O ano de 1864 foi assinalado no Rio de Janeiro por duas
calamidades notáveis: a chuva de pedras e a quebra do Souto.
O Souto era o mais acreditado e o mais popular dos banqueiros havidos
e por haver no Brasil; a sua casa inspirava uma confiança absoluta, e não havia
homem do trabalho que, avisado e previdente, não houvesse lá depositado as suas
economias.
Quando começaram a aparecer os primeiros rumores sobre o mau
estado das finanças do Souto,
ninguém se importou com
isso: toda a gente encolheu os ombros.
Supor naquele tempo que o Souto
quebrasse era o mesmo que acreditar na quebra do Pão de Açúcar. O banqueiro na
sua casa da Rua Direita não estava menos seguro que o famoso rochedo.
Mas os rumores
sinistros foram num
crescendo inquietador, até
que os mais
incrédulos começaram a acreditar
no que se
dizia: o Souto
estava falido! Houve
então a inevitável corrida.
A invasão dos franceses, a chegada do príncipe regente, as águas
do monte, a declaração da guerra do Paraguai, a proclamação da República, a revolta de 6 de setembro,
talvez não alvorotassem tanto o espírito dos cariocas. Não se falava noutra
coisa, a consternação era geral, todos se lamentavam, choravam todos o seu
dinheiro perdido, e a ninguém aproveitava o ditado de que o mal de muitos
consolo é.
Havia então nesta cidade um moço entre vinte e cinco e trinta
anos, que, sem pai nem mãe, sem ter tido a proteção de ninguém, levado apenas
por uma grande força de vontade e por um talento ainda maior, conseguira
formar-se em medicina, e sair da escola com um nome feito.
Pouco depois de formado casou-se, e a sua união foi logo
abençoada, como se dizia naquele tempo: nasceram-lhe dois filhos de seguida.
Veio então ao
médico o desejo
natural de possuir
uma casa, e,
para isso, começou
a economizar quanto podia, conseguindo, em 1864, ter reunidos vinte
contos de réis na casa do Souto. Absorvido pela sua clínica e pelos seus
estudos, ele ignorava os boatos que corriam acerca da insolvabilidade do
banqueiro, de sorte que só veio ao conhecimento do fato quando a bomba estava
prestes a estourar.
O seu desgosto foi profundo. Aqueles vinte contos representavam um
sacrifício tremendo, porque, para ajuntá-los, ele se privara de tudo, a si e a
sua família.
Desesperado, correu ao
Souto, que o
mandou entrar para
um escritório onde
trabalhava sozinho. Quando o banqueiro declarou que não lhe era possível
restituir os vinte contos, ele correu à porta, fechou-a, guardou a chave na
algibeira e, puxando um revólver, apontou-o contra o outro, dizendo:
- Se não me dá imediatamente o meu dinheiro, faço-lhe saltar os
miolos! Paga ou morre!.
E aí está porque o Dr.... (com certeza muitos leitores lhe sabem o
nome) foi o único credor do Souto que em 1864 recebeu integralmente a
importância da sua dívida. Perdeu apenas os juros.
Ele nunca mais fez uso do seu revólver; mas o seu bisturi
tornou-se ilustre.
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Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
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