I
Era em 1875. Numa pequena casa do Engenho Novo habitava, em
companhia dos pais, a moça mais bonita do Rio de Janeiro. Como houvesse nascido
a 2 de maio, recebera na pia batismal,
por simples indicação
da folhinha, o
nome de Mafalda;
entretanto, ninguém a conhecia
por esse nome,
pois desde o
berço começaram todos
de casa a
chamar-lhe Fadinha, corruptela e diminutivo de Mafalda. E bem lhe assentavam
aquelas três sílabas, porque a moça, aos dezoito anos, possuía todos os
encantos que têm, ou devem ter, as fadas,
e na sua
beleza extraordinária havia,
realmente, qualquer coisa
de sobrenatural e fantástico.
Morena, desse moreno fluido que só Murillo encontrou na sua
maravilhosa paleta, de olhos negros e úmidos, narinas dilatadas, lábios grossos
mas graciosamente contornados, abrindo-se, de vez em quando, para mostrar os
mais belos dentes, cabelos negros como os olhos, abundantes, ligeiramente
ondeados, apanhados sempre com um desalinho estético, deixando ver duas orelhas
de um desenho tão impecável, que fora crime cobri-las - e todas essas partes completando-se umas às outras no
oval harmonioso do rosto, Fadinha, por unânime deliberação do júri mais
rigoroso, ganharia com toda a certeza o primeiro prêmio, se naquela época se lembrassem de abrir no Rio de Janeiro
um concurso de beleza feminina. Todo o seu corpo se compadecia com a cabeça;
era esbelta sem ser alta, robusta sem ser gorda, e as suas formas apresentavam
uma extraordinária correção de linhas. As mãos e os pés eram modelos.
Exagerado parecerei, talvez, dizendo que Fadinha reunia a esses
dotes físicos as melhores qualidades de alma; entretanto, a verdade é que era
boa, afetuosa, submissa e compassiva. Tinha a sua ponta de vaidade, isso tinha,
mas que outra mulher não a teria, sendo assim tão bonita?
Duas coisas, portanto, a desgostavam: ter vindo ao mundo a 2 de
maio e chamar-se Mafalda, quando poderia nascer a 10 de julho e se chamar
Amélia - e não ter nascido rica, muito rica, para fazer
valer ainda mais a sua formosura.
Todavia conformava-se alegremente
com a precária condição
de filha de um funcionário
público paupérrimo. Sim,
porque seu pai, o
Raposo, chegara aos
cinqüenta anos simples
oficial de Secretaria,
sendo obrigado, para agüentar a vida, a empregar os afazeres
escriturando livros comerciais, ora numa padaria, ora numa venda, ora numa casa
de penhores. E a vida sedentária fez com que ele engordasse extraordinariamente. O
dr. Souto, médico
da família, costumava
dizer: o Raposo
é uma apoplexia ambulante.
Fadinha não era filha única: tinha um irmão mais velho arrumado no
comércio, e outro, ainda muito novo, que estudava para doutor, porque o pai o
considerava o "talento da família".
A mãe era uma senhora de quarenta e cinco anos, que não se parecia
absolutamente com a filha. Não sei por que fenômeno fisiológico, de um casal
tão feio (porque o Raposo, coitado! era
outro desfavorecido da
natureza) saiu aquele
esplêndido produto, aquela
criatura escultural, aquela beleza
inverossímil! Note-se que
os dois rapazes
também eram feios, principalmente o futuro doutor -
narigudo, orelhudo, enfezado, anêmico, insignificante.
Não contente de levar parte da existência às voltas com os santos
do seu oratório particular, d. Firmina - assim se chamava a mãe de Fadinha -
andava constantemente pelas igrejas, adorando os de fora; mas, em que pesasse a
tanta piedade não perdoava à filha o ser tão bonita, e
revoltava-se intimamente contra
o singular monopólio
que a moça
recebera da natureza como
se fosse uma
dádiva escandalosa; entretanto,
Fadinha era toda
a sua ambição de fortuna, toda a
sua esperança de melhores tempos. O seu sonho era ser sogra de um argentário,
pois que o não poderia ser de um príncipe. Se o Raposo não fosse um chefe de
família, às direitas, essa mulher tê-lo-ia dominado, usurpando toda a
autoridade no lar; felizmente ele batia o pé, não consentia em nada que lhe
desagradasse.
Mas a nossa Fadinha tem um namorado. E tempo de apresentá-lo aos
leitores.
II
Linda como era, não faltavam à moça adoradores de todas as idades
e categorias. Muitos homens se abalavam da cidade até o Engenho Novo, só pela
satisfação de contemplá-la, muitos
deles conduzidos pela
simples curiosidade, muitos
deles instigados pela
vaga esperança de uma promessa envolvida num sorriso ou num olhar.
Pode-se dizer que durante muito tempo a formosura célebre de Fadinha contribuiu
para o aumento da receita dos trens dos subúrbios, e para a animação do bairro,
que naquele tempo não tinha a população de hoje. Muitos
desses adoradores chegaram
à fala, declarando-se animados
das intenções mais puras, e
entre eles alguns havia realmente dignos da singular ventura de casar com Fadinha;
ela, porém, todos repeliu com a maior delicadeza e compostura.
Um dia, o Raposo convidou para jantar em sua casa o Remígio, um
bom rapaz, seu colega, empregado na mesma repartição em que ele exercia as suas
funções oficiais. Esse Remígio era uma das pérolas dá Secretaria, modelo de
zelo, inteligência e assiduidade, funcionário "de muito futuro", como
diziam todos; mas não era bonito, nem elegante, nem primava por nenhuma outra
qualidade exterior. Entretanto,
de todos quantos
passaram diante dos formosos olhos da Fadinha, foi esse o
único homem que lhe mereceu atenção. Negociantes acreditados e
dinheirosos, funcionários bem
colocados, advogados, médicos,
oficiais do
Exército e da Armada, etc. - tiveram todos que ceder lugar, no
coração de Fadinha, a esse amanuense pálido, desajeitado, mal vestido, que
apenas ganhava 166$666 réis mensais.
A moça parecia
ansiosa por que
o seu coração
se manifestasse; imediatamente deu
a entender ao Remígio que ele seria vencedor entre os numerosos
candidatos à sua mão. O amanuense, que era modesto por natureza, e nem mesmo
em sonhos imaginara esposar algum dia a
moça mais bonita do Rio de Janeiro, ficou desvairado pela preferência que não solicitara,
e apaixonou-se deveras por Fadinha.
Logo que se
manifestaram claramente os
primeiros sintomas daquele
amor, houve um sobressalto na família. D. Firmina viu
aproximar-se o perigo, e um dia, depois do almoço, quando o
marido se dispunha
a sair de
casa, arrastando a
sua obesidade até
o trem, comunicou-lhe os seus
receios; mas o Raposo, que tinha pelo Remígio uma afeição paternal, e não via
com maus olhos a perspectiva do seu casamento com Fadinha, limitou-se a sorrir,
dizendo:
- É muito natural que eles gostem um do outro e que se casem.
- Você está falando sério?
- Ora esta! Muito sério! Quem sabe se o Remígio não é digno da
pequena!
- Um amanuense!
- E eu quem sou?... Que era eu quando fomos à igreja?... Fadinha
se casará conforme a sua inclinação; se gosta de um amanuense e não de um
ministro, paciência! Não quer ser rica; faz bem, porque a felicidade não está
no dinheiro. Demais o Remígio não é para ai nenhum pobre-diabo carregado de
esteiras velhas; o pai deixou-lhe alguma coisa; tem duas ou três casinhas,
algumas apólices e muito juízo, que é o essencial Estimado como é na
Secretaria, não lhe dou cinco anos para estar chefe de seção. Acenda você a
lanterna de Diógenes, que não encontra genro mais ao pintar.
- Deixe-se disso! Nossa filha é muito bonita, e...
- Aí vem você com a boniteza de nossa filha! Isso não vale nada, absolutamente nada! E muito bonita, é, mas não tem vintém, e se
se casasse à força com algum ricaço, o casamento pareceria mais um negócio que
outra coisa. Demais, seria humilhante para nós que somos paupérrimos. Que
diabo! Não quero especular com a beleza de minha filha, nem me opor à sua
ventura contrariando os seus sentimentos. Você, que é tão religiosa, devia
pensar como eu...
- Mas nós poderíamos fazer ver à Fadinha que...
- Basta! Já vejo que não nos entendemos neste particular. Na minha
opinião, o Remígio é um excelente partido, e não vejo a razão por que a pequena
deva aspirar a outro!
- Mas...
- Não há mas nem meio mas! Ela que decida, porque - e peço-lhe que
tome em consideração as minhas palavras - a Fadinha não se casará com quem você
ou eu quisermos que se case, mas com o noivo que escolher por sua livre
vontade, seja amanuense, praticante, czar da Rússia, ou xá da Pérsia!...
- Eu...
- Nem mais uma palavra, Firmina! Você bem sabe que isto aqui não é
casa de Gonçalo! Não admito que debaixo destas telhas outra voz se erga mais
alto que a minha!
- Mas o que você está dizendo é uma asneira!
- Uma asneira!... Uma asneira!... É a mim que a senhora diz
isso?!...
- Sim, sim... é ao senhor! Estou farta de representar nesta casa
um papel tão subalterno!
- Nesse caso, vista as
minhas calças e passe para cá as
saias! Ora não seja tola! Hoje mesmo vou dizer ao Remígio que a pequena
é dele!...
- Pois não há de ser, digo-lhe eu! Quero fazer a felicidade de
minha filha!
- Não minta!... A senhora quer fazer a sua própria felicidade, não
a dela! Não me obrigue a falar, porque, se falo, temos escândalo e escândalo
grosso!
E o Raposo contrafazia-se, abaixando a voz para não ser ouvido
pelos demais da casa:
- A senhora nunca a estimou como devia; nunca lhe teve amor de
mãe, de verdadeira mãe!... E agora quer vendê-la... Boas!... Hoje mesmo falo ao
Remígio!...
- Isso é uma infâmia! Eu sou mãe dela, e o senhor não tem certeza
de ser seu pai!...
-Hein?... Que é isso?...
O Raposo cresceu para d. Firmina, mas uma onda de sangue lhe subiu
à cabeça; ele abriu desmesuradamente os olhos e a boca, agitou os braços no ar
e caiu fulminado.
Quando chegou o dr. Souto, chamado a toda a pressa, encontrou-o
morto.
- Bem dizia eu que o Raposo era uma apoplexia ambulante!
III
O Remígio mostrou-se verdadeiro amigo: pediu a d. Firmina licença
para tratar do enterro, e nem esta nem os filhos conheceram até hoje a
importância das respectivas despesas.
Tão piedosa solicitude, e as lágrimas acerbas que o moço derramou
sobre o cadáver do velho colega aumentaram
os sentimentos de Fadinha a seu respeito; agora não era somente o afeto,
era também gratidão que aproximava aqueles dois corações. Com a morte do
Raposo, ambos se sentiram órfãos, e essa identidade de situações cimentava
ainda mais a mútua simpatia que os dominava.
Não teve d.
Firmina uma palavra
de agradecimento para
tais favores e,
mentalmente, o Remígio atribuiu
essa falta à dor violenta que a viúva manifestava, a todos os momentos, com lágrimas
e gritos. Na ocasião do enterro foram necessários três homens para arrancá-la
de cima do caixão e, sete dias depois, terminada a missa, ele teve, na
sacristia da igreja de São Francisco de Paula, um ataque de nervos tão
violento, que parecia chegada a sua última hora.
Também os rapazes, quer o estudante, quer o empregado no comércio,
não agradeceram ao Remígio o enterro e a missa; dir-se-ia que todos da casa
consideravam aquilo uma obrigação.
Todos, não: Fadinha volta e meia falava da generosidade do moço, e
as suas palavras, a que ninguém respondia, eram ouvidas com indiferença pela
mãe e pelos irmãos.
O mais velho, o Alexandre, moço de vinte e dois anos, empregado na
casa comercial do barão de Moreira,
estava lisonjeadíssimo pelo
fato de haver
o patrão se dignado assistir pessoalmente à cerimônia fúnebre.
Não queria acreditar nos seus olhos quando, no corredor da igreja, encontrou o
barão parado, segurando o chapéu com a mão atrás das costas, de cabeça erguida, a examinar atentamente o
retrato de um benfeitor da Ordem, pintado pelo Fragoso. O caixeiro a princípio
supôs que o barão viesse a outra missa qualquer, mas, não obstante a sua
tristeza, rejubilou-se quando viu que, ao começar a cerimonia, o titular tomava
lugar entre os que tinham vindo render a derradeira homenagem ao defunto
Raposo.
Acabada a missa, quando
o padre, acompanhado do seu
acólito, voltou para a sacristia, dobrando o joelho diante de
cada altar, o barão foi o primeiro a abraçar o Alexandre, que estava perto da
mãe dos irmãos.
- Seja homem! Todos nós passamos por estes dissabores... O mundo é
isto mesmo...
- Obrigado, senhor barão.
- Não conheço sua família; peço-lhe que me apresente às senhoras.
A viúva não pôde ser apresentada porque chorava um oceano
lágrimas, e não tinha atenção para mais nada além da sua dor espetaculosa; mas
o barão, pasmado diante da beleza de Fadinha, deu-lhe um longo aperto de mão,
dizendo-lhe:
- Minha senhora, seu irmão é empregado de nossa casa, e eu sou
muito amigo de quantos me servem bem. Peço-lhe que diga à senhora sua mãe que o
barão de Moreira está à sua disposição para tudo em que ela o queira ocupar,
seja o que for.
- Muito obrigada, senhor barão.
Este oferecimento
surpreendeu Alexandre, que
não estava habituado às
amabilidades do patrão, homem
ainda novo, mas seco, autoritário, frio, orgulhoso da sua educação, da sua elegância,
do seu títu1o e dos seus contos de réis; na sua humildade de subalterno, o
rapaz imaginava que, se o barão o encontrasse na rua, não o reconheceria;
admirava-se, portanto, de que esse ricaço comodista se abalasse de Botafogo
para vir assistir a missa rezada por alma de um funcionário obscuro, e tão
interessado se mostrasse pela família. Os leitores vão ter mais adiante a
explicação desse fenômeno.
Quando todos os convidados se retiraram, e a família Raposo ficou
só na sacristia, os dois rapazes despediram-se da mãe e da irmã: o mais velho
ia para a casa onde era empregado e onde almoçava, e o mais novo para a Escola
de Medicina: estavam à porta os exames, não convinha faltar; almoçaria no
Rocher de Cancalle, à Travessa do Ouvidor.
O Remígio ofereceu-se para acompanhar as senhoras até o Engenho
Novo; mas a viúva, que na ausência de espectadores já não parecia tão
angustiada, recusou formalmente.
- Não, senhor; não quero que se dê a esse trabalho; o senhor
precisa ir também para a sua repartição.
Fadinha interveio:
- Um dia não são dias. Venha, seu Remígio; almoçará conosco.
- Já disse que não!
O amanuense curvou a cabeça e levou as duas senhoras até o carro:
fê-las entrar e fechou a portinhola.
- Apareça - disse Fadinha tristemente e agitou os dedos num
delicado adeus.
D. Firmina, essa não articulou uma palavra; mas quando o carro se
afastou, na direção da rua do Teatro, ela vociferou, com uma indízivel
expressão de cólera no olhar:
- Trata de te esqueceres deste sujeitinho! Já não tens o pai
toleirão que tinhas! Quem manda sou eu, estás ouvindo?...
IV
Agora, a explicação do fenômeno:
O barão Moreira tinha vindo para o escritório mais cedo que nos
outros dias, e entretinha-se a conversar com o seu amigo Pimenta, que de vez em
quando o procurava para palestrar com ele, recordando juntos os bons tempos em
que ambos freqüentavam o Colégio Vitório.
O Pimenta abraçara
também a carreira
comercial, mas não
foi tão feliz
como o seu condiscípulo. Percorrera, durante muitos
anos, um grande número de casas, e em nenhuma delas encontrou a fortuna a que
lhe dava direito a sua prodigiosa atividade. Aos trinta e tantos anos ainda não
tinha no comércio uma posição definida, mas, enfim, sempre se arranjava como corretor de mercadorias, cujas vendas,
feitas por seu intermédio, lhe deixavam pingues porcentagens.
A sua longa passagem por um grande armarinho da rua do Ouvidor, de
onde ao cabo de quinze anos de sonhos e esperanças, saíra irritado contra os
patrões, e com uma mão atrás e outra
adiante, valeu-lhe duas
qualidades excepcionais: conhecer
como ninguém aquele gênero de
negócio e ser
a crônica viva
de toda a
população carioca. Não
havia fato, escandaloso ou
não, que o
Pimenta não armazenasse
na memória e
não glosasse no momento oportuno.
Era má língua, e,
sem esse defeito, estaria
talvez rico e independente como o
barão de Moreira, escusado
de andar acima
e abaixo, de
porta em porta,
suando as estopinhas, munido de amostras, faturas e
conhecimentos. Uns diziam: - O Pimenta não é mau sujeito, mas tem uma língua
que o perde - e outros: - É muito vivo, muito esperto, mas não há maior caipora.
Entretanto, como se conservava solteiro e não tinha obrigações de família, o
Pimenta suportava de cara alegre o seu caiporismo, ganhando o preciso para
viver sem ser pesado aos amigos.
Naquele dia ele aparecera, como já dissemos, no escritório do
barão de Moreira para dar dois dedos de palestra ao amigo de infância e talvez
papar-lhe o almoço.
Conversavam ambos, quando o Alexandre entrou no escritório para
participar ao barão ter recebido naquele instante a notícia que seu pai
falecera repentinamente, e pedir-lhe alguns dias de dispensa.
O barão, que
era de uma
altivez de autocrata
para com os
empregados da sua
casa, observou, sem levantar os olhos:
- Isso é com o senhor Motta; já lhe falou?
- O senhor Motta não está.
- Pois pode ir.
E o Alexandre saiu sem receber uma palavra de condolência.
- Conheces este teu empregado? - perguntou o Pimenta ao barão.
- Não; quem o admitiu foi o meu sócio, o Motta; creio ser esta a
primeira vez que lhe falo; bem sabes que tenho por sistema ligar pouca
importância aos caixeiros...
- Foi por isso que te perguntei se o conhecias.
Houve uma pausa.
- Nesse caso não conheceste o pai, o Raposo, que acaba de falecer
repentinamente?
- Não.
- E não sabes que o teu caixeiro é irmão da moça mais bonita do
Rio de Janeiro?
- Não!
- É singular! Nunca ouviste falar da Fadinha do Engenho Novo?
- Tenho idéia...
- Pois é ela!
- E é realmente bonita?
- Se é bonita! É formosa! É linda!... Não há reputação mais
merecida!
- Que diabo! Estás me aguçando a curiosidade! Como poderei vê-la?
- Muito simplesmente: vai a missa do sétimo dia. Como o irmão é
empregado em tua casa, procura esse pretexto para oferecer, mesmo na igreja, os teus serviços à família,
e terás ocasião de vê-la bem de perto.
- Lembras bem. Só assim iria eu à missa do pai do senhor... como
se chama o rapaz?
- Alexandre.
E ali está por que o barão de Moreira compareceu a missa: mera
curiosidade sacrílega.
Quando o titular voltou da igreja, encontrou no escritório o
Pimenta à sua espera.
- Então? Que tal?
- Meu amigo, aquela não é a moça mais bonita do Rio de Janeiro, é
a mulher mais bela do mundo!...
V
Se o Alexandre se admirara de que o barão de Moreira houvesse
comparecido à igreja, mais admirado ficou
vendo que o patrão, daquele dia em
diante, começou a tratá-lo com uma simpatia e uma atenção que em pouco
tempo se transformaram em familiaridade. Chamava-o para o auxiliar em todos os
trabalhos do escritório, confiava-lhe serviços de responsabilidade, incumbia-o
de receber grandes somas ou levá-las ao banco, e um dia, estando o moço a passar
uma carta a limpo, carta confidencial, de muita importância, o patrão
ofereceu-lhe um dos seus magníficos havanos, dizendo-lhe:
- Fume, Alexandre.
Motta, o sócio
do barão, que
era a antítese
deste, bonacheirão, amável,
amigo dos empregados, estava
estupefato e não sabia a que atribuir aquele favoritismo; o guarda-livros, porém,
e os outros caixeiros, já enciumados, e talvez instruídos pelas perversas
insinuações do linguarudo Pimenta, murmuravam: - Não há nada como ter irmã
bonita...
O barão pedia constantemente noticias da família, interessando-se
pela viúva, e repetindo, quase
todos os dias, o oferecimento dos
seus serviços e da
sua amizade para
prevenir, remover ou sanar qualquer dificuldade criada pelo súbito
falecimento do velho Raposo. O rapaz desfazia-se em agradecimentos e, chegando
à casa, contava à mãe todas as atenções e finezas que merecia ao patrão.
D. Firmina, perspicaz e manhosa, desconfiou naturalmente que o
barão, impressionado pela beleza
de Fadinha, procurasse
meios e modos
de se aproximar
da família, e
um dia aconselhou o
filho a que
lhe oferecesse a
casa dizendo-lhe que
ela, d. Firmina,
muito reconhecida a todos
os favores do
titular, teria muita
satisfação em lhos
agradecer pessoalmente.
Se d. Firmina bem o disse, Alexandre melhor o fez, e o barão, já
se vê, não deixou fugir uma ocasião
que havia já
dois meses provocava.
Um belo domingo
resolveu ir almoçar
no Engenho Novo. Para
dar maior solenidade
à visita, d.
Firmina foi esperá-lo
na estação, acompanhada pelos
rapazes, só pelos rapazes, porque Fadinha, sabendo da vinda do barão, fechou-se
na alcova, pretextando uma enxaqueca violenta, e não houve súplicas nem ralhos,
carinhos nem ameaças que a fizessem sair.
A moça estava desesperada: havia mais de um mês que não punha os
olhos no seu querido Remígio.
Foram tantas as
grosserias de d.
Firmina e dos
rapazes, que o
namorado, compreendendo que o queriam afastar, e vendo que era
impossível afrontar a pé firme aquela súcia
de ingratos, fez-lhes
a vontade, sem,
contudo, renunciar os
seus projetos de casamento, porque Fadinha continuava a
ser a mesma, e ele considerava-a digna, por todos os respeitos, do seu afeto e
da sua constância.
- Façam o que
fizerem, serei tua, só tua, juro-te por alma
de meu pai! Quanto mais me
oprimirem, quanto mais te ofenderem, mais crescerá, se é possível, o ardente
amor que te consagro! Sou tua noiva!
Animado por essas palavras de fogo, em que Fadinha pusera toda a
energia da sua alma, toda a sinceridade do seu coração, o Remígio esperava
resignadamente ensejo de fazer valer os direitos do seu amor; entretanto -
digamo-lo - o seu espírito vacilante e timorato não tinha forças para
a luta a
que o incitavam.
Ele amava deveras,
mas começava a
maldizer intimamente aquela singular
formosura, que fazia
de Fadinha um
objeto de cobiça,
uma esperança de fortuna, espécie de seguro de vida de uma família
inteira. Não obstante a última vontade, o desejo extremo e sagrado do venerando
Raposo, receava que a sua insistência causasse a
desunião e a
desgraça da família.
Entretanto, Fadinha, todas
as vezes que, iludindo a vigilância materna, lhe
podia escrever, repetia cada vez mais veementes protestos de fidelidade.
Mas voltemos ao barão de Moreira que, na estação do Engenho Novo,
com o seu terno de flanela clara, o seu
chapéu de palha
branca, a sua
gravata polícroma, o seu
alfinete de brilhantes e a rosa
enorme que trazia ao peito, contrastava com o aspecto daquela matrona e daqueles
dois rapazes vestidos de luto, luto fechado, em que eram pretos até mesmo os punhos
e os colarinhos.
VI
No dia seguinte, entrando no escritório do barão, o Pimenta
encontrou-o de mau humor.
- Então? Foste?
- Fui. Fui a Roma e não vi o papa.
- Não entendo.
- Roma é o Engenho Novo e o papa é Fadinha; entendes agora?
- Não a viste?
- Já te disse que não. Estava doente; não me apareceu.
- Deveras?
- Imagina que estupidez almoçar com dona Firmina e os filhos, e
vê-la por um óculo! Almoçar é um modo de dizer, porque não comi nada. Fiquei
desesperado!
- E que te disse a velha?
- A velha estava ainda mais contrariada do que eu. Era uma coisa
que entrava pelos olhos. Pediu-me muitas desculpas pela ausência da filha, e
disse-me - sem nenhuma convicção, aliás - que ela estava realmente indisposta.
- Não creias.
- Está visto que não creio.
- Tens um rival.
- Já desconfiava disso.
- Um concorrente sério. Informaram-me de tudo hoje pela manhã.
E o Pimenta contou ao barão o que os leitores já sabem: os amores
de Remígio e Fadinha, a última vontade do velho Raposo, os obséquios prestados
à família, a oposição de d. Firmina e dos filhos, o afastamento de Remígio - e
acrescentou:
- A pequena desconfiou que te queriam impor-lhe para marido, e
fechou-se no quarto. Aí tens por que foste a Roma e não viste o papa.
- Que me aconselhas tu?
- Para responder a essa pergunta, preciso primeiramente saber
quais são as tuas intenções.
Houve um longo silêncio.
- Gostas dela?
- Muito. Já gostava, e depois do maldito almoço fiquei gostando
ainda mais!
- Estás disposto a ser seu marido?
Houve outro silêncio, ainda mais longo que o primeiro.
- Se não queres fazê-la baronesa - redargüiu o Pimenta -
esquece-te da moça. Que diabo! Ela pode ser feliz com o tal Remígio, que é
rapaz honesto.
- Mas quem te disse que as minhas intenções não sejam boas?
- Tu ficaste calado...
- Fiquei, porque o casamento me apavora. E tão deliciosa e tão
completa a minha liberdade! Sim, confesso-te que o matrimônio jamais figurou no
programa da minha vida, mas se for preciso...
- Como "se
for preciso"? Pois
entrou-te em cabeça
que Fadinha poderia
pertencer-te independentemente da intervenção do padre? Aquela família é
pobre, mas tão honrada como a tua! Se queres ser seu marido, luta, e vencerás,
talvez; senão, desiste de uma idéia indigna de ti!
O barão olhou muito tempo para o havano que tinha entre os dedos,
deixou cair a cinza numa escarradeira, meteu o charuto na boca, ergueu-se, e
disse resolutamente, numa baforada de fumo:
- Lutarei!
Quando o Pimenta
saiu do escritório,
encontrou no armazém
o Alexandre, e
disse-lhe rapidamente, a meia voz:
- O homem casa.
VII
Naquela manhã tinha
sido o Pimenta
procurado pelo Alexandre,
que deu esse
passo instigado por d. Firmina.
Esta, que se achava ao corrente da vida do barão de Moreira, e
sabia, por intermédio do filho, quais eram os seus gostos, os seus hábitos, os
seus amigos e o seu caráter, pensou em interessar o
Pimenta na realização
do auspicioso consórcio,
e neste sentido
falou ao Alexandre, a quem ele
tratava com certa familiaridade desde que o vira nas boas graças do patrão.
Alexandre obedeceu. Como não possuía o fino espírito de um
diplomata, foi ter de manhã cedo ao quarto que Pimenta ocupava num sobrado de
alugar cômodos, à rua do Lavradio, e lhe falou com uma brutalidade que por
outro qualquer seria repelida.
Encontrou-o ainda na cama, uma cama de ferro, desconjuntada, com
um colchão estripado e um lençol encardido.
Disse-lhe que o barão estava apaixonado por Fadinha, e contou-lhe
o que havia com respeito ao Remígio, cujos direitos adquiridos inquietavam a
família.
- Mas que quer você que eu faça? - perguntou o Pimenta.
- Você, ao que parece, é o maior amigo do barão. Ninguém melhor
que você poderá auxiliar a minha família na conquista de um noivo tão
considerável. Assim, pois, venho pedir-lhe que trabalhe para que o casamento se
faça, e, se se fizer, conte com uma boa lambugem.
O Pimenta não pestanejou e perguntou:
- De quanto?
- Depois estipularemos a quantia, que naturalmente será tirada do
dote de minha irmã.
- Vá descansado.
- Mas veja lá! Não lhe fale do Remígio nem por sombras: se o barão
descobre que Fadinha gosta de outro homem, lá se vai tudo por água abaixo!...
- Você é um criançola sem nenhuma experiência do mundo! Onde já
viu você empresa que fosse por diante sem concorrência? A presença de um rival
é até indispensável para estimular o desejo. O nosso barão é orgulhoso: será
capaz de tudo para não se deixar vencer pelo tal Remígio. O
que é absolutamente preciso
é que sua
mãe procure convencer
a moça da felicidade que
a espera, se
consentir nesse casamento.
É indispensável, entretanto, convencê-la com
bons modos, com
meiguice, com beijos,
com lágrimas, se
preciso for; empregando a
rispidez e a gritaria não se consegue nada e podo-se até fazer com que ela bata
a linda plumagem! Recomende, pois, à sua mãe toda a cordura; diga-lhe que não é
com vinagre que se apanham moscas. Hoje mesmo falo ao barão; verei a disposição
de espírito em que ele se acha depois do almoço de ontem - almoço que deveria
ter sido ensaiado como se ensaia uma peça de teatro. Descanse, que me encarrego
de aproximar sua irmã do nosso homem, e o casamento se realizará, e ainda bem,
porque nunca me vi tão precisado de uns cobres.
E depois de percorrer com os olhos, ainda remelosos, todo aquele
miserável tugúrio saudoso do espanador e da vassoura, o Pimenta acrescentou:
- Esteja no armazém quando eu sair do escritório, para saber a
impressão que trarei da nossa conversa.
E dai está explicado o motivo por que o Pimenta, ao passar pelo
Alexandre, lhe atirou aquelas três palavras que soaram aos ouvidos do caixeiro
como um hino de vitória: - O homem casa.
VIII
Os conselhos do Pimenta foram fielmente observados. D. Firmina e
os rapazes concertaram-se para a conquista da moça por meio de meiguices,
candongas e lamúrias A mãe, que tinha a lágrima fácil, fez ver à filha que
estava nas suas mãos salvar o futuro da família. Alexandre lembrou-lhe que esse
casamento o faria sócio da casa comercial do barão de Moreira, e o estudante
empregou todos os argumentos para convencer a irmã de que devia ser baronesa. D.
Firmina estabelecia a todo o momento um paralelo entre o barão e o amanuense:
de um lado opulência, luxo, conforto, alta sociedade, teatro lírico, Petrópolis,
Paris; do outro pobreza, privações, luta pela vida, etc.
Fadinha não se
deixou abalar por
essa catequese impertinente, e
resolveu escrever ao Remígio uma carta desesperada, que
terminava por estas palavras: "Peço-te que me tires desta casa, deste
inferno, pois só assim poderei ser tua. Sairei daqui no momento em que o entendas,
e ficarei em casa de alguma família do teu conhecimento, até que se efetue a nossa
união. Não te demores em satisfazer ao meu pedido, porque já vou perdendo as
forças com que tenho resistido até hoje. Não quero ser de outro homem que não
sejas tu, porque te amo, e desejo ardentemente cumprir a vontade de meu pobre
pai."
Esta carta sobressaltou o Remígio, cujo caráter vacilante não se
podia conformar com um ato de violência, como fosse raptar uma donzela.
Assustava-o a perspectiva de um escândalo, aterrorizava-o a
grave responsabilidade que
tomaria sobre os
ombros, satisfazendo o imperioso desejo da sua amada.
Dizem que o verdadeiro amor
não reflete; reflete,
sim; tanto reflete
que o Remígio estabeleceu mentalmente aquele mesmo
paralelo que tinha sido o grande argumento de d. Firmina e pela manhã, depois
de uma noite de lágrimas e de insônia, estava convencido de que o
seu dever era
sacrificar-se. Mas para
sacrificar-se inteiramente, precisava
mentir, mascarar os seus
sentimentos, dar ao
sacrifício todas as
aparências de uma
resolução comum, que nada lhe custasse.
Foi nessas disposições que pegou na pena e escreveu esta carta:
'Fadinha - O que me pedes
faria o desespero de tua família;
seria um escândalo, que a memória
sagrada de teu pai me não perdoaria. Lamentei sempre a tua excepcional beleza como
um obstáculo erguido contra a minha felicidade e, como tua mãe e teus irmãos,
penso que não tens o direito de recusar um título de baronesa e uma fortuna
sólida, para te lançares nos braços de um funcionário público subalterno. Seria
para mim motivo de eterna mágoa não te poder dar o luxo, o conforto, o simples
bem-estar que não te faltarão no palacete do barão de
Moreira. Os teus parentes maldiriam o meu egoísmo, e - tu mesma - quem sabe? - quando mais tarde passasse o que se chama
lua-de-mel, te arrependerias de haver trocado um rico
titular por um pobre-diabo como
eu. Consente no consórcio que te propõe a tua família;
sofrerei muito porque te adoro, mas consolar-me-ei com a certeza de que serás
mais venturosa com esse homem do que o poderias ser comigo."
Essa carta, que
o Remígio assinou
com o mesmo
sentimento com que
assinaria a sua sentença de morte, produziu o desejado
efeito.
Na noite em que a entregaram a Fadinha, o barão de Moreira estava
na sala em companhia de d. Firmina e dos filhos. Era a terceira visita que o
negociante fazia à família.
A moça correu pressurosa para o seu quarto e abriu a carta. Leu-a,
e segurou-se a um móvel para não cair fulminada por aquele desengano terrível.
Teve uma crise de lágrimas, chorou abundantemente, mas veio logo a
reação e, reanimada pelo despeito e pelo orgulho, enxugou os olhos, compôs o
penteado e foi para a sala.
O barão de Moreira levantou-se e correu ao seu encontro. Ela
estendeu-lhe a mão, dizendo:
- Eu sei que o senhor barão deseja ser meu esposo. Poupo-lhe o
trabalho de pedir a minha mão. Aqui tem! Sou sua!...
IX
Não esperava o barão de Moreira que se decidisse tão bruscamente a
sua sorte; no fundo, contava que uma circunstância qualquer, atirando-lhe Fadinha
nos braços, o dispensasse das responsabilidades do casamento; entretanto, o
titular submeteu-se a tudo, resignando-se a perder a liberdade que era o
encanto da sua vida de libertino.
D. Firmina e os filhos não cabiam na pele de contentes. Ela tratava
agora os vizinhos e mais pessoas
do seu conhecimento com
ares de proteção,
e o Alexandre
olhava para os companheiros do armazém e do escritório,
e lhes falava, como se já fossem caixeiros dele.
O Pimenta estava radiante, e, com o olho na prometida lambugem,
por todos os meios e modos estimulava o barão para que o casamento
se realizasse quanto antes.
Marcou-se o "grande dia" em família, durante o jantar
com que se festejou o décimo nono aniversário
da Fadinha, e o barão,
num brinde feito
à noiva, ofereceu-lhe, com
muita delicadeza, o enxoval, que mandaria vir de Paris. O casamento
efetuar-se-ia em setembro, com todo o luxo e aparato. O noivo não mudaria de
casa; apenas faria alguns reparos e modificações imprescindíveis em
certos compartimentos, e
substituiria a sua
mobília de solteiro. O Pimenta
foi logo encarregado de todas essas diligências.
Fadinha dissimulava o mais que podia o seu desgosto. Sofria muito,
muito, porque, por mais que tentasse iludir a si mesma com a perspectiva de ser
baronesa e abastada, não podia esquecer-se
do Remígio. Este,
que sabia, por
portas travessas, de
todos os incidentes relatados, sofria
tanto como Fadinha; consolava-se,
porém, com a idéia
de que ela
seria venturosa, e nada, absolutamente, nada lhe faltaria neste mundo,
nem mesmo o seu amor, porque ele continuaria
a amá-la, e
amá-la-ia sempre, embora
casada, cheia de
filhos, envelhecida, morta!
Entretanto,
prosseguiam os preparativos para
o casamento. Chegou
o enxoval, que
era riquíssimo, e o palacete do barão ficou que nem um brinco. Os papéis
estavam prontos. O Pimenta, que se incumbiu também disso, não se esqueceu de
coisa alguma, nem mesmo do bilhete de confissão, comprado a um sacerdote pouco
escrupuloso.
Na cidade, um dos assuntos obrigados de todas as conversas era o
próximo enlace do barão de Moreira. Toda a gente o elogiava por se casar com
moça pobre, e toda a gente o invejava, porque essa moça era a mais bonita do
Rio de Janeiro. Fadinha tornou-se, mais que nunca, objeto de curiosidade
pública, e mais que nunca o Engenho Novo foi visitado por pessoas estranhas ao
bairro.
Faltava um mês apenas para a celebração do casamento. Era em 15 de
agosto. D. Firmina, sempre devota, exigiu que Fadinha fosse com ela à ermida da
Glória levar uma vela à Virgem e pedir proteção divina. A moça aquiesceu, e lá
foram mãe e filha... A noite era quente, e no Largo da Glória, no outeiro e na
ermida, a multidão compacta. Só à custa de incalculáveis esforços conseguiram
as duas senhoras
levar a vela
ao seu destino.
Dentro da ermida Fadinha sentiu-se mal, respirando com
dificuldade, queixando-se de dores de cabeça.
- Não é nada. Vamos para casa, que isso passa.
Meteram-se num carro. Quando chegaram ao Engenho Novo, Fadinha
ardia em febre. Foi imediatamente para a cama.
Estavam presentes, esperando as senhoras, o barão e o Pimenta, que
se tornara íntimo da casa. Este foi logo chamar o médico.
Depois que Fadinha se acomodou, o noivo pediu licença para vê-la,
e d. Firmina introduziu-o no
quarto. A moça
tinha os olhos
fechados e ofegava.
O barão aproximou-se dela
e, tomando-lhe uma das mãos ardentes, perguntou-lhe com meiguice:
- Então?... Que foi isso?...
Fadinha sorriu e murmurou:
- Remígio!... Meu Remígio!
Delirava.
Trouxe o Pimenta o dr. Souto, o médico da família, o mesmo que
passara o atestado de óbito do Raposo. Era um sexagenário, que havia mais de
trinta anos clinicava no bairro, onde todos o conheciam e respeitavam.
- Então a beleza adoeceu?... Não há de ser nada, não há de ser
nada...
O médico sentou-se junto ao leito e tomou o pulso à doente:
- Tem muita
febre, tem... e a pele
como está seca!...
Já sei... uma
supressão de transpiração... Não
há de ser nada...
E voltando-se para d. Firmina:
- Segundo me disse aquele senhor (e apontou para o Pimenta), a
menina foi à festa da Glória, sentiu-se mal dentro da igreja, e voltou para
casa com febre e dores de cabeça...
- Sim, doutor.
- E não se queixou de mais nada?
- Não, senhor, mas está muito agitada, como vê...
O doutor debruçou-se delicadamente sobre a enferma, e
perguntou-lhe em tom paternal:
- Ainda lhe dói muito a cabeça?
Fadinha não respondeu. Parecia não dar acordo de si.
O médico repetiu duas vezes a pergunta, e a enferma teve, afinal,
um movimento quase imperceptível de lábios.
- E que mais lhe dói? Diga! Preciso saber... Vou dar-lhe um
remédio que a porá boa...
A moça levou a mão à garganta.
- Dói-lhe também a garganta?
Desta vez ela respondeu distintamente:
- Dói.
- Bom. Não há de ser nada... Vou receitar, e amanhã voltarei cedo.
E depois de prescrever um sudorífico e uma dose alta de quinino, o
médico despediu-se, dizendo:
- Convêm deixá-la quieta, muito quieta... Não lhe falem... Não
façam o menor rumor neste quarto...
- Mas que tem minha filha, doutor?
- Por enquanto
não posso diagnosticar... mas
não há de
ser nada... Não
se assustem... Deixem-na
transpirar, transpirar bastante... Só lhe mudem a roupa quando estiver
alagada... De duas em duas horas uma cápsula... Até amanhã.
- E se a febre aumentar?
- Não aumenta, mas se aumentar previnam-me: darei cá um pulo. Não
há de ser nada. Até amanhã.
- Boa noite, doutor.
E o médico saiu.
Entretanto, aquelas palavras
- Remígio!.. Meu
Remígio!.. - proferidas pela
moça na inconsciência do
delírio sobressaltaram a
família - e,
quando o barão
e o Pimenta
se retiraram, d. Firmina e os rapazes, não obstante o estado em que se
achava a doente, e as recomendações do médico, dirigiram-lhe amargas invectivas:
- Filha ingrata! Destruíste a nossa felicidade!
- Escabreaste o barão!
- Deitaste tudo a perder!
- Podes limpar a mão à parede!
A doente, que parecia não ouvir tais recriminações, começou a
gemer, a gemer, como se sentisse muitas dores em todo o corpo. Assim passou a
noite.
X
Ao sair de casa de d. Firmina, o barão de Moreira e o Pimenta
encaminharam-se para a estação e tomaram o trem de ferro, sem trocar palavra.
Só alguns instantes depois de sentados e quando o carro já estava
em movimento, o noivo rompeu o silêncio:
- Ouviste, Pimenta?
- O quê?
-"Remígio!... Meu Remígio!..."
- Ora que
tem isso? Delírio
da febre! Ela
disse Remígio como
poderia dizer Alfredo
ou Bonifácio!
E os dois
amigos calaram-se de
novo, até que
o trem chegou
à estação Central.
Ali separaram-se. O barão tomou um tílburi e o Pimenta, cortando em diagonal o
Campo de Santana, encaminhou-se para o
miserável tugúrio da rua do Lavradio, pensando na tremenda hipótese de, gorado
o casamento, perder a cobiçada "lambugem".
XI
- "Remígio!... Meu Remígio!..." - essas palavras
proferidas inconscientemente no delírio da febre não saiam do espírito do barão
de Moreira, ferido por um sentimento amargo, que não sabia bem se era o ciúme
ou o amor-próprio ofendido.
Ele interrogava todos os escaninhos da alma, e já supunha
transformado em verdadeiro amor o frívolo capricho que o fizera noivo. Procurava iludir-se,
buscava convencer-se de que o "Remígio!... Meu Remígio!..." era uma
frase insignificante, sem a menor importância; mas a triste verdade
aparecia-lhe em toda a sua nudez, e o negociante rememorava a noite em que Fadinha,
num assomo de despeito, produzido por circunstâncias misteriosas, cedendo,
talvez, aos rogos dos parentes, lhe oferecera a mão de esposa, antes mesmo que
ele a pedisse.
Todavia, esta lembrança dolorosa, este azedume d'alma, em vez de o
afastar da idéia do casamento,
mais o impelia
para ela; o
seu orgulho, o
seu prazer, a
sua vitória seria conquistar, com o seu próprio
merecimento, a formosa mulher que ia ser sua e o não amava ainda; seria
disputá-la ao pobre amanuense indigno dela, exibi-la aos olhos da sociedade como
um troféu glorioso, dar àquele belo quadro a moldura do ouro que lhe convinha.
O mísero deitou-se, mas não pôde conciliar o sono. Duas coisas o
agitavam: a doença de Fadinha, que se apresentava com um caráter inquietador, e
aquela frase proferida pelos seus lábios
em febre: "Remígio!... Meu
Remígio!..." Ela ia
entregar-lhe um corpo
vendido; o coração ficava com
outro homem...
Tinha agora uma profunda inveja do seu rival, e uma dor, ainda
mais profunda, causada pela injustiça da preferência da moça. O Remígio não era
bonito, nem elegante, nem rico, nem talentoso, nem titular - por que era o
preferido? - E sentia pelo amanuense uma espécie de ódio. Tinha ímpetos de sair para a rua
àquela hora, procurá-lo, assassiná-lo,
vingando-se daquela frase terrível: "Remígio!... Meu Remígio!..."
Seriam três horas da madrugada quando o barão afinal adormeceu;
mas logo um pesadelo horrível o despertou de novo. Fadinha apareceu-lhe, mais
formosa que nunca, nos braços de Remigio, lançando-lhe motejadores olhares,
soltando gargalhadas irônicas. Remígio, que o barão não conhecia, tinha no
sonho a figura de um gigante espadaúdo e musculoso, contra o qual seria baldada
qualquer violência; entretanto, o noivo cresceu para ele, oferecendo-lhe combate.
Remígio empurrou-o desdenhosamente com o pé, e, vendo-o por terra, pisou-o como um elefante pisaria um cão. O
desgraçado sentia-se esmagar por aquele peso; nada lhe doía, mas faltava-lhe a
respiração, e não podia mover-se nem gritar.
Despertou alagado em suor, opresso, aniquilado de vergonha pela
humilhação que passara, embora em sonho. Dirigiu-se a um magnífico banheiro de
mármore e tomou um banho frio; depois, vestiu-se e saiu para a rua, errando ao
acaso, até que deu consigo na estação da estrada de ferro. Sentia-se agora
tomado de um desejo súbito e imperioso de ver Fadinha, e estreitá-la nos
braços, dizendo-lhe: Amo-te!
Quero que sejas
minha, só minha, exclusivamente minha!...
Quando chegou à casa da noiva,
encontrou de pê d. Firmina,
que o recebeu surpresa
e contente: já não contava com
ele.
- Então?
- Passou muito mal a noite... Queixando-se de muitas dores na
garganta e nas cadeiras... muito agitada... muito nervosa...
- E a febre?
- Não diminuiu, mas também não aumentou.
Daí a instantes entrava o médico.
- Então, doutor? - perguntou d. Firmina depois que o velho clínico
examinou a doente.
- Minha senhora, aquela febre tem todo o caráter de eruptiva.
- Eruptiva! - exclamou o barão.
- Sim, podem ser sarampos... mas também podem ser bexigas... Elas
têm andado cá pelo bairro... Mas não se aflijam... Talvez sejam benignas... Não
há de ser nada...
XII
Não se enganava o dr. Souto: era a varíola.
Fadinha passou aquele
dia angustiada, queixando-se de
muitas dores, com
o rosto enrubescido, tendo
freqüentes náuseas e vômitos, e na manhã seguinte o seu belo corpo estava inteiramente salpicado
de pequeninos pontos
vermelhos, que se
desenvolveram durante quatro dias, transformando-se em horríveis
pústulas, cheias de um fluido amarelo, rodeadas por um círculo negro. A
peregrina beleza da moça desapareceu sob uma crosta repugnante e fétida.
Quando começou o período supurativo, a doente já estava abandonada
por todos, menos por d. Firmina, que
se sacrificou, digamo-lo,
não por piedade
materna, mas para
guardar as conveniências,
fingindo sentimentos que não tinha.
Os irmãos fugiram; durante a moléstia de Fadinha não houve notícia
deles no Engenho Novo.
O barão de Moreira, logo
que soube, pelo dr. Souto, da gravidade
do caso, pois que
se tratava, efetivamente, da pior espécie de varíola - a varíola negra -
nunca mais lá foi.
O Alexandre sentiu, pela maneira seca por que o patrão começou de
então em diante a tratá-lo, que o casamento
estava desfeito, e
com ele toda
a fortuna sonhada
pela família. Vencendo a tibieza
de caráter, teve o caixeiro uma explicação com o ex-futuro cunhado, e este em
termos que não admitiam réplica alegou brutalmente a visível paixão de Fadinha
por outro homem. Vieram
à bulha aquelas
palavras fatais: "Remígio!... Meu
Remígio!..." pronunciadas no delírio da febre.
A posição esquerda em que o desventurado ficou em casa do barão
onde perdera todas as simpatias e era apenas sustentado pela influência
indireta da irmã, os sarcasmos, os risinhos mal disfarçados do pessoal do
armazém e do escritório deram com ele na rua, não obstante os generosos
esforços que fez, para evitá-lo, o outro patrão, o sr. Motta, alma compassiva e
boa, cuja bandeira
de misericórdia debalde
tentou cobrir o
ambicioso rapaz. O
próprio Pimenta desviou o rosto à primeira vez que encontrou o
Alexandre, depois que este saiu da casa do barão, e nunca mais lhe falou.
D. Firmina ficou à cabeceira da enferma, sem outra pessoa senão
uma viúva da vizinhança, amiga
dedicada de Fadinha,
muito boa senhora,
a mesma que
recebia e transmitia misteriosamente a correspondência
de Remígio, e punha, epistolarmente, o amanuense ao fato de tudo quanto se
passava no Engenho Novo.
Quando essa amiga lhe mandou dizer que Fadinha estava com bexigas,
e o caso era grave, Remígio ficou aflito, sobressaltado, desesperado; quando
ele soube que o barão de Moreira não visitava a noiva, que os rapazes não
apareciam em casa da mãe, e esta, constrangida a não abandonar o seu posto,
chegava a ponto de maldizer a filha, não pensou em mais nada, e, aconselhado
unicamente pelo seu amor, correu para junto da variolosa.
XIII
O moço foi bem recebido por d. Firmina, não porque despertasse no
coração desta senhora nenhuma nuga de gratidão, mas porque ia auxiliá-la no
penoso trabalho de assistir à enferma.
Realmente, nunca houve enfermeiro tão dedicado nem tão vigilante.
A moléstia conservou
durante muitos dias
- dias angustiosos
e terríveis -
um caráter de excessiva gravidade; durante longo tempo,
Fadinha, que estava com todo o corpo cruelmente invadido pela medonha erupção,
teve a existência por um fio.
O dr. Souto desanimara completamente, e era por hábito, só por
hábito, que repetia o fatigado estribilho: "Não há de ser nada."
Entretanto, os cuidados da ciência e a ciência dos cuidados
triunfaram do mal, e Fadinha ficou boa, completamente boa, depois de ter estado
suspensa entre a vida e a morte.
Ficou boa, mas desfigurada:
a moça mais bonita
do Rio de Janeiro transformara-se
num monstro. Aquele rosto intumescido e esburacado não conservara nada,
absolutamente nada da beleza célebre de outrora. Ela, porém, consolou-se, vendo
que o amor de Remígio, longe de enfraquecer, crescera, fortificado pelo
espetáculo do seu martírio.
A mãe conquanto insensível às boas ações, não pôde disfarçar a
admiração e o prazer que o moço lhe causou no dia em que lhe pediu a filha em
casamento, dizendo:
- Só havia um obstáculo à minha felicidade: era a formosura de
Fadinha. Agora que esse obstáculo desapareceu, espero que a senhora não se
oponha a um enlace que era o desejo de seu marido.
Realizou-se o casamento. D. Firmina, desprovida sempre de todo o
senso moral, entendeu que devia ser aproveitado o rico enxoval oferecido pelo
primeiro noivo; Remígio, porém, teve o cuidado de fazer com que o restituíssem
ao barão. A cerimônia efetuou-se com
toda a simplicidade, na matriz do Engenho Novo.
Um ano depois do casamento, Fadinha estava outra vez bonita, não
da boniteza irradiante e espetaculosa de outrora, mas, enfim, com um semblante
agradável, o quanto bastava para regalo dos olhos enamorados do esposo. Remígio
dizia, sinceramente, quem sabe? que a achava assim mais simpática, e os sinais
das bexigas lhe davam até um "não sei quê", que lhe faltava dantes.
- Não é bela que me inquiete, nem feia que me repugne. E o que
fosse, quem o feio ama, bonito lhe parece. Era assim que eu a desejava.
O caso é
que ambos foram
muito felizes. Ainda
vivem. Remígio é
atualmente um alto funcionário, pai de cinco filhos
perfeitamente educados.
O Alexandre, que teve sempre a proteção do cunhado, foi ao
Amazonas procurar fortuna e lá ficou.
O "talento da
família" formou-se, e arrasta
melancolicamente por essas ruas a sua mediocridade e o seu pergaminho.
D. Firmina faleceu há quinze anos, sem deixar saudades a ninguém,
e se os leitores têm curiosidade em saber que fim levaram os demais figurantes
desta verídica história, saibam que o barão de Moreira também morreu,
solteirão, sem aproveitar o enxoval que mandou vir e que o Pimenta, depois de
ter adquirido, no famoso Encilhamento, uma riqueza que os amigos calculavam em milhares de contos de réis,
perdeu tudo e fez-se outra vez boêmio, vivendo, como dantes, de expedientes.
Está velho e deu para beber.
---
Nota:
Texto-fonte: Artur de
Azevedo: Contos Cariocas, data não identificada
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