sexta-feira, 29 de março de 2013

Artur de Azevedo: "O Telefone"


O TELEFONE


Isto passou-se nos últimos tempos do Segundo Império:

O Chagas, moço de vinte e cinco anos, amanuense numa secretaria de estado, era tímido, o que, aliás, não o impediu de corresponder prontamente aos olhares libidinosos que certa noite -  por  sinal  que era domingo  - lhe atirou de  um   camarote,  no Recreio  Dramático,  uma  bonita mulher, um pouco mais velha que ele, acompanhada pelo marido, muito mais velho que ambos.

Este parecia interessado pelo espetáculo: tinha os olhos pregados no palco, sem desconfiar nem de leve que a sua cara-metade namorava escandalosamente, ás suas barbas, um jovem espectador da platéia.

Depois de castigado o vício e premiada a virtude, o Chagas acompanhou, a certa distância, o casal até o Largo de São Francisco e, apesar de tímido, teve a coragem de sentar ao lado da senhora.

Dali até São Cristóvão, como não se pudessem falar, entenderam-se ambos, a princípio com os cotovelos e os joelhos, depois com os pés e afinal com as próprias mãos, que se apertaram furtivamente, quando, nas alturas do canal do Mangue, o marido deixou de fazer considerações críticas sobre o dramalhão que ouvira, e começou a cochilar, como todos os maridos confiantes.

Alguns metros antes de chegar ao domicílio conjugal, ela preveniu o Chagas com uma joelhada mais enérgica e, voltando-se para o sonolento, disse-lhe:

- Acorda, Barroso, que estamos quase!

Apearam-se, e o Chagas tomou nota do número da casa.

No dia seguinte, o ditoso mancebo colheu todas as informações desejáveis. O Barroso era um honrado   negociante,  estabelecido   perto   do  Mercado;   saía   de   casa   às   seis  da   manhã   e   só voltava à noitinha - o que facilitou ao Chagas os meios de escrever a Clorinda, que assim se chamava a bela.

Pediu-se   uma   entrevista,   e   escusado   é   dizer   que   ela   não   opôs   a   esse   pedido   a   menor resistência; exigiu apenas, depois do primeiro encontro, que os outros se efetuassem longe do bairro, e que o Chagas a esperasse no Campo de São Cristóvão, dentro de um carro fechado. Este os transportaria para um retiro longínquo e discreto.

O   venturoso   amante   em   pouco   tempo   se   convenceu   de   que   as   mulheres   mais   caras   são justamente as que se dão de graça. Os seus magros cobres de amanuense não chegavam para aquele   carro   escandalosamente   misterioso   e   para   o   hotel   com   duas   entradas,   onde   se escondiam   aqueles   amores   ignóbeis.   O   pobre   rapaz   recorreu   ao   prego   e   ao   usurário: encalacrou-se deveras.

Demais, o namoro estragou o funcionário. Como estivesse profundamente impressionado por Clorinda, e não pensasse noutra coisa que não fosse ela, e só ela, o amanuense começou a meter   os   pés   pelas   mãos,   errando   os   trabalhos   mais   insignificantes   que   lhe   confiavam, tornando-se incapaz até de extrair uma simples cópia.

Junte-se a isto a circunstância de faltar pelo menos uma vez por semana à repartição - nos dias em que, metido no carro, suando por todos os poros, trêmulo de impaciência e com o coração aos saltos, esperava que ela entrasse também, para voarem ambos ao miserável ninho das suas poucas-vergonhas.

Algumas vezes Clorinda faltava à entrevista, porque uma circunstância qualquer a impedia de sair de casa. Nessas ocasiões o Chagas passava por tormentos incríveis.

- Ainda nada, ó Maciel? - perguntava de vez em quando ao cocheiro, sempre o mesmo, que os servia naquelas arriscadas aventuras, homem já maduro, pai de filhos, e tão discreto que não encarava Clorinda quando esta apontava ao longe e vinha na direção do carro, protegida pela sombrinha e pelo véu, arregaçando a saia com muita elegância, e apressando os passinhos miúdos, lépida, saltitante como se houvesse saído de casa para boa coisa.

- Nada! avisava:

Mas, desde que a via, o cocheiro voltava-se para o Chagas e o

- Agora!

E o Chagas esperava-a com a portinhola entreaberta.

Um dia Clorinda deu-lhe uma notícia desagradável: o marido tinha mandado colocar em casa um aparelho telefónico.

- É um perigo - observou ela - mas por outro lado é bom, porque posso falar-te quando estiveres na Secretaria. Vocês têm lá telefone?

- Naturalmente.

Poucos   dias   depois,   estava  o   Chagas,   sentado   à  sua  mesa  de   amanuense,   copiando   pela terceira vez um aviso, quando se aproximou dele um contínuo e lhe disse:

- O senhor ministro chama-o.

- A mim?!

- Sim, senhor.

- Ora essa! Você não está enganado?...

- Não, senhor. Sua Excelência me perguntou: - Há aqui na casa algum empregado chamado Chagas? - Respondi-lhe que sim, e ele disse-me: - Pois vá chamá-lo.

- Que diabo será? - perguntou o amanuense aos seus botões.

E foi para o gabinete do ministro.

Tremia que nem varas verdes.

O conselheiro, homem  enfatuado e rebarbativo, estava sentado à secretária, com as barbas metidas numa papelada que o absorvia.

- Estou às ordens de Vossa Excelência - gaguejou o Chagas.

Não teve resposta.

Dois minutos depois, repetiu:

- Estou às ordens de Vossa Excelência.

S. Exa, sem se dignar erguer os olhos, perguntou em tom áspero:

- É o senhor Chagas?

- Sim, senhor.

- Estão o chamando no telefone.

E, sempre de olhos baixos, e carrancudo, apontou para o telefone, que ficava a alguns passos de distância, e fazia ouvir o seu impertinente e desrespeitoso tlin-tlin-tlin.

O   Chagas   sentiu   faltar-lhe   o   chão   debaixo   dos   pés;   entretanto,   conseguiu   aproximar-se   do aparelho, e dizer engasgado pela comoção:

- Alô! Alô!

- Quem fala?

- É o amanuense Chagas.

- Ah! Bom! Sou eu, a tua Clorinda. Quem foi o sujeito que falou antes de ti? É um malcriado! Então? Não respondes?

- Não sei.

- Ele disse que era o ministro.

- Era. Que deseja a senhora?

- Por que me tratas por senhora?

- Não posso dizer neste momento!

- Por quê?

- Por... por nada... estou muito ocupado... a ocasião e imprópria.

- Já não me amas?

- Sim!

- Como sim? Já não me amas?

- Não... isto é, não posso... Diga o que deseja.

- Estás zangado comigo?

- Não.

- Então dize: não estou zangado e amo-te!

- Isso não posso. Depois explicarei por quê.

- Não vás amanhã: o Barroso  faz anos e janta em casa... não me  lembrava... mas dize ao menos que ainda me amas!

- Não posso agora.

- Por quê?

- Depois saberá.

O ministro, sem levantar os olhos da papelada:

- Veja se acaba com isso, meu caro senhor; quero trabalhar!

O Chagas estremeceu, largou das mãos o telefone, que ficou pendurado, e saiu do gabinete fazendo muitas mesuras.

O conselheiro ergueu-se para desligar o aparelho, mas levou o fone ao ouvido e ainda ouviu:

- Que modos são esses? Nunca me trataste assim! Já não me amas! E eu que por tua causa enganei o meu pobre marido! Está tudo acabado entre nós!...

- Tenha juízo, senhora! - bradou o ministro com a sua bela voz parlamentar.

E desligou o aparelho, sem suspeitar que ao mesmo tempo desligava dois amantes.
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Nota:
Texto-fonte: Artur de Azevedo: Contos Diversos, data não identificada 

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