sábado, 30 de março de 2013

Artur de Azevedo: "A 'Não-me-toques'!"


A "NÃO-ME-TOQUES"!


I

Passavam-se os anos, e Antonieta ia ficando para tia, - não que lhe faltassem candidatos, mas  - infeliz moça!  - naquela  capital de província não  havia um  homem,  um só, que ela considerasse digno de ser seu marido.

Ao   Comendador   Costa   começavam   a   inquietar   seriamente   as   exigências   da   filha,   que repelira, já, com desdenhosos muxoxos, uma  boa  dúzia de pretendentes cobiçados  pelas principais   donzelas   da   cidade.   Nenhuma   destas   se   casou   com   rapaz   que   não   fosse primeiramente enjeitado pela altiva Antonieta.

- Que  diabo!  dizia  o  comendador   à sua   mulher,   D.  Guilhermina,  -  estou  vendo  que  será preciso encomendar-lhe um príncipe!

- Ou então, acrescentava D. Guilhermina, esperar que algum estrangeiro ilustre, de passagem nesta cidade...

- Está você bem aviada! Em quarenta anos que aqui estou, só dois estrangeiros ilustres cá têm vindo: o Agassiz e o Herman.

Entretanto,   eram   os   pais   os   culpados   daquele   orgulho   indomável.   Suficientemente   ricos tinham   dado   à   filha   uma   educação   de   fidalga,   habituando-a   desde   pequenina   a   ver imediatamente satisfeitos os seus mais custosos e extravagantes caprichos.

Bonita, rica, elegante, vestindo-se pelo último figurino, falando correntemente o francês e o inglês,   tocando   muito   bem   o   piano,   cantando   que   nem   uma   prima-dona,   tinha   Antonieta razões sobejas para se julgar um  avis rara  na sociedade em que vivia, e não encontrar em nenhuma classe homem que merecesse a honra insigne de acompanhá-la ao altar.

Uma grande viagem à Europa, empreendida pelo comendador em companhia da esposa e da filha,   completara   a  obra.  Ter  estado  em   Paris   constituía,  naquela  boa   terra,   um   título   de superioridade.

Ao   cabo   de   algum   tempo,   ninguém   mais   se   atrevia   a   erguer   os   olhos   para   a   filha   do Comendador   Costa,   contra   a   qual   se   estabeleceu   pouco   a   pouco   certa   corrente   de animadversão.

Começaram todos a notar-lhe defeitos parecidos com os das uvas de La Fontaine, e, como a qualquer   indivíduo,   macho   ou   fêmea,   que   estivesse   em   tal   ou   qual   evidência,   era   difícil escapar ali a uma alcunha, em breve Antonieta se tornou conhecida pela "Não-me-toques".


II

Teria sido realmente amada? Não, mas apenas desejada, - tanto assim que todos os seus namorados se esqueceram dela...

Todos,  menos   o mais discreto, o mais  humilde,  o único  talvez, que  jamais  se atrevera a revelar os seus sentimentos.

Chamava-se José Fernandes, e era o primeiro empregado da casa do Comendador Costa, onde entrara aos dez anos de idade, no mesmo dia em que chegara de Portugal.

Por  esse  tempo  veio  ao  mundo  Antonieta.  Ele  vira-a nascer,   crescer,   instruir-se,  fazer-se altiva e bela. Quantas vezes a trouxera ao colo, quantas vezes a acalentara nos braços ou a embalara no berço! E, alguns anos depois, era ainda ele quem todas as manhãs a levava e todas as tardes ia buscá-la no colégio.

Quando Antonieta chegou aos quinze anos e ele aos vinte e cinco, "Seu José" (era assim que lhe chamavam) notou que a sua afeição por aquela menina se transformava, tomando um caráter estranho e indefinível; mas calou-se, e começou de então por diante a viver do seu sonho e do seu tormento Mais tarde, todas as vezes que aparecia um novo pretendente à mão da moça, ele assustava-se, tremia, tinha acessos de ciúmes, que lhe causavam febre, mas o pretendente era, como todos os outros, repelido, e ele exultava na solidão e no silêncio do seu platonismo.

Materialmente, Seu José sacrificara-se pelo seu amor. Era ele, como se costuma dizer (não sei com que propriedade) o "tombo" da casa comercial do Comendador Costa; entretanto, depois de tantos anos de dedicação e amizade, a sua situação era ainda a de um simples empregado;  o patrão,  ingrato e egoísta, pagava-lhe em  consideração e elogios  o que lhe devia   em   fortuna.   Mais   de   uma   vez   apareceram   a   Seu   José   ocasiões   de   trocar   aquele emprego por uma situação mais vantajosa; ele, porém, não tinha ânimo de deixar a casa onde ao seu lado Antonieta nascera e crescera.


III

Um dia, tudo mudou de repente.

Sem   dar   ouvidos   a   Seu   José,   que   lhe   aconselhava   o   contrário,   o   Comendador   Costa empenhou a sua casa numa grande especulação, cujos efeitos foram desastrosos, e, para não fechar a porta,  viu-se obrigado  a fazer  uma concordata  com os credores.  Foi  este o primeiro golpe atirado pelo destino contra a altivez da "Não-me-toques".

A casa ia de novo se levantando, e já estava quase livre dos seus compromissos de honra, quando   o   Comendador   Costa,   adoecendo   gravemente,   faleceu,   deixando   a   família   numa situação embaraçosa.

Um  verdadeiro deus  ex machina  apareceu então na figura de Seu José que, reunindo as  suadas   economias   que   ajuntara   durante   trinta   anos,   e   associando-se   a   D.   Guilhermina, fundou a firma Viúva Costa & Fernandes, e salvou de uma ruína iminente a casa do seu finado patrão.


IV

O estabelecimento prosperava a olhos vistos e era apontado como uma prova eloqüente de quanto podem a inteligência, a boa fé e a força de vontade, quando o falecimento da viúva D.Guilhermina veio colocar a filha numa situação difícil...

Sozinha, sem pai nem mãe, nem amigos, aos trinta e dois anos de idade, sempre bela e arrogante em que pesasse a todos os seus dissabores, aonde iria a "Não-me-toques"?

Antonieta foi a primeira a pensar que o seu casamento com José Fernandes era um ato que as circunstâncias impunham...

Antes da sua orfandade, jamais semelhante coisa lhe passaria pela cabeça. Não que Seu José   lhe   repugnasse:   bem   sabia   quanto   esse   homem   era   digno   e   honrado;   estimava-o, porém, como a um tio, ou a um irmão mais velho, - e ela, que recusara a mão de tantos doutores, não podia afazer-se a idéia de se casar com ele.

Entretanto, esse casamento era necessário, era fatal. Demais, a "Não-me-toques" lembrava-se   de   que   o  pai,   irritado   contra   os   seus   contínuos   e   impertinentes   muxoxos,   um   dia   lhe dissera:

- Nã0  sei o que supões que tu és, ou o que nós somos! Culpa tive eu em dar-te a educação que te dei! Sabes qual é o marido que te convinha? Seu José! Seria um continuador da minha casa e da minha raça!

Tratava-se por conseguinte, de homologar uma sentença paterna. A continuação da casa já estava confiada a Seu José: era preciso confiar-lhe também a continuação da raça.

Assim,  pois,  uma noite  ela chamou-o e, com muita gravidade,  pesando as palavras, mas friamente, como se se tratasse de uma simples operação comercial, lhe deu a entender que desejava ser sua mulher, e ele, que secretamente alimentava a esperança desse desenlace, confessou-lhe trêmulo, e com os olhos inundados de pranto, que esse tinha sido o sonho de toda a sua vida.

  
V

Casaram-se.

Nunca um marido amou tão apaixonadamente a sua esposa. Seu José levou à Antonieta umcoração virgem de outra mulher que não fosse ela; fora das suas obrigações materiais, amá-la, adorá-la, idolatrá-la, tinha sempre sido e continuava a ser a única preocupação do seu espírito...

Entretanto, não era feliz; sentia que ela o não amava, que se entregara a ele apenas para satisfazer a uma conveniência doméstica: era apática; sem querer, fazia-lhe sentir a cada instante a superioridade terrível das suas prendas. Ninguém melhor que ele, tendo sido, aliás, até então, o único homem que lhe tocara, se convenceu de quanto era bem aplicada aquela ridícula alcunha de "Não-me-toques".

O   pobre   diabo   tinha   agora   saudades   do   tempo   em   que   a   amava   em   silêncio,   sem   que ninguém o soubesse, sem que ela própria o suspeitasse.


VI

Antonieta   aborrecia-se   mortalmente   naquele   casarão   onde   nascera,   e   onde   ninguém   a visitava, porque o seu caráter a incompatibilizara com toda a gente.

O marido, avisado e solícito, bem o percebeu. Admitiu um bom sócio na sua casa comercial, que   prosperava   sempre,   e   levou   Antonieta   à   Europa,   atordoando-a   com   o   bulício   das primeiras capitais do Velho Mundo.

De volta, ao cabo de um ano, construiu uma bela casa no bairro mais elegante da cidade, encheu-a de mobílias e adornos trazidos de Paris, e inaugurou-a com um baile para o qual convidou as famílias mais distintas.

Começou   então   uma   nova   existência   para   Antonieta,   que,   não   obstante   aproximar-se   da medonha casa dos quarenta, era sempre formosa, com o seu porte de rainha e o seu colo opulento, de uma brandura de cisne.

As suas salas, profundamente iluminadas, abriam-se quase todas as noites para grandes e pequenas recepções: eram festas sobre festas.

Agora já lhe não chamavam a "Não-me-toques"; ela tornara-se acessível, amável, insinuante, com um sorriso sempre novo e espontâneo para cada visita.

Fizeram-lhe a corte, e ela, outrora impassível diante dos galanteios, escutava-os agora com prazer.

Um galã, mais atrevido que os outros, aproveitou o momento psicológico e conseguiu uma entrevista - Esse primeiro amante foi prontamente substituído. Seguiu-se outro, mais outro, seguiram-se muitos...


VII

E  quando Seu  José,  desesperado,  fez saltar  os  miolos  com  uma  bala, deixou  esta frase escrita num pedaço de papel:

"Enquanto   foi   solteira,   achava   minha   mulher   que   nenhum   homem   era   digno   de   ser   seu marido; depois de casada (por conveniência) achou que todos eles eram dignos de ser seus amantes. Mato-me."


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Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Correio da Manhã, 12 de outubro de  1902

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