violento e visível já não falava um doente mas um moribundo. "Talvez seja esta a minha última carta" escreveu ele um dia - e a moça não recebeu mais nenhuma.

Dois ou três meses depois o pai friamente, à mesa do jantar, deu-lhe a notícia da morte do noivo.

A   pobrezinha   contava   já   vinte   e   seis   anos.   Se   até   então   repelira   todas   as   propostas   de casamento que lhe foram feitas pelo pai, dali por diante não admitiu que lhe falassem mais nisso.

O velho, depois de se meter imprudentemente numa arriscada especulação de açúcares, faliu em 1850, e alguns meses depois desaparecia, fulminado por uma congestão.

Mãe   e   filha   ficaram   reduzidas   à   pobreza   extrema.   Os   amigos   de   outrora,   sumiram-se, afugentados pelo aspecto da miséria.

Em 1855 redobraram ainda os infortúnios de Aninha, com a morte da mãe, vítima do cólera-morbo.

Datavam dessa época a sua vida de boêmia e a sua lata de folha. Tinha então apenas trinta e três   anos,   mas   não   lhe   davam   menos   de   cinqüenta   tais   foram   os   estragos   causados   pelo sofrimento.

***

Quando a tia Aninha acabou de me contar todas essas coisas, uma tarde em que por acaso nos achamos sozinhos, num dos seus asilos habituais, no jardim, à sombra de uma latada, não me atrevi a dizer-lhe que na sua existência de viúva-virgem não havia matéria para um romance, a menos que o talento e a imaginação do romancista suprissem o que lhe faltava. Entretanto, proferi esta frase, que continha uma fórmula de consolação:

- A sua vida é, na realidade, um verdadeiro romance, tia Aninha; mas creia que esse mesmo tem sido o romance de muitas mulheres.

- Oh! Se o senhor lesse as cartas que ele me escreveu! Só elas dariam páginas e páginas. Era um simples caixeiro, mas muito inteligente. Quer vê-las?

- O quê?

- As cartas!

- Ainda as conserva?

- Se ainda as conservo? São a minha fortuna. Vou buscá-las.

A velha ergueu-se, foi ao seu quarto, e pouco depois voltou trazendo a sua inseparável lata de folha.

***

Li algumas das cartas: nada havia nelas de extraordinário, mas tinham, relativamente, muito valor material,  porque estavam  todas  seladas  com  os  selos  das nossas  primeiras  emissões postais: o "olho de boi", o "trezentos réis inclinados" e outros.

- Diz a senhora muito bem; a sua fortuna está nestas cartas! Saiba, tia Aninha, que cada um destes selos vale centenas de mil réis!

A   pobre   velha,   que   ignorava   a   mania   filatélica,   não   compreendeu:   foi   preciso   que   eu   lho explicasse.

Ela protestou:

- Desfazer-me das minhas cartas? Nunca!

- Não se desfaça das cartas; desfaça-se dos selos.

- Estes selos podem valer milhões! Não os venderei! Para que preciso de dinheiro?

Deveria  calar-me.  Tenho   remorsos   de   haver   revelado   ao  dono  da  casa   onde   me   achava   a existência dos selos da tia Aninha. Ele foi o primeiro a querer comprá-los para negócio.

Pouco tardou que se espalhasse em toda a cidade a noticia de que a velha possuía uma riqueza encerrada na sua lata de folha. Por fim, já não se dizia que eram selos do correio, mas velhas moedas de ouro, jóias raras e preciosíssimas, o diabo!

E   era   o   seu   tesouro   tão   cobiçado,   tanta   gente   lhe   falava   nele   e   manifestava   o   desejo   de examiná-lo, que a tia Aninha, mais ciosa da sua lata de folha que Harpagon do seu cofre, tinha pesadelos e alucinações terríveis, vivia num contínuo sobressalto, não podia dormir duas horas que   hão   despertasse   aos   gritos,   sonhando   que   lhe   roubavam   a   sua   querida   lata,   o   seu travesseiro.

Agora havia empenhos para hospedá-la; aconselhavam-na a fazer testamento, adulavam-na, perseguiam-na com uma solicitude que a desvairou, que lhe tirou lentamente o raciocínio e a saúde.

Mais   do   que  nunca   não   esquentava   lugar,   aparecia   e  logo  desaparecia;   já   não  contava   às crianças   as  suas  bonitas   histórias  de   fadas  e  lobisomens;  já  não  falava  a ninguém  no  seu romance, sem perceber, coitada! que o seu romance começava agora.

Os pequeninos, que dantes a adoravam, tinham medo dela, e os garotos apupavam-na quando a mísera passava, com a desconfiança no olhar, desgrenhada, andrajosa, descalça, faminta, apertando nos braços esqueléticos a sua lata de folha, o seu travesseiro, o seu tesouro.

***

Uma   noite   em   que   a   tia   Aninha,   vagabundeando   à-toa,   atravessava   uma   praça   deserta   e silenciosa, foi assaltada por um malfeitor que a roubou, depois de atordoá-la com uma paulada. Conduzida, algumas horas depois, para um hospital, expirou pronunciando o nome do noivo, martirizada menos pela paulada assassina que pela idéia de haver perdido as suas cartas de amor.
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Nota:

Texto-fonte: Artur de Azevedo: Contos Diversos, data não identificada

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